CACHORRO URUBU IN [Z] a [N] OS 13/03/2025



 

Detalhe: a foto que ilustra este episódio de INZANOS é de Arte da minha neta AIKA de 12 anos..

Era um cair de tarde, triste, assim havia sido os últimos dias. Gioconda se deu conta que estava na quaresma. Caminhava por uma estrada de terra alaranjada. Tinha aquela tonalidade pela textura e pela qualidade da luz, do ocaso. Contemplava um céu avermelhado, com se pintado a lápis de cor numa folha de papel almaço, por ela mesma, quando criança. Sabia, já pintara aquele céu, já pintara aquele chão, também aquele cheiro de mato já pintara, e guardara. E depois de tanto tempo guardado, entristecera, desbotara. Pelo fone de ouvido fluía uma música, que a remetia a tempos passados. Tempos que sequer vivera, no entanto, de melodia e melancolia se enchia o seu coração. Como se tivesse ela tivesse  vivido tudo o que a música dizia. Parou ao lado dum frondoso pé de amêndoa, as folhas caídas, folhas maiores que seu pé, tingidas de amarelo ensanguentado, forravam o chão. Os frutos vermelho carmim, caídos assim, semelhavam corações de esquilo arrancados dos seus peitos. E de vampiros tornaria os dentes de quem se atrevesse mordê-los.

Havia ali próximo, um poço. De repente, do nada, um olho gigante se abriu a sua direita, plasmado na luz do entardecer, destacava-se, azulado nas bordas, e esverdeando a medida que ia para o centro, onde havia um ponto negro. Dali ouviu uma voz que dizia-lhe: Gioconda! Quanto tempo não a vejo. E de dentro do olho de luz, saiu uma menina. Era moreninha, talvez de sua idade, tinha um chapéu de palha à cabeça, e duas tranças pelos seus ombros deslizadas, sobre o vestido de alça de estampa com flores coloridas. Gioconda imediatamente a reconheceu, Rita, sua melhor amiga de infância. E iniciaram animadamente, uma conversa, como duas crianças que não se viam a bastante tempo, diziam do quanto estavam com saudade uma da outra.

Passaram horas brincando, juntando gravetos, seixos e ramos, debaixo daquela árvore, apesar de Gioconda já ser uma adolescente, assim, do jeito que estavam, pareciam duas crianças, que esquecidas do mundo brincavam. Lembravam das brincadeiras do tempo passado, e reviviam-nas. Pulavam corda, sem corda, esconde-esconde, brincaram de roda, de bambolê sem bambolê, Caxangá, borboleta, brincaram de amarelinha com dois pedaços de pau, de pedrinhas que imitavam bois no cercado, e cantavam e cantavam canções de sua infância. E brincando nem perceberam que caiu a noite. E com ela, veio o frio, e o medo. Rita, porém, buscou acalmá-la, dizendo-lhe, que a noite podia até ser assustadora, no entanto, tinha a vantagem de se protegerem nas trevas.

E ficaram sentadas amparadas por uma saliência da raiz da tamareira. Lembravam das histórias arrepiantes que costumavam ouvir de seus pais, nas noites de inverno, quando já estavam na cama, debaixo dos lençóis, junto aos irmãos em casa. Da estrada trote de um cavalo, alguém com sua montaria, cavalgando a terra, se aproximava. Vislumbraram a silhueta de um homem de chapéu e capote sobre o cavalo, a noite tinha um quinto de azul, de quarto minguante, e era a terceira hora. O cavaleiro não era nenhum estranho, era Seu Malaquias, o vigia do prédio da prefeitura. Isso tranquilizaria as meninas. Cavalo e cavaleiro seguiu adiante sem sequer perceber as meninas debaixo da árvore, dentro do cercado a beira da estrada.

Um detalhe Gioconda ignorava. Pormenores talvez esquecidos pelo tempo, Rita, sua melhor amiga de infância, um dia se tornaria mulher. Ela não sabia, mas Rita era a mulher misteriosamente assassinada no rio. Também Seu Malaquias, ambos, a pelo menos vinte anos passados, foram assassinados no mesmo dia, daquela noite fatídica, logo ali, à beira do rio, no leito da rua. Logo ali na rua em que morava, na vila de São Vicente. Seu Malaquias no seu cavalo indo pra casa. Ainda naquela noite se envolveria numa discussão com sua esposa. Um crime horrível aconteceria, ainda naquela noite.

Amanhecera, Gioconda acordou, se deu conta que adormecera debaixo do pé de amêndoa. O sol dizia que já eram oito horas, esquentou-lhe as faces das folhas e o colo sonolento da copa da árvore. Uma mulher muito bonita estava à beira do poço pra pegar água, era Rita. E já não era mais criança, mas sim uma moça. Um lenço colorido ornava seus negros cabelos cacheados. Gioconda aproximou-se. Rita parou o serviço com as jarras e o balde. As duas se olharam ternamente. Rita, sorrindo, a envolveu em seus braços, e beijou-lhe, na boca.

As ideias na cabeça de Gioconda fervilharam, ao tempo que se organizavam, e traziam-lhe lucidez. Tudo agora parecia fazer sentido, ela havia morrido. Ela, Rita, Seu Malaquias era somente espírito que vagavam mundo à fora. Por isso não sentia fome, não sentia sede, há tantas horas. Sua memória ia aos poucos se recuperando, lembrou que voltava da faculdade, estava muito deprimida, um peso enorme esmagava-lhe o peito. Naquele dia teve uma consulta com seu psicólogo, falou-lhe sobre as coisas que lhe deixavam triste, o namoro acabado com Ismael. E o ombro amigo de Rita a lhe confortar. Dormiu na casa da amiga naquela noite. De volta pra casa, estava decidida, poria um fim àquilo tudo. Escreveu um bilhete pra sua mãe, contava-lhe tudo, o motivo pelo qual resolvera tirar a própria vida. Foi a farmácia e ao mercado. Comprou tranquilizantes, vinho e chocolate. Pôs a tocar na vitrola, um disco que o pai sempre ouvia regado a cerveja e doses de conhaque, nas manhãs de sábado. A taça de vinho, os comprimidos de calmante, o sono profundo, os braços pesaram e pesaram. O disco de vinil, rodando e rodando, findaria, e voltaria a repetir, várias vezes, a mesma música.  

“Baby essa estrada é comprida, ela não tem saída/ É hora de acordar, pra ver o galo cantar/ Pro mundo inteiro escutar. Baby a história é a mesma, aprendi na Quaresma/ Depois do Carnaval, a carne é algo imortal, com multa de avançar o sinal.”


VILA ÁGUAS BELLA 17/02/2025.


Seu Antonio acordou sentindo uma sensação estranha, algo sobrenatural ocorrera naquela madrugada. O que realmente acontecera não sabia direito. Saiu da cama direto para o banheiro. E quase desmaiou ao se ver no espelho. Instintivamente levou as mãos ao rosto. Ele simplesmente não era mais ele. Seu Antonio quedou-se perplexo, estava no corpo de outro homem. Branco, ostentando volumosa barriga, os olhos claros e um cabelo liso e alvo. Logo descobriu que se chamava Robson, pois sua suposta esposa que se encontrava na cozinha assim o chamava.

Boquiaberto viu um imenso pomar no seu quintal, morava numa casa a beira-mar. Da porta da cozinha dava para ver a praia, o imenso oceano, ainda mais bonito assim pela manhã. Sorrindo-lhe no cintilante brilho do sol refletido na água-marinha em acenos de ondas, convidando-o a espumas com cheiro de maresia. O campinho dos meninos jogarem futebol, não carecia de murada. Uma clareira aberta no imenso mar de coqueirais na encosta da praia.

Interessante era que Seu Antonio, nessa nova vida, tinha o mesmo número de filhos da outra vida, três. A diferença que eram dois meninos e uma menina: Luciana, Luiz e Cristiano. A esposa, dona Carmem, aparentava ser mais velha que ele. Ela costureira, ele um funcionário da Vigilância Sanitária aposentado. Apreciava tudo que vinha, ou era trazido do mar, as marés, as ondas, o cheiro de maresia, os frutos, a pesca, os pescadores, a pescaria. A casa em que morava, a rua, o mar logo ali.

Seu Robinho, como era conhecido, tinha uma rotina de ir ver o mar pela manhã, passear na areia por longas caminhadas, sempre procurando se superar. Aumentando sempre o percursos. Avaliando a que horas a maré estaria enchendo ou secando. Às vezes Os filhos o acompanhavam. Outras vezes ia sozinho. Ia ao mercado do peixe, e quase sempre voltava para casa trazendo pescado. A tarde ia a periferia da vila, num reduto dos pescadores, as docas das Salinas, tomada por embarcações, canoas, barcas, barcaças, botes, algumas velhas, outras em recuperação, aportadas para o descanso diário, ou sem condições de navegar, simplesmente abandonadas.

Lá ia Seu Robinho, pilotando sua bicicleta Monark, dobrando a pracinha onde havia um monumento, a âncora centenária, a peça de moinho. Passaria na barbearia de Rubens, por um bom tempo ficariam jogando conversa fora, o senhor General, funcionário público aposentado da marinha mercante, um negro velho, sempre bem-humorado, sorriso largo, de dentes alvos, de volumosa pança, braços e peito aberto. Também chegava Zezinho “Boa Vida” e estava formado o trio de contador de lorotas, sempre traziam casos absurdos relacionados a desempenho sexual. As gargalhadas estaladas, individuais ou coletivas, dava para se escutar de muito longe.

Cauby funcionário da balsa, controlava a travessia do rio Manguaba na sua foz. Cauby ia até a barbearia de Rubens,  depois ia aliviar o calor daquele intenso verão, tomar uma água de coco no boteco do Jadinho. Sempre, naquelas ocasiões, passava no boteco do Jadinho, Por volta das quatro da tarde Jadinho tirava seu saxofone da caixa e dedilhava o instrumento, extraindo dele acordes, e pedaços de melodia que lembravam noites de seresta e os antigos carnavais. Professor Zito, e professor Sérgio apareciam no boteco, somente em dia de sábado para degustar doses de cachaça com limão acompanhada de um fruto do mar, uma lagosta, um caldo de maçunim, um polvo, um escabeche de cação, uma pratada de camarão, uma panelada de siri ou caranguejo guaiamum, capturado no manguezal. Quando a pesca nada dava, tinha que encarar um assado de cangulo um peixe de qualidade inferior. Ou um prato de unha-de-velho.

Dona Maria, a moradora da casa da esquina que dava para o ancoradouro da balsa, tinha um pé de carambola no quintal. Badeco que trabalhava no outro lado da rua, no prédio da telefônica, ia pedir a Dona Maria para pegar umas carambolas. Ela sempre permitia. A cadeia pública guardava ainda os traços arquitetônicos do século dezesseis. As janelas tinham largura nos tijolos dobrados. Entrar ali era mergulhar no túnel do tempo. Dava pra sentir a presença das almas literalmente apenadas, e quantas vidas se teriam perdido naquela clausura. Tudo cheirava a tempos passados. O som de grades se chocando, elos de correntes se arrastando entre os grilhões, os lamentos, os pedidos de clemência, vindo dos porões, das masmorras, não era somente algo imaginado. Eram cenas seculares se eternizando, se repetindo. Como se aquele ambiente aterrador e hostil jamais conseguisse se livrar da inclemente maldição do passado.

A escola Ciridião Durval, abarrotada de barulho de crianças, que um dia cresceriam. Porém, continuariam crianças. Ainda que crianças velhas, que já se tinham ido. Partiram em busca de seus sonhos, de aventuras. Alçaram vôos, capitaneadas por seus ideais, navegariam por mundos estranhos. Ora voavam, ora sobrevoavam, pilotavam suas embarcações imaginárias, navegavam até o alto-mar. Muitos venceriam as tempestades, muitos sobreviveriam, muitos naufragariam. Muitos virariam soldados, e com tanto orgulho serviram a pátria. E depois, tantos outros se desiludiriam, e se atirariam ao delírio, a embriaguez que o mundo podia oferecer, e viveriam também suas frustrações. Outros partiram, e continuariam partindo com um gosto de sal na boca. Deixando para trás, amigos, vivências, experiências, paixões, amores, dissabores. O destino os empurrariam, obrigariam a darem às costas, sem olhar para trás. E lágrimas deslizaram pelos seus rostos. E nunca mais, é muito tempo, quem sabe voltariam. Tito? Onde estais? Edvaldo? Para onde fostes? Seu Paulú, me dê conta desses meninos!

A capela de Nossa Senhora da Piedade ainda preservava os traços barrocos, a própria imagem vinda de Portugal datada de 1607, no frontispício, o marco de sua fundação. Dona Lourdes zeladora, dona Belmira vereadora, a mantenedora. A igrejinha delimitava a praça com o próprio nome da santa, que ficava logo em frente, e a Rua Vigário Bello, com a placa indicando a mais de século que aquele centenário vilarejo fora parte importante do descobrimento do Brasil. O lugar que um dia fora chamado Águas Bellas, de antigo casario, de ruas com antigo calçamento, onde carruagens imperiais trafegaram, "Ò peble! Curvem seus corpos, o imperador estar a passar!". O pisoteio dos cavalos e coturnos dos soldados, quebrando o silêncio da madrugada, ainda dar para se ouvir. Os estampidos dos canhões e bacamartes. O embate entre corsários e capitães de terra. Os gritos de horror dos condenados a forca, das chibatadas nas costas dos negros escravos encarcerados. Nos recônditos assoalhos, por baixo das tábuas, ensebadas de óleo e rum, carcomidas pelos cupins, dobrões de prata, espadas, moedas, medalhões de ouro, e pedras preciosas, tantas sepultadas, cujos donos, piratas, mercenários, caçadores e desbravadores destituídos de suas aparências humanas, apoiados somente por suas pobres almas, que teimavam em permanecer aprisionadas aos cadáveres, aos restos mortais do que um dia foram seus corpos, e defenderiam como poderiam, seus tesouros.  

 


 

A MURALHA IN [Z[ [A] NOS 04/02/2025



Seu Antonio encasquetou que os crimes do homem do meio da rua e da mulher do rio, não teria passado de um delírio. Talvez um delírio coletivo. Fruto da imaginação. De onde tirou essa conclusão, isso é que torna o caso ainda mais complicado. Pela ausência de ações das autoridades, da polícia, que nada investigava. E pasmem, da lua. Seu Antônio tinha, com o satélite natural da terra, um vínculo muito forte. Era coisa de infância. Sua mãe dizia que ao completar sete meses de gestação, teria ficado fissurada pela lua. Daquela data em diante, todas as noites, assim que o sol se punha, a mãe de Seu Antônio tinha por obrigação procurar a lua, e ficava horas a admirá-la. Um prazer imenso, sentia o menino, naquele gesto que a mãe, por força da vontade dele, ficava a admirar a bola de luz flutuando na imensidão do cosmo. Era uma noite de lua cheia, a apenas sete dias pro nascimento de Seu Antônio algo estranho aconteceu, a criança chorou no ventre da mãe. Para os mais velhos isso era um mau presságio.

A parede, possuía uma textura de cor alaranjada. Como  havia se erguido ali, ninguém sabia. No meio da mata. E não parava por aí o mistério, ao olhar para cima não se conseguia ver o fim do imenso muro cor laranja, incrivelmente se perdia céu à dentro. Simplesmente incrível, um muro que não terminava, nem para cima, nem para os lados. Monalisa, Isachar e Tábata estiveram uma vez ali, isso lá na infância deles, estavam brincando no sítio da tia Emília, entraram na mata e se depararam com o muro, ao tocá-lo Monalisa sentiu-o gelado, Isachar  tocou-o tomou um choque elétrico, e Tábata sentiu sua mão afundar, como se a colocasse num lago. A reação foi imediata, saíram correndo. Se tivessem esperado mais um pouco, teria presenciado algo fantástico, um imenso portal se abrindo dando passagem para o outro lado. Derick que não fugira, olhou para lá dentro, e arriscou entrar pra ver o que havia, além da muralha laranja.

Seu Antônio estava de frente pro espelho do banheiro, fazendo a barba. Muito queria entender por que todas às vezes que se barbeava, lembrava da primeira vez. Era sempre a sim. A primeira vez, que fez a barba, nem barba tinha, o aparelho era do pai. E tudo que conseguiu foram alguns pequenos cortes que a mãe percebeu e ralharia com ele, por aquela proeza.

Uma espécie de cidade envolta numa redoma de vidro equilibrava-se sobre vigas, na encosta de uma montanha. De repente, da linha do horizonte começaram a surgir naves espaciais, um exército inteiro de naves de vários tamanhos e formatos. Derick correu a se proteger debaixo de uma árvore. As naves foram se aproximando e pousando lentamente fazendo um barulho ensurdecedor.

O gato não tirava o olho das criaturas que lentamente desciam das aeronaves, alienígenas, seres os mais estranhos, mais pareciam monstros marinhos, lulas, polvos, siris, e outros crustáceos, cheios de tentáculos, olhos ofídicos e boca de peixe. Derick entendeu que iam discutir algo sobre a cidade da redoma de vidro. Isso porque eles se colocaram em círculo. Um que tinha a cara de tubarão-martelo parecia ser o chefe, pois começou a falar, se é que aquilo poderia ser chamado de fala. Um grunhido como de alguém tentando falar embaixo d’água. O tempo todo apontava pra cidade.

Seu Antônio lembrou de um dia, na casa de sua infância, estava sentado à mesa com a cabeça apoiada nos braços. Não estava nem triste, nem alegre. Porém, sua mãe acudiu perguntando-lhe o que tinha. Respondeu com um grunhido. Sua mãe foi fazer um chá. Era sempre assim, O menino não tinha nada mais do que cansaço, por ter uma manhã cheia de afazeres da sua natureza, caçar passarinho, tomar banho de rio, armar arataca para pegar preá. Escalar mamoeiros, mangueiras e cajueiros, atirar pedras em umbuzeiros pra conseguir-lhes frutos, que no mais das vezes inexistia, porque não era tempo.

O ataque foi imediatamente decidido entre eles. Já voltavam pra suas aeronaves quando o contra-ataque iniciou-se. Os habitantes da cidade da redoma de vidro, surgiu no meio da campina. Era um número colossal de guerreiros, havia uma tropa de soldados portando lanças e escudos que corriam na frente. Em seguida, homens montados em dinossauros, emas e lagarto gigantes, também pterodáctilos, voavam rasantes montados por guerreiros com armas de fogo. Os alienígenas foram pegos de surpresa, a maioria não iria conseguir embarcar em suas aeronaves, e o combate iniciou-se ali na campina. O mato verde experimentou naquele instante o tinir de aço se chocando, os gritos de raiva, o som de ossos se partindo, de músculos dilacerados, os urros de dor, de ódio, e um rio de sangue correndo sobre a montanha.   

 

 

IN[Z](A)NO Capítulo quatro A ÁRVORE


   A ÁRVORE                                                 Capítulo Quatro

 Cinco vidas podem ser cada um dos sentidos; dependentes e autônomos, portal para outros caminhos, outros mundos.

O pirata, ainda não sabia onde estava, nem como fora parar naquele lugar. Olhava tudo com o único olho que conseguia enxergar, o esquerdo. Tudo que seu único olho conseguia capturar vasculhou em questão de segundos. A visão limitada, exigia uma maior acuidade. Se por acaso um inimigo lhe viesse atacar pela sua direita, dificultaria sua percepção. E foi justamente o que aconteceu. O ogro dos metais entrou na taverna. Fez a varredura habitual, reconheceu o inimigo e avançou. O que queria era fazer-lhe uma recepção digna, com sua clave de combate cuja ponta ostentava um enorme prego atravessado bateu no abdômen do amigo que não via a bastante tempo. A reação de dor provocada no pirata foi imediata, deu-lhe um murro no tórax que o arremessou contra a parede que não suportou o impacto e cedeu.

A mãe de Seu Antônio tinha algo para lhe contar. Feliz da vida conversava com ela. Perguntou-lhe: Ô mãe! Por que já não me procurou para contar isso a mais tempo?

Ela preferiu não responder, porém, ao fitar seus olhos tristes, Seu Antônio conseguiu enxergar neles muitas coisas. Coisas que jamais tivera coragem de perguntar. Agora, já falecida, encontrava as respostas ali, no fundo dos seus olhos. Lembrou daquele final de semana, era domingo. A família toda fora para casa de tia Emília, que morava na encosta do rio. Geraldo o primo mais velho, era quem se encarregava de passear com as crianças pelo sítio, levando-os até o rio, a andar de charrete. Teve uma vez que matou uma cobra. A serpente apareceu no paiol, uma jiboia, enroscada nos caibros na cumeeira do depósito. Buscava os ninhos das corujas, para comer-lhes os filhotes ou berber-lhes os ovos. Com o facão, Geraldo cortou-a ao meio, o sangue tingiu o chão, a mente e o coração do menino Isachar, que jamais esqueceria aquela cena.

A tarde quente sufocava, fazia suar por todos os poros, incômoda, a camiseta colava na pele, das costas, do tórax. O chão de areia dificultava o andar. O jumento, avançava lerdo, com sua habitual preguiça, exalando seu cheiro enjoativo de mofo. Uma águia gigante veio voando na direção deles. Não era águia coisa nenhuma, aquilo era um dragão. Os olhos vermelhos, os dentes pontiagudos, a língua de fogo, em uma das garras uma espada. O caubói sacou os dois revólveres, e começou a atirar contra o réptil voador, que lançava labaredas contra eles. Um tiro atingiu o ser alado na asa, arrancando pele, salpicando sangue, partindo ossos. Uma das labaredas atingiu o pobre asno, chamuscando-lhe a crina. O animal rolou na areia tentando apagar o fogo. O cavaleiro andante foi se proteger do ataque mortal do dragão, indo para detrás de uma árvore. O dragão avançou e com sua espada espetou o tronco. Do ferimento no caule, um jato de sangue jorrou na areia quente. A poucos metros de curso d´água.

A verdade, era que aquela árvore noutros tempos fora uma mulher, A mulher encontrada morta dentro do rio. História entrecortada de medos, e mistérios. Relampejo de insensatez, no brilho da lâmina da faca. A mulher de olhos esbugalhados diante da morte, após ser golpeada várias vezes com facadas, morre lentamente dentro d'água.

Muitos anos se passaram. Nunca aquele crime fora desvendado. No mesmo dia que Batista foi morto no meio da rua, na verdade, na noite daquele dia. A mulher morta a facadas, o homem morto a tiros. Seu Antônio era comerciante, e produzia artefatos de couro. Passava horas conversando com os homens que curtiam o couro. Lá pras bandas das cachoeiras, rio a baixo.

Os curtidores de couro, o dia inteiro metidos, até a cintura, dentro dos tanques fedidos a carniça. Enchendo de cascas de angico e revirando as peças de couro dentro dos tanques. A tinta largada da casca do angico impregnava seus corpos, a água, o couro bovino. Os homens ficavam da cor de sangue. E cheiro quase insuportável. Eles, porém, já haviam acostumado seus olfatos com aquilo. Até cantar cantavam enquanto trabalhavam. Os mais velhos tinham sempre uma história pra contar. História do tempo que era jovem, e viajava pelo mundo.

E com certo orgulho contava que já havia passado fome nas andanças mundo à fora. Contou que certa vez chegou  a um vilarejo cujos habitantes na sua maioria era de origem oriental. De cara rasa, pele clara e olhinhos puxados Entrou num boteco, tinha muita fome, e nenhum dinheiro para se alimentar. Aproximou-se do balcão, e um velho chinês de bigodes longos e finos perguntou o que queria. Disse que tinha fome, mas não tinha dinheiro. O chinês, com sua voz fina e de língua presa, soltou-lhe imprecações. Até de vagabundo o chamou. Uma velha senhora, também chinesa, apareceu de lá dentro. E olhando o forasteiro, fez um sinal para que saísse do boteco. E desapareceu na porta que dava pra cozinha.