A Moléstia

Esta história, bem que poderia ser apenas mais uma dessas, em que o contador de causos vai se embrenhar pelas veredas do sertão, chegar a uma cidadezinha interiorana, e focar uma rústica família sertaneja. Pelo título sugerido é muito provável que vá referir-se as mazelas causadas por uma doença. Quem sabe os problemas de saúde enfrentados pelas personagens. Não está, de todo, equivocado quem desse jeito pensou. Não, totalmente enganado. Afinal, doenças nesse mundo de meu Deus, existem desde que o mundo é mundo.   
 
Se a gente olhar o passar do tempo, pelo lado biológico, tudo o que os anos vão acrescentando as nossas existências, é só deterioração. Por isso naquela casa, Seu Prudêncio estava ficando imprudente, e Dona Rosa se despetalando. Mas nem sempre foi assim. E pra que a gente entenda tudo direitinho, é preciso começar do começo. Dizer que Seu Prudêncio e Dona Rosa um dia foram jovens. E que ele, apesar de ter nascido no seio de família tradicional, nada quis com estudos. Gostava mesmo era da lida com gado, viver fincando estaca, laçar boi, ordenhar vaca, prender e soltar gado no curral, cavalgar no pasto. Amava a vida no campo. E pra diversão, as corridas de mourão, as vaquejadas, as festas de quermesse, as novenas do santo padroeiro da Fazenda Riachão. Justo numa dessas festas de gado, conheceu a jovem Rosinha, por quem se apaixonou. A filha de Seu João Inácio um modesto agricultor, laçou o coração do vaqueiro, e logo estariam casados. Senhor Florêncio Rêgo pai do noivo, escolheu uma gleba no extremo oeste do seu imenso lote de terra. Desmembrou, e deu ao filho, dizendo que aquela era a sua parte da herança, e que ali construísse sua moradia. Tudo perfeito, isso se Seu Prudêncio fosse filho único, porém não era. Outros irmãos também almejavam tomar como herança, aquela parte da propriedade. Por motivos óbvios, ficava mais próxima da cidade, não tinha muita pedra, não era muito acidentado, um grotão como muito pasto, ia encontrar o riacho Gravatá que cortava aquele trecho. Os seis filhos de seu Florêncio, todos, assim como os cinco irmãos do vaqueiro recém-casado cobiçavam aquela parte da fazenda Riachão. Porém o jovem Prudêncio, contraindo matrimônio primeiro, recebeu aquela parte como herança. O lançar do olho da cobiça da parentela dos Rêgo, talvez seja o motivo do que contaremos daqui pra frente.

Na empreitada de construir a casa de morada o jovens Prudêncio quis tê-la com todas as virtudes que uma casa colonial possui. Num batente bem aprumado do sopé do serrote Pelado ergueu imponente casarão assobradado. Toda ela num bloco único, rodeada de alpendres. O que muito chamava a atenção eram as janelas, em grande quantidade. Os balaústres conferiam graça, beleza, ao tempo que enriquecia de historicidade, porque lembravam o período imperial brasileiro. O telhado tinha frisos nos beirais e singelo arremate nas pontas. Plantas e árvores frutíferas rodeavam a construção, o que a tornava ainda mais bela. Se o que tocava o sentido da visão encantava, imagine se aos olhos de um atento observador acrescentarmos, os elementos que atingem e sensibilizam os outros sentidos. O adocicado perfume liberado pelas flores, a brisa nas tardes prazenteiras, o sol matutino, vindo amarelar as paredes em branco de cal. Um esplendor de céu em nuvens de algodão navegando pra o profundo oceano azul, enquanto bandos de pardais e garças em “vê” voavam lá pras bandas do horizonte.

Já está mais do que na hora de falar da moléstia. O velho Prudêncio e Dona Rosa tiveram muitos filhos, porém todos já se haviam crescido, estudado, e uma vez casados foram indo embora. Na herdade daquele casal de anciãos, havia uma que era advogada, outro que era capitão da aeronáutica, e até um que era médico. Desses que entende de ossos, só que estavam longe, muito longe da casa do pai. Justo por volta dos setenta anos, Seu Prudêncio deu de apresentar uma dor nos ossos, que muito lhe incomodava. Todo ano quando chegava janeiro, época em que os céus trombeteavam em clarins de relâmpagos e trovões, as providenciais trovoadas. O riacho dava de insultar os baixios. Se amostrando em valentia, partia pra cima do gado, penteava o capim da várzea, e como se brincasse de pião rolava imensas craibeiras.

Era tempo de Seu Prudêncio sentir fortes dores nos ossos. Era uma dor fria, implicante que lhe incomodaria para além das noites de inverno. Ora meu caro, dor nos ossos entreva qualquer um. E o esteio da casa se punha macambúzio. Em riba duma cama enrolava-se num lençol, do tipo abafa bufa, que lhe cobria do pescoço ao tornozelo. Danava-se a tomar chá de erva cidreira e quebra pedra, pra amenizar a moléstia. Ao dizer que o esteio da casa ficava entrevado, não é apenas força de expressão, estranhamente o esteio da casa mesmo. A linha principal, o pé direito, junto com os caibros roliços, nessa mesma ocasião, dava de ranger, e dar estalos como se gemesse e dor também sentisse. E outros males vieram além daquele. Dona Rosa apresentou uma erisipela, que empestou suas pernas e braços. Logo ela que era de pele clara, a moléstia se apresentava ainda mais grotesca. Braços e pernas num petrume horrendo se destacava do resto do corpo de pele rosácea da velha senhora. E não é que as paredes da casa, também deram de apresentar uma descamação semelhante à doença de Dona Rosa. Não demorou as paredes da casa, antes branquinhas, ficaram cheias de nódoas e manchas que lembravam enormes feridas necrosadas.

As janelas, os olhos da casa. O cartão postal daquela imponente casarão começara a se deteriorar. Os esquadrilhos começaram empenar, em desalinho. As vidraças muitas delas trincadas, foram se tornando embaçadas. As dobradiças enferrujadas passaram a entortar, as folhas de madeira trabalhada lentamente iam se desencaixando. O cupim comprometeu toda a estrutura e a casa vista assim, mais parecia um mau-assombro.   
          
Outros invernos mais viriam e com eles outros males. De repente umas plantas exóticas que os filhos de Seu Prudêncio trouxeram de países estrangeiros, plantadas no terreiro da casa, começaram a liberar um pó branco, uma espécie de fungo que passou a estragar os alimentos. Os grãos armazenados nos vasos guardados no paiol foram afetados. O feijão além do gorgulho criou um mofo e apodreceu. A casa de farinha criou uma pichilinga, que atacou as aves da fazenda: galinhas, patos e pássaros. Bem como as criações de ovelhas e porcos, todos doentes. A casa toda foi invadida por aquele maldito fungo. E Seu Prudêncio e Dona Rosa inadvertidamente coçaram os olhos com as mãos contaminadas por aquele mofo, e acabaram ficando cegos.

Uma noite quente de verão se havia quando a maldição veio selar o destino daquela casa. Após a janta, o velho Prudêncio pitava seu cigarro de palha e fumo picado, enquanto Dona Rosa debulhava um rosário de contas negras. Preparavam-se pra se recolherem e dormir. Pouco a pouco o sertão ia silenciando. Aos poucos entregando seu cansaço a noite de um céu agourento e carregado de maus presságios. De repente uma rajada de vento forte escancarou a janela da cozinha, derrubou o candeeiro. O querosene ganhou o lastro de madeira, e a língua de fogo foi com ele. Não demorou muito e a casa, em seu imponente estilo império-colonial ardia. E as silhuetas das árvores no entorno da casa, pareciam bruxos gigantes dançando em torno do clarão das chamas. Lá no alto do serrote do Pelado, bem lá no meio das trevas, deu pra ouvir um gutural gemido. Era o estalo do teto da casa vindo a baixo, rasgando o ar, alumiado pelo brilho do olho da coruja.

Fabio Campos      

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