Era um cair de
tarde, triste, assim havia sido os últimos dias. Gioconda se deu conta que
estava na quaresma. Caminhava por uma estrada de terra alaranjada. Tinha aquela
tonalidade pela textura e pela qualidade da luz, do ocaso. Contemplava um céu
avermelhado, com se pintado a lápis de cor numa folha de papel almaço, por ela
mesma, quando criança. Sabia, já pintara aquele céu, já pintara aquele chão, também
aquele cheiro de mato já pintara, e guardara. E depois de tanto tempo guardado, entristecera,
desbotara. Pelo fone de ouvido fluía uma música, que a remetia a tempos
passados. Tempos que sequer vivera, no entanto, de melodia e melancolia se
enchia o seu coração. Como se tivesse ela tivesse vivido tudo o que a música dizia. Parou ao
lado dum frondoso pé de amêndoa, as folhas caídas, folhas maiores que seu pé,
tingidas de amarelo ensanguentado, forravam o chão. Os frutos vermelho carmim,
caídos assim, semelhavam corações de esquilo arrancados dos seus peitos. E de
vampiros tornaria os dentes de quem se atrevesse mordê-los.
Havia ali próximo,
um poço. De repente, do nada, um olho gigante se abriu a sua direita, plasmado
na luz do entardecer, destacava-se, azulado nas bordas, e esverdeando a medida
que ia para o centro, onde havia um ponto negro. Dali ouviu uma voz que
dizia-lhe: Gioconda! Quanto tempo não a vejo. E de dentro do olho de luz, saiu uma
menina. Era moreninha, talvez de sua idade, tinha um chapéu de palha à cabeça,
e duas tranças pelos seus ombros deslizadas, sobre o vestido de alça de estampa
com flores coloridas. Gioconda imediatamente a reconheceu, Rita, sua melhor
amiga de infância. E iniciaram animadamente, uma conversa, como duas crianças
que não se viam a bastante tempo, diziam do quanto estavam com saudade uma da
outra.
Passaram horas
brincando, juntando gravetos, seixos e ramos, debaixo daquela árvore, apesar de
Gioconda já ser uma adolescente, assim, do jeito que estavam, pareciam duas
crianças, que esquecidas do mundo brincavam. Lembravam das brincadeiras do
tempo passado, e reviviam-nas. Pulavam corda, sem corda, esconde-esconde,
brincaram de roda, de bambolê sem bambolê, Caxangá, borboleta, brincaram de amarelinha com dois pedaços de pau, de
pedrinhas que imitavam bois no cercado, e cantavam e cantavam canções de sua
infância. E brincando nem perceberam que caiu a noite. E com ela, veio o frio, e
o medo. Rita, porém, buscou acalmá-la, dizendo-lhe, que a noite podia até ser
assustadora, no entanto, tinha a vantagem de se protegerem nas trevas.
E ficaram sentadas
amparadas por uma saliência da raiz da tamareira. Lembravam das histórias arrepiantes
que costumavam ouvir de seus pais, nas noites de inverno, quando já estavam na
cama, debaixo dos lençóis, junto aos irmãos em casa. Da estrada trote de um
cavalo, alguém com sua montaria, cavalgando a terra, se aproximava. Vislumbraram
a silhueta de um homem de chapéu e
capote sobre o cavalo, a noite tinha um quinto de azul, de quarto minguante, e
era a terceira hora. O cavaleiro não era nenhum estranho, era Seu Malaquias, o
vigia do prédio da prefeitura. Isso tranquilizaria as meninas. Cavalo e
cavaleiro seguiu adiante sem sequer perceber as meninas debaixo da árvore,
dentro do cercado a beira da estrada.
Um detalhe
Gioconda ignorava. Pormenores talvez esquecidos pelo tempo, Rita, sua melhor
amiga de infância, um dia se tornaria mulher. Ela não sabia, mas Rita era a
mulher misteriosamente assassinada no rio. Também Seu Malaquias, ambos, a pelo menos
vinte anos passados, foram assassinados no mesmo dia, daquela noite fatídica,
logo ali, à beira do rio, no leito da rua. Logo ali na rua em que morava, na
vila de São Vicente. Seu Malaquias no seu cavalo indo pra casa. Ainda naquela
noite se envolveria numa discussão com sua esposa. Um crime horrível
aconteceria, ainda naquela noite.
Amanhecera,
Gioconda acordou, se deu conta que adormecera debaixo do pé de amêndoa. O sol
dizia que já eram oito horas, esquentou-lhe as faces das folhas e o colo sonolento
da copa da árvore. Uma mulher muito bonita estava à beira do poço pra pegar
água, era Rita. E já não era mais criança, mas sim uma moça. Um lenço colorido
ornava seus negros cabelos cacheados. Gioconda aproximou-se. Rita parou o
serviço com as jarras e o balde. As duas se olharam ternamente. Rita, sorrindo, a
envolveu em seus braços, e beijou-lhe, na boca.
As ideias na
cabeça de Gioconda fervilharam, ao tempo que se organizavam, e traziam-lhe lucidez.
Tudo agora parecia fazer sentido, ela havia morrido. Ela, Rita, Seu Malaquias era somente espírito que vagavam mundo à fora. Por isso não sentia fome, não
sentia sede, há tantas horas. Sua memória ia aos poucos se recuperando, lembrou
que voltava da faculdade, estava muito deprimida, um peso enorme esmagava-lhe
o peito. Naquele dia teve uma consulta com seu psicólogo, falou-lhe sobre as
coisas que lhe deixavam triste, o namoro acabado com Ismael. E o ombro amigo de
Rita a lhe confortar. Dormiu na casa da amiga naquela noite. De volta pra casa,
estava decidida, poria um fim àquilo tudo. Escreveu um bilhete pra sua mãe,
contava-lhe tudo, o motivo pelo qual resolvera tirar a própria vida. Foi a
farmácia e ao mercado. Comprou tranquilizantes, vinho e chocolate. Pôs a tocar
na vitrola, um disco que o pai sempre ouvia regado a cerveja e doses de
conhaque, nas manhãs de sábado. A taça de vinho, os comprimidos de calmante, o sono profundo, os braços pesaram e pesaram. O disco de vinil,
rodando e rodando, findaria, e voltaria a repetir, várias vezes, a mesma
música.
“Baby essa estrada
é comprida, ela não tem saída/ É hora de acordar, pra ver o galo cantar/ Pro
mundo inteiro escutar. Baby a história é a mesma, aprendi na Quaresma/ Depois
do Carnaval, a carne é algo imortal, com multa de avançar o sinal.”