Isachar
considerava-se o quinto personagem daquela história maluca. Queria muito
entender porque deixara a casa dos pais. O tempo todo sentia saudade, tinha
vontade de voltar, fazer como o filho pródigo, dizer pai: “só contra ti pequei,
já não mereço ser chamado de teu filho.” Mas o orgulho besta, não permitia. A
loucura o havia levado muito longe. O espírito de aventura talvez. Sei lá, que
doidice fora aquela.
Tudo em volta
parecia estranho. O mercado, as pessoas andando no meio da feira, a gritaria, as
preocupações de cada um, que passava. Nem todos que se encontravam ali na rua
era vivente, havia espíritos que vagavam, havia alienígenas materializados,
ou hologramas. Também entes de sua imaginação plasmando-se e evaporando-se numa
velocidade estúpida. Não entendia, mas tudo aquilo vinha-o importunar. Não
tinha vocação pra Deus. No entanto, incomodava-o saber que povos estavam em
guerra, que o clima estava descontrolado.
O céu era de meio-dia, também os clamores de sua barriga. Achou engraçado, estar com fome. E teve
uma leve vontade, uma curiosidade de perguntar a alguém por que o céu estava
roxo? Muito provável somente ele enxergasse o firmamento daquela cor. A bola do
sol, ardendo de fogo, amarelo alaranjado, parecia um pêndulo, balançando pra lá
e pra cá. Teve a impressão de ver sua mãe andando no meio do povo. Ia muito
adiante, ele a via de costas. Mas era como se conseguisse vê-la de frente.
Olhava-o com aquele mesmo olhar de mulher piedosa, de uma mãe que padece pelo
sofrimento do filho. O que estamos fazendo aqui? Vamos pra casa filho. Só podia ser alucinação, aquela altura do
campeonato dona Dulce já falecera, inclusive vieram-lhe boas lembranças dos
tempos em que vivia ainda. Enquanto estendia as roupas no varal, e ele brincava
com um aro de bicicleta atrás do quintal de casa.
Dona Dulce vestia
o vestido, o mesmo que um dia posou para uma foto com ele na sala de sofá, ao
lado, também estava seu pai. O traje do pai era terno completo, o vestido da
mãe tinha folhas e flores como de repolho, em preto e branco. Não tinha
cabimento aquelas recordações, não, para aquele momento. O braço começou a
arder em brasa, e coçava muito. Três furinhos de sangue, três pontinhos
vermelhos, na parte interna do braço direito. Percebeu um alienígena com cara
de peixe e corpo humano, ali a sua frente. Segurava uma arma, uma espécie de
pistola de metal com a qual lhe aplicara uma espécie de injeção. Isachar
desmaiou.
Acordou, deitado
numa maca de hospital, imobilizado completamente pelos braços e pernas. Era um
lugar cheio de equipamentos médicos, painéis com bips e leds de várias cores
piscavam. Ambiente refrigerado, luzes frias. Som apenas de equipamentos
médicos. Tubos e sondas acoplados ao seu corpo monitoravam todos os seus sinais
vitais, pressão arterial, batimentos cardíacos, temperatura, atividade
cerebral.
Num painel a sua
frente, um monitor mostrava exatamente o que ele estava pensando. Como podia?
Naquela tevê, ali em frente, aparecia tudo o que ele pensava, no exato momento em que pensava. Teve uma
sensação de quase pânico. Sentiu-se como que nu, invadido no mais íntimo do seu
ser, da sua intimidade. Quem mais estaria assistindo? Vendo suas mais sigilosas mentalizações ali expostas? Sem poder fazer nada! Teria morrido? Seria aquilo o céu? Provavelmente mais se assemelhava ao inferno. Seus pensamentos
começaram a vagar, foram parar no tempo em que vivia na casa dos seus pais. Estava,
exato, com dezesseis anos. Vinte anos havia se passado desde então. O rosto de uma menina por quem era apaixonado, em
segredo, encheu a tela do monitor, e logo sumiu. Novamente a menina apareceu, seus
cabelos compridos iam até o respaldo da cadeira onde estava, na sala de aula. Sonia sentava
a pelo menos umas seis carteiras a sua frente. Na fila paralela.
Naquela manhã de
outono, o dia ainda acordava preguiçoso. As coisas iam ficando todas, cada vez
mais alegres. A medida que o sol as tocava. As árvores, os pássaros nos ninhos. O assobio do vento trazendo animosidade para a vida. Dona Dulce foi ao quarto acordar o filho, acabou flagrando Isachar masturbando-se, na cama, nu,
por baixo dos lençóis, olhava por uma fresta da janela, algumas
mulheres, vestidas em suas calças coladas ao corpo, realçando
seus glúteos e genitálias, conversavam animadamente na calçada. Bem ali em
frente a janela do seu quarto. Iam para a caminhada matinal. De início, dona
Dulce ralhou-o, ameaçou dar-lhe uns bofetões, Desconsertada, saiu de cena em
disparada, num misto de vergonha e pudor. Isachar, depois do banho, meio que
sem jeito, apareceu na cozinha. Sentou-se a mesa para o café da manhã, para ir à escola. A benção, a mochila, o caminho da rua.
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