
Esta talvez seja história que
fale de bem viver. E de que no ato de viver devemos tentar tirar o máximo de
proveito. Buscar valores que nos são passados de geração em geração. E de que a
herança maior que recebemos, não são coisas, nem objetos. Mas o que herdamos
dos nossos pais. Os valores morais, os traços físicos, as afeições cultivadas
em família, ao longo da existência terrena. Portanto a família em que Jorge
nascera cultivava como valor primordial a união entre os pares. Uma modesta casa
na cidade, e uma propriedade denominada Sítio Mulungu, incrustada no meio da caatinga
eram os bens que possuíam. A cada ano, quando se aproximava o inverno, os
membros do clã viravam camponeses e iam preparar a terra. As culturas
consorciadas, milho e feijão, pra subsistência. Palma e algodão de reserva. Havia
pasto pra mantença de um pequeno plantel de bovinos, e algumas poucas cabeças
de gado miúdo. A demais era divino, dos céus aguardar que viessem as chuvas.
A casa da cidade era confortável. O mobiliário,
apesar de antigo, bastante conservado, verdadeira relíquia. As paredes, revestidas
de fotografias de toda herdade, em várias fases das suas vidas: bebês, jovens,
e adultos. A cozinha da mãe de Jorge dava gosto de ver. Havia um belo bufê
cheio de taças de cristal e xícaras de porcelana com paisagens bucólicas
medievais, que fora herdado de sua avó materna. Havia uma mesa enorme de seis
cadeiras de madeira maciça, muito pesada, herança do avô paterno. A principal
parede daquele cômodo era ornada com o quadro em que Jesus ladeado dos doze
apóstolos, fazia a última ceia. Encaixado em simples moldura, a gravura, em
papel cartão, a impressionante pintura de Leonardo da Vinci. A mãe de Jorge ganhara
o quadro de sua irmã Aurora, como presente de casamento, que ao lhe dar teria
dito: “-Mande benzer. E enquanto você tiver esse quadro na parede de sua
cozinha, jamais faltará alimento em sua mesa.” A mãe de Jorge teria tido dezenove
filhos. Doze nascidos varões. Onze deles ganhariam os nomes dos apóstolos que
apareciam escritos abaixo de cada apóstolo, no quadro da derradeira ceia de
Jesus. Bartolomeu, Jacó, André, Pedro, João, Thomas, Felipe, Matheus, Tadeu.
Simão virou Simeão e Jacó II, Jácomo Luiz, que todos só chamavam Luiz. E Mário Jorge,
que os pais só chamavam pelos dois nomes quando era pra repreender. O décimo
segundo filho não tinha como dar-lhe o nome de Judas Iscariote.
E vieram sucessivos anos de
estiagem. As propriedades rural, transfiguradas em verdadeiros desertos
obrigavam os sertanejos a buscar alternativas outras de sobrevivência. Sem
inverno se consumiam as reservas de grãos dos vasos. O gado morria de fome. Em
tal situação era comum o esteio das famílias de sertanejos, os pais de família,
viajarem em busca de garantir o sustento da prole. O pai de Jorge foi embora,
pra trabalhar na indústria têxtil de Delmiro Gouveia. Depois foi trabalhar de
peão na usina de Paulo Afonso. Ali aprendeu a profissão de operador de máquina
pesada. Não demoraria, foi embora pra São Paulo, exercer sua nova função na
construção civil. Nos primeiros meses mandava dinheiro pelo correio. Aos poucos
foi se desobrigando desse compromisso. Chegaram boatos que constituíra nova
família no sudeste. Depois notícia nenhuma dele, tinha mais sua família do
sertão.
Quando fez nove anos de idade
Jorge adoeceu, de um mal que lhe comprimia os pulmões. Talvez tivesse asma.
Tanto seus pais, quanto seus irmãos mais velhos eram todos fumantes. O fato de
estar diariamente se expondo à fumaça de cigarro, em idade pueril, contribuiu
para levá-lo aquele precário estado de saúde. Depois de uma consulta, o médico
receitou uns remédios, e também recomendou que o menino passasse um tempo num
lugar onde respirasse ar puro. Por conta da doença, Jorge foi obrigado a viver
longe da família. Por dez longos anos o menino viveu no campo, sendo criado por
sua tia Aurora, no Sítio Mulungu. Esse exílio forçado faria com que fosse o
único dentre os irmãos que não teria tido a oportunidade de estudar. Vivera
quase como um ermitão. Sua escola foi o mato aprendeu a valorar exclusivamente as
coisas do campo. Conhecia os sinais dos céus, entendia se estava próximo o
início das invernadas.
Findo esse tempo, recuperada a
saúde, Jorge agora um rapaz, voltou à cidade. No entanto não mais se
acostumaria à vida urbana e voltou pra vida rurícola. Porém sentia-se na
obrigação de manter a casa de sua paternidade, com os irmãos mais novos que
ainda permaneciam em casa. O dia nem havia clareado, encangava uma parelha de
bois, ia até o barreiro enchia pipas e ancoretas, e abastecia d’água a casa
materna. Do silo tirava milho seco, passava no moinho e não deixava faltar fubá.
Uma única vaquinha, mantida no tempo seco, garantia o leite. Ovos e carne
sempre havia da sua criação de galinhas. No grotão não faltava uma abóbora de
caboclo, um cacho de bananas, uns tomates. E Jorge sem o saber conseguia
perpetuar uma premonição ditada por sua tia Aurora, ao dar de presente o quadro
da Santa Ceia, a sua mãe, que nem mais se lembrava daquele adágio em que disse:
“Enquanto o quadro permanecesse na parede da cozinha, o alimento estaria
garantido naquela casa.”
Muito tempo se passou. A mãe de
Jorge padecendo de doença grave veio a falecer. Sua tia Aurora deixou o Sítio
Mulungu, e foi morar na casa da cidade, pra terminar de criar os filhos da
irmã. Todos cresceram, estudaram, se formaram e foram embora. Apenas Jorge
permanecia sozinho eremita no Sítio Mulungu. Pelo menos uma vez por ano, os
irmãos marcavam um local, a casa de um deles, onde se reuniam para
confraternização natalina e de final de ano. Deles que residiam em São Paulo,
vindo de avião até Maceió, chegava a sua terra natal em carro de luxo, fretado.
Naquele ano o local marcado foi à
casa materna. Eis que na noite do réveillon, os dezoito irmãos se encontravam
na casa onde a maioria deles nascera. No momento em que os relógios marcaram
meia-noite, enquanto todos se abraçavam, brindavam com taças de champanhe e se
deliciavam com as massas de forno e peru, mais um daquela descendência acabara
de chegar, era Jorge. No seu jeito tímido de homem rude do campo, de pouca
conversa, cumprimentou e abraçou a todos. Cada irmão, disse naquela ocasião que
ia levar uma lembrança da casa da mãe. Taças de cristal, xícaras de porcelana
foram parar nas malas. Jorge quis o quadro da parede da cozinha. Antes porém uma
foto foi providenciada, onde os doze irmãos nascido varão sentaram-se à mesa. Estranhamente
se colocaram na mesma posição em que se encontravam os apóstolos, que lhe emprestaram os nomes, no quadro que
aparecia ao fundo do instantâneo. A Santa Ceia, por aquela irmandade
reproduzida contava também com a presença de Cristo.
Fabio Campos
Nenhum comentário:
Postar um comentário