VIA APIA (29º Episódio de T.Fashall)


Naquele tempo. Sempre com essas palavras o sacerdote iniciava a leitura dos santos evangelhos. A dizer, aos fiéis que, entre tantas coisas, Jesus vivera sua Via Sacra, e em quinze Estações, é seu calvário narrado. Tagor também vivera sua via sacrificada. Só que a Via Apia. Em trinta cegos episódios estarão narrados. A grande batalha estava pra acontecer. Os brasões ricamente belos, a cima dos elmos dos soldados romanos. Seguia a linha de frente do pelotão, em ordem de batalha, Guarnecidos por pontiagudas flechas, lanças e escudos. Dois grandes exércitos em breve se confrontariam, Roma e Armagedon. A menina que tinha medo de escuro admirava-se de ver o mundo virar um grande conflito daquele jeito. Sobre a mesa do quartel general a massa de bravos guerreiros não passava de bonecos que o comandante movimentava com um pequeno rodo de madeira, ia montando sua estratégia sobre o mapa. 

As serras iam andando pra onde as nuvens as levassem. O homem encostado na pia de lavar louça, na cozinha, não passava de mais um retrato do cotidiano. Um pintor anônimo, quem sabe um dia o retratasse, e mesclaria cores quentes e frias na sua paleta. E ia ficar com cara de coisa vinda dos trópicos. Arte barata, vendida em feira de artesanato. Diferente de outros dias lá atrás. De tempos em que retratos eram feitos somente em dias solenes. Quando todos haveriam de ter tomado banho e penteado os cabelos exclusivamente pra se fazer o flagrante. O avô apararia o bigode, a avó colocaria perfume e pó de arroz no rosto. Um colar, herança de família, guardado especialmente para aquele momento usaria.

Pietro desceu do seu Fiat Uno, a plena Praça de Maio. Mulheres com seus lenços amarrados na cabeça ocupavam todos os bancos de mármore que adornavam a fonte d’água. Elas queriam ver seus jesus que estavam presos, talvez mortos, muitos desaparecidos. Luiz veio ao seu encontro, se cumprimentaram com efusivo abraço, e beijos na face como todo bom italiano gosta de se cumprimentar. Os pombos sem o menor receio vinham catar migalhas que caiam dos lanches dos meninos. O céu de Roma tinha duas caras bem definidas, no centro lembrava algo pintado por Michelângelo, como na abóbada da capela Cistina. E nos flancos parecia com o céu de Leonardo Da Vinci em Monalisa. Por trás de tanta beleza havia infelizmente a tragédia, não de duas apenas, mas de muitas guerras.
Manoela morava numa casa na vila de San Joseph, devido à separação do marido, foi morar na capital italiana. Alugou um apartamento bem próximo a Via Apia. Para o transporte de seus pertences acertou com Seu Antony da padaria. O caminhão de carregar lenha disponível estaria somente a tardinha. Tinha pressa, mesmo assim aceitou. Da única janela do apartamento, além de muros e construções, poucas coisas naturais conseguia ver. Um pé de marmeleiro, lá longe no quintal de uma casa do quarteirão da Rua do Sol. Não tinha certeza se a rua assim se chamava, porém, dali por diante, assim a denominaria. Também uma amendoeira quase atropelada pelos carros que incessantemente circulavam pela avenida, com seus faróis acesos a plena luz do dia. A negra pedraria do calçamento, com a umidade da névoa de inverno, refletiria ao cair da tarde sua luz tênue.

Os dias de jejum se intensificaram.  A menina que tinha medo de estouro de balões de aniversário, sentada a mesa, desenhava. E queria saber: por que não podia comer carne naquele dia? Os adultos de seu convívio, tinham opiniões vagas. Teve um que falou: “É por que estamos vivendo um tempo que precisamos renunciar a algo de que gostamos”. Um outro disse: "porque somos todos culpados, de ferir a carne de Jesus Cristo". Desconversaram. Dos rabiscos fortes da menina surgiam fadas que conseguiam pegar luas com uma facilidade impressionante. Também duendes, e meninos encrenqueiros que saltavam faceiros pra cima do branco sulfite. Saltavam e já iam fazendo o que mais gostavam, encrencar. Botavam apelidos nos outros, esfregavam seus pirulitos gosmentos no caderno dos colegas, empurravam restos de lápis pra banca vizinha. A árvore da felicidade também estava lá. E somente ela, podia realizar os sonhos todos das meninas e meninos. E vinham com seus livros, cheios de surpresas e uma fada madrinha com seu vestido de princesa, rodeada de garças, apesar de não ficarem tão belas, mas que dava pra entender perfeitamente o que eram.

O gari começava seu trabalho sempre às quatro da manhã. Já era cinco quando achou na calçada, cheia de sol e de orvalho, o desenho da menina. Ficou sem saber o que fazer com aquele reinado inteiro, só uma certeza tinha: tudo aquilo não caberia na sua carroça de lixo. Um avestruz completamente desorientado foi parar na lição, só porque começava com a letra “a”. A abelha por sua vez veio ver a amiga do desenho, e a menina pensou que a mesma tivesse reconhecendo a colega, na verdade viera atraída pelo açúcar do seu copo de refrigerante.

A procissão passou pela rua. Jesus caiu pela terceira vez, a rua ficou às escuras. As velas das lanternas continuaram acesas. As matracas labutavam serviço de ferro e madeira. O mundo quase indiferente estávamos na terceira queda que Jesus deu. O filho de dona Cândida pulou o muro da escola pra gazear aulas. Isso foi lá trás, ainda quando Jesus caíra pela segunda vez. A mãe não imaginava que ele estivesse se envolvendo com coisa perigosa. Jesus se encontrando com sua mãe. O bedel avisou ao administrador, que avisou a oficiala, que avisou a conselheira para que tomasse as devidas providências. Isso foi bem antes. E Jesus nem tinha ainda sido condenado. Jesus passou a noite na cadeia.  Os anjos, eles fizeram tudo tudo que podiam, o menino fora tentado, e tentação, sempre fora algo muito atraente. O Simeão que ajudou a carregar o madeiro pesado, de bicicleta vinha pela rua, vinha com uma marmita no bagajeiro, voltava do trabalho. Então o soldado o obrigou. O irmão do reverendíssimo disse que jamais havia provado ervas aromáticas, que causavam alucinações. Verônica a irmã dele tentou passar-lhe um lenço pelos gradis mais foi contida, desconfiaram que ela consigo trouxesse drogas. Verônica mesmo assim teve tempo de enxugar-lhe o rosto. O menino seu sobrinho infelizmente não podia dizer o mesmo. As mulheres lastimosas, o dia inteiro, ficavam sentadas nos degraus, esperando a hora da visita.  Ele era acusado de ter levado pra dentro do internato, pro colegas provarem. Isso era muito grave.

A xícara de café com seu poder invisível, belamente indizível, atraiu a moça. Moça que não sabia da missa um terço, mas que tinha lábios perfeitos. As verdades às vezes se escondiam por trás de meias verdades. E isso queimava, quando não se sabia esperar a hora de degustar. Pois pra tudo tem hora. Hora pra avançar e recuar.  A casa era muito velha, e as paredes sujas tinham marcas de tiros. No meio do terreiro ficaram os apetrechos de colocar na parelha de bois de arado, bois que agora estavam mortos. Por que se demoravam, em que confiavam? O que esperavam? Seu Maximiliano ficou quase um século se perguntando. Melhor vender o gado a vê-lo morrer. E o barbeiro disse: aquele velho é um mentiroso, onde já se viu dizer, com tanto vigor que se tem mais de século de vida. Cento e quatro anos foi o que disse que tinha. Com aquela lucidez e potência. Não seja por isso, dona Deolinda mesmo, não acreditava que tivesse na cacunda, noventa e um. E perguntou se alguém sabia alguma coisa sobre Maria Auxiliadora, uma que ia sempre com ela pra igreja. Se viva ainda estivesse com noventa e cinco estaria, pois era quatro anos mais velha que ela. O filho Tagor a havia encontrado na igreja, esperava a hora da confissão, Esqueceu, porem de dizer à mãe que a havia encontrado.

Marcos os viu, quase debaixo do meio dia, meninos pintados com carinhas de coelhos. Estavam voltando da escola. Isso o fez lembrar, da sua infância, sofrida de inda agora. A mãe costurava pra ganhar uns trocados. E ele era quem ia levar as encomendas. Um dia levou umas roupas na casa de comadre Iolanda. Acabou ganhando um vintém com o qual comprou um sorvete. Tomou tudo na rua, pra não chegar a casa com ele. A mãe acabaria descobrindo pela lambuzeira na roupa. Semana Santa os costumes de sair as procissões, de Nosso Senhor dos Passos indo ao encontro de Nossa Senhora da Soledade. Os cânticos chorosos, as matracas, as vestes lilás do pároco e acólitos. O turíbulo, o cheiro de incenso. As meninas, elas sabiam de uma história de procurar aleluia, dentro da igreja, as escuras. A fogueira ardendo lá fora, abandonada. A consagração dos santos óleos, a queima das cinzas da quarta-feira do ano anterior, a que dera início a quaresma.

A menina que tinha medo de escuro queria saber: por que na quaresma havia mais moscas que em outras épocas do ano? Inácia, a preta velha, com seu rosto luzidio seus lábios enormes, a carapinha presa debaixo do lenço, o ventre avolumado. Olhando de soslaio lá da cozinha disse que sabia o porquê. E de lá mesmo, da beira do fogo, onde cuidava de vigiar o leite, disse: “É por conta de nossos pecados. Está no velho Testamento, na Bíblia. Pela dureza do coração do faraó vieram às sete pragas sob o Egito. Entre nós, agora ocorre o mesmo, depois do carnaval sofremos alguns castigos, mandado por Deus. Regiões como a nossa fica muito tempo sem chover. Vem pragas de gafanhoto, na roça de feijão, de lagartas na roça de milho. Os barreiros e barragens de água secam, e moscas invadem as casas. Isabela tinha outra opinião. “As moscas invadem as casas por conta do seu ciclo de vida, elas precisam se reproduzir. Então põem seus ovos nos monturos, e quando vem as trovoadas esses ovos ficam expostos ao sol, e eclodem provocando uma superpopulação delas, portanto, nada a ver com semana Santa. Desconversaram.”

As sombrinhas naqueles momentos de fé, substituídas eram por sóbrios guarda-chuvas. As cores ou qualquer coisa que denotasse alegria sutilmente se escondiam, era quaresma. Crianças vestidas de frades se pareciam franciscaninhos, miniaturizados. A cabeça raspada, a auréola de cabelos, chinelos de monge nos pés. As lanternas acesas. A procissão do fogaréu. Os passos apressados nas ladeiras, a cantoria cansada. Esforços humanos, superação. A menina que tinha medo de escuro, também tinha medo de fogos de artíficios, na procissão ia. Agarrava com força o avô, choramingava. Não sabia a letra do canto por inteiro, e cantava só o refrão: “Com a Virgem dolorosa, nossa mãe tão piedosa/ Perdoai-me meu Jesus/ Perdoai-me meu Jesus.”

A rigidez das tradições, a discrepância de uma mesa farta nos dias grandes. Desde a quarta-feira santa, chamada também de quarta-feira maior. O tríduo pascal, de quinta-feira ao sábado de aleluia. Os chamados dias grandes. Jesus tinha passado quarenta dias orando, e jejuando. No entanto, poucos, quase ninguém, queria ficar uma semana sem satisfazer os caprichos do corpo. Sem querer abrir mão dos vícios, pelos quais os corpos pediam, apenas por uns poucos dias. Abster-se de comer carne não era suficiente. Era preciso renunciar a muito mais coisas do mundo. A ceia pascal essa sim, podia vir regada a vinho e peixes, guloseimas de chocolate. A menina que tinha medo de gatos, queria saber o que tinha a ver o coelho com a páscoa? Na dúvida a mãe disse que perguntasse a professora, na escola. Ao retornar disse que a tia tinha dito, que era porque coelhos eram muito férteis. E lembravam páscoa que era vida nova. Mas ficou no mesmo porque ninguém soube lhe explicar com clareza o que era ‘férteis’. Desconversaram.


Fabio Campos, 15 de Abril de 2017.

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