
Se a gente olhar o passar do
tempo, pelo lado biológico, tudo o que os anos vão acrescentando as nossas
existências, é só deterioração. Por isso naquela casa, Seu Prudêncio estava
ficando imprudente, e Dona Rosa se despetalando. Mas nem sempre foi assim. E pra
que a gente entenda tudo direitinho, é preciso começar do começo. Dizer que Seu
Prudêncio e Dona Rosa um dia foram jovens. E que ele, apesar de ter nascido no
seio de família tradicional, nada quis com estudos. Gostava mesmo era da lida
com gado, viver fincando estaca, laçar boi, ordenhar vaca, prender e soltar gado no
curral, cavalgar no pasto. Amava a vida no campo. E pra diversão, as corridas de
mourão, as vaquejadas, as festas de quermesse, as novenas do santo padroeiro da
Fazenda Riachão. Justo numa dessas festas de gado, conheceu a jovem Rosinha,
por quem se apaixonou. A filha de Seu João Inácio um modesto agricultor, laçou
o coração do vaqueiro, e logo estariam casados. Senhor Florêncio Rêgo pai do
noivo, escolheu uma gleba no extremo oeste do seu imenso lote de terra. Desmembrou, e deu ao filho, dizendo que aquela era a sua parte da herança, e
que ali construísse sua moradia. Tudo perfeito, isso se Seu Prudêncio fosse
filho único, porém não era. Outros irmãos também almejavam tomar como herança,
aquela parte da propriedade. Por motivos óbvios, ficava mais próxima da cidade,
não tinha muita pedra, não era muito acidentado, um grotão como muito pasto, ia
encontrar o riacho Gravatá que cortava aquele trecho. Os seis filhos de seu Florêncio,
todos, assim como os cinco irmãos do vaqueiro recém-casado cobiçavam aquela
parte da fazenda Riachão. Porém o jovem Prudêncio, contraindo
matrimônio primeiro, recebeu aquela parte como herança. O lançar do olho da
cobiça da parentela dos Rêgo, talvez seja o motivo do que contaremos daqui pra
frente.
Na
empreitada de construir a casa de morada o jovens Prudêncio quis tê-la com todas as virtudes
que uma casa colonial possui. Num batente bem aprumado do sopé do serrote Pelado
ergueu imponente casarão assobradado. Toda ela num bloco único, rodeada de
alpendres. O que muito chamava a atenção eram as janelas, em grande quantidade.
Os balaústres conferiam graça, beleza, ao tempo que enriquecia de
historicidade, porque lembravam o período imperial brasileiro. O telhado tinha
frisos nos beirais e singelo arremate nas pontas. Plantas e árvores frutíferas
rodeavam a construção, o que a tornava ainda mais bela. Se o que tocava o
sentido da visão encantava, imagine se aos olhos de um atento observador acrescentarmos, os elementos que atingem e sensibilizam os outros sentidos. O adocicado
perfume liberado pelas flores, a brisa nas tardes prazenteiras, o sol matutino,
vindo amarelar as paredes em branco de cal. Um esplendor de céu em nuvens
de algodão navegando pra o profundo oceano azul, enquanto bandos de pardais e
garças em “vê” voavam lá pras bandas do horizonte.
Já está mais do que na hora de
falar da moléstia. O velho Prudêncio e Dona Rosa tiveram muitos filhos, porém
todos já se haviam crescido, estudado, e uma vez casados foram indo embora. Na herdade
daquele casal de anciãos, havia uma que era advogada, outro que era capitão da
aeronáutica, e até um que era médico. Desses que entende de ossos, só que
estavam longe, muito longe da casa do pai. Justo por volta dos setenta anos,
Seu Prudêncio deu de apresentar uma dor nos ossos, que muito lhe incomodava.
Todo ano quando chegava janeiro, época em que os céus trombeteavam em clarins
de relâmpagos e trovões, as providenciais trovoadas. O riacho dava de insultar
os baixios. Se amostrando em valentia, partia pra cima do gado, penteava o capim da
várzea, e como se brincasse de pião rolava imensas craibeiras.
Era tempo de Seu Prudêncio sentir fortes dores nos ossos. Era uma dor fria, implicante que lhe incomodaria para além das noites de inverno. Ora meu caro, dor nos ossos entreva qualquer um. E o esteio da casa se punha macambúzio. Em riba duma cama enrolava-se num lençol, do tipo abafa bufa, que lhe cobria do pescoço ao tornozelo. Danava-se a tomar chá de erva cidreira e quebra pedra, pra amenizar a moléstia. Ao dizer que o esteio da casa ficava entrevado, não é apenas força de expressão, estranhamente o esteio da casa mesmo. A linha principal, o pé direito, junto com os caibros roliços, nessa mesma ocasião, dava de ranger, e dar estalos como se gemesse e dor também sentisse. E outros males vieram além daquele. Dona Rosa apresentou uma erisipela, que empestou suas pernas e braços. Logo ela que era de pele clara, a moléstia se apresentava ainda mais grotesca. Braços e pernas num petrume horrendo se destacava do resto do corpo de pele rosácea da velha senhora. E não é que as paredes da casa, também deram de apresentar uma descamação semelhante à doença de Dona Rosa. Não demorou as paredes da casa, antes branquinhas, ficaram cheias de nódoas e manchas que lembravam enormes feridas necrosadas.
Era tempo de Seu Prudêncio sentir fortes dores nos ossos. Era uma dor fria, implicante que lhe incomodaria para além das noites de inverno. Ora meu caro, dor nos ossos entreva qualquer um. E o esteio da casa se punha macambúzio. Em riba duma cama enrolava-se num lençol, do tipo abafa bufa, que lhe cobria do pescoço ao tornozelo. Danava-se a tomar chá de erva cidreira e quebra pedra, pra amenizar a moléstia. Ao dizer que o esteio da casa ficava entrevado, não é apenas força de expressão, estranhamente o esteio da casa mesmo. A linha principal, o pé direito, junto com os caibros roliços, nessa mesma ocasião, dava de ranger, e dar estalos como se gemesse e dor também sentisse. E outros males vieram além daquele. Dona Rosa apresentou uma erisipela, que empestou suas pernas e braços. Logo ela que era de pele clara, a moléstia se apresentava ainda mais grotesca. Braços e pernas num petrume horrendo se destacava do resto do corpo de pele rosácea da velha senhora. E não é que as paredes da casa, também deram de apresentar uma descamação semelhante à doença de Dona Rosa. Não demorou as paredes da casa, antes branquinhas, ficaram cheias de nódoas e manchas que lembravam enormes feridas necrosadas.
As janelas, os olhos da casa. O
cartão postal daquela imponente casarão começara a se deteriorar. Os
esquadrilhos começaram empenar, em desalinho. As vidraças muitas
delas trincadas, foram se tornando embaçadas. As dobradiças enferrujadas
passaram a entortar, as folhas de madeira trabalhada lentamente iam se
desencaixando. O cupim comprometeu toda a estrutura e a casa vista assim, mais
parecia um mau-assombro.
Outros invernos mais viriam e com
eles outros males. De repente umas plantas exóticas que os filhos de Seu
Prudêncio trouxeram de países estrangeiros, plantadas no terreiro da casa,
começaram a liberar um pó branco, uma espécie de fungo que passou a estragar os
alimentos. Os grãos armazenados nos vasos guardados no paiol foram afetados. O
feijão além do gorgulho criou um mofo e apodreceu. A casa de farinha criou uma
pichilinga, que atacou as aves da fazenda: galinhas, patos e pássaros. Bem como as
criações de ovelhas e porcos, todos doentes. A casa toda foi invadida por
aquele maldito fungo. E Seu Prudêncio e Dona Rosa inadvertidamente coçaram os olhos
com as mãos contaminadas por aquele mofo, e acabaram ficando cegos.
Uma noite quente de verão se havia quando a maldição veio selar o destino daquela casa. Após a janta, o
velho Prudêncio pitava seu cigarro de palha e fumo picado, enquanto Dona Rosa
debulhava um rosário de contas negras. Preparavam-se pra se recolherem e dormir. Pouco a pouco o sertão ia silenciando. Aos poucos entregando seu
cansaço a noite de um céu agourento e carregado de maus presságios. De repente
uma rajada de vento forte escancarou a janela da cozinha, derrubou o candeeiro.
O querosene ganhou o lastro de madeira, e a língua de fogo foi com ele. Não
demorou muito e a casa, em seu imponente estilo império-colonial ardia. E as
silhuetas das árvores no entorno da casa, pareciam bruxos gigantes dançando em torno do clarão das chamas. Lá no alto do serrote do Pelado, bem lá no meio das
trevas, deu pra ouvir um gutural gemido. Era o estalo do teto da casa vindo a baixo, rasgando o ar, alumiado pelo brilho do olho da
coruja.
Fabio Campos
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