
As serras iam andando pra onde as
nuvens as levassem. O homem encostado na pia de lavar louça, na cozinha, não
passava de mais um retrato do cotidiano. Um pintor anônimo, quem sabe um dia o
retratasse, e mesclaria cores quentes e frias na sua paleta. E ia ficar com cara
de coisa vinda dos trópicos. Arte barata, vendida em feira de artesanato.
Diferente de outros dias lá atrás. De tempos em que retratos eram feitos
somente em dias solenes. Quando todos haveriam de ter tomado banho e penteado
os cabelos exclusivamente pra se fazer o flagrante. O avô apararia o bigode, a
avó colocaria perfume e pó de arroz no rosto. Um colar, herança de família,
guardado especialmente para aquele momento usaria.
Pietro desceu do seu Fiat Uno, a
plena Praça de Maio. Mulheres com seus lenços amarrados na cabeça ocupavam
todos os bancos de mármore que adornavam a fonte d’água. Elas queriam ver seus
jesus que estavam presos, talvez mortos, muitos desaparecidos. Luiz veio ao seu
encontro, se cumprimentaram com efusivo abraço, e beijos na face como todo bom
italiano gosta de se cumprimentar. Os pombos sem o menor receio vinham catar
migalhas que caiam dos lanches dos meninos. O céu de Roma tinha duas caras bem
definidas, no centro lembrava algo pintado por Michelângelo, como na abóbada da
capela Cistina. E nos flancos parecia com o céu de Leonardo Da Vinci em
Monalisa. Por trás de tanta beleza havia infelizmente a tragédia, não de duas
apenas, mas de muitas guerras.
Manoela morava numa casa na vila
de San Joseph, devido à separação do marido, foi morar na capital italiana.
Alugou um apartamento bem próximo a Via Apia. Para o transporte de seus pertences
acertou com Seu Antony da padaria. O caminhão de carregar lenha disponível
estaria somente a tardinha. Tinha pressa, mesmo assim aceitou. Da única janela
do apartamento, além de muros e construções, poucas coisas naturais conseguia
ver. Um pé de marmeleiro, lá longe no quintal de uma casa do quarteirão da Rua
do Sol. Não tinha certeza se a rua assim se chamava, porém, dali por diante,
assim a denominaria. Também uma amendoeira quase atropelada pelos carros que
incessantemente circulavam pela avenida, com seus faróis acesos a plena luz do
dia. A negra pedraria do calçamento, com a umidade da névoa de inverno,
refletiria ao cair da tarde sua luz tênue.
Os dias de jejum se
intensificaram. A menina que tinha medo
de estouro de balões de aniversário, sentada a mesa, desenhava. E queria saber:
por que não podia comer carne naquele dia? Os adultos de seu convívio, tinham
opiniões vagas. Teve um que falou: “É por que estamos vivendo um tempo que
precisamos renunciar a algo de que gostamos”. Um outro disse: "porque somos
todos culpados, de ferir a carne de Jesus Cristo". Desconversaram. Dos rabiscos
fortes da menina surgiam fadas que conseguiam pegar luas com uma facilidade
impressionante. Também duendes, e meninos encrenqueiros que saltavam faceiros
pra cima do branco sulfite. Saltavam e já iam fazendo o que mais gostavam,
encrencar. Botavam apelidos nos outros, esfregavam seus pirulitos gosmentos no
caderno dos colegas, empurravam restos de lápis pra banca vizinha. A árvore da
felicidade também estava lá. E somente ela, podia realizar os sonhos todos das
meninas e meninos. E vinham com seus livros, cheios de surpresas e uma fada
madrinha com seu vestido de princesa, rodeada de garças, apesar de não ficarem
tão belas, mas que dava pra entender perfeitamente o que eram.
O gari começava seu trabalho
sempre às quatro da manhã. Já era cinco quando achou na calçada, cheia de sol e
de orvalho, o desenho da menina. Ficou sem saber o que fazer com aquele reinado
inteiro, só uma certeza tinha: tudo aquilo não caberia na sua carroça de lixo.
Um avestruz completamente desorientado foi parar na lição, só porque começava
com a letra “a”. A abelha por sua vez veio ver a amiga do desenho, e a menina
pensou que a mesma tivesse reconhecendo a colega, na verdade viera atraída pelo
açúcar do seu copo de refrigerante.
A procissão passou pela rua.
Jesus caiu pela terceira vez, a rua ficou às escuras. As velas das lanternas
continuaram acesas. As matracas labutavam serviço de ferro e madeira. O mundo
quase indiferente estávamos na terceira queda que Jesus deu. O filho de dona
Cândida pulou o muro da escola pra gazear aulas. Isso foi lá trás, ainda quando
Jesus caíra pela segunda vez. A mãe não imaginava que ele estivesse se
envolvendo com coisa perigosa. Jesus se encontrando com sua mãe. O bedel avisou ao administrador, que avisou a
oficiala, que avisou a conselheira para que tomasse as devidas providências.
Isso foi bem antes. E Jesus nem tinha ainda sido condenado. Jesus passou a
noite na cadeia. Os anjos, eles fizeram
tudo tudo que podiam, o menino fora tentado, e tentação, sempre fora algo muito
atraente. O Simeão que ajudou a carregar o madeiro pesado, de bicicleta vinha
pela rua, vinha com uma marmita no bagajeiro, voltava do trabalho. Então o
soldado o obrigou. O irmão do reverendíssimo disse que jamais havia provado
ervas aromáticas, que causavam alucinações. Verônica a irmã dele tentou
passar-lhe um lenço pelos gradis mais foi contida, desconfiaram que ela consigo
trouxesse drogas. Verônica mesmo assim teve tempo de enxugar-lhe o rosto. O
menino seu sobrinho infelizmente não podia dizer o mesmo. As mulheres
lastimosas, o dia inteiro, ficavam sentadas nos degraus, esperando a hora da
visita. Ele era acusado de ter levado
pra dentro do internato, pro colegas provarem. Isso era muito grave.
A xícara de café com seu poder
invisível, belamente indizível, atraiu a moça. Moça que não sabia da missa um
terço, mas que tinha lábios perfeitos. As verdades às vezes se escondiam por
trás de meias verdades. E isso queimava, quando não se sabia esperar a hora de
degustar. Pois pra tudo tem hora. Hora pra avançar e recuar. A casa era muito velha, e as paredes sujas
tinham marcas de tiros. No meio do terreiro ficaram os apetrechos de colocar na
parelha de bois de arado, bois que agora estavam mortos. Por que se demoravam,
em que confiavam? O que esperavam? Seu Maximiliano ficou quase um século se
perguntando. Melhor vender o gado a vê-lo morrer. E o barbeiro disse: aquele
velho é um mentiroso, onde já se viu dizer, com tanto vigor que se tem mais de século
de vida. Cento e quatro anos foi o que disse que tinha. Com aquela lucidez e
potência. Não seja por isso, dona Deolinda mesmo, não acreditava que tivesse na
cacunda, noventa e um. E perguntou se alguém sabia alguma coisa sobre Maria
Auxiliadora, uma que ia sempre com ela pra igreja. Se viva ainda estivesse com
noventa e cinco estaria, pois era quatro anos mais velha que ela. O filho Tagor
a havia encontrado na igreja, esperava a hora da confissão, Esqueceu, porem de
dizer à mãe que a havia encontrado.
Marcos os viu, quase debaixo do
meio dia, meninos pintados com carinhas de coelhos. Estavam voltando da escola.
Isso o fez lembrar, da sua infância, sofrida de inda agora. A mãe costurava pra
ganhar uns trocados. E ele era quem ia levar as encomendas. Um dia levou umas
roupas na casa de comadre Iolanda. Acabou ganhando um vintém com o qual comprou
um sorvete. Tomou tudo na rua, pra não chegar a casa com ele. A mãe acabaria
descobrindo pela lambuzeira na roupa. Semana Santa os costumes de sair as
procissões, de Nosso Senhor dos Passos indo ao encontro de Nossa Senhora da
Soledade. Os cânticos chorosos, as matracas, as vestes lilás do pároco e
acólitos. O turíbulo, o cheiro de incenso. As meninas, elas sabiam de uma
história de procurar aleluia, dentro da igreja, as escuras. A fogueira ardendo
lá fora, abandonada. A consagração dos santos óleos, a queima das cinzas da
quarta-feira do ano anterior, a que dera início a quaresma.
A menina que tinha medo de escuro
queria saber: por que na quaresma havia mais moscas que em outras épocas do
ano? Inácia, a preta velha, com seu rosto luzidio seus lábios enormes, a
carapinha presa debaixo do lenço, o ventre avolumado. Olhando de soslaio lá da
cozinha disse que sabia o porquê. E de lá mesmo, da beira do fogo, onde cuidava
de vigiar o leite, disse: “É por conta de nossos pecados. Está no velho
Testamento, na Bíblia. Pela dureza do coração do faraó vieram às sete pragas
sob o Egito. Entre nós, agora ocorre o mesmo, depois do carnaval sofremos
alguns castigos, mandado por Deus. Regiões como a nossa fica muito tempo sem
chover. Vem pragas de gafanhoto, na roça de feijão, de lagartas na roça de
milho. Os barreiros e barragens de água secam, e moscas invadem as casas.
Isabela tinha outra opinião. “As moscas invadem as casas por conta do seu ciclo de
vida, elas precisam se reproduzir. Então põem seus ovos nos monturos, e quando
vem as trovoadas esses ovos ficam expostos ao sol, e eclodem provocando uma
superpopulação delas, portanto, nada a ver com semana Santa. Desconversaram.”
As sombrinhas naqueles momentos
de fé, substituídas eram por sóbrios guarda-chuvas. As cores ou qualquer coisa
que denotasse alegria sutilmente se escondiam, era quaresma. Crianças vestidas
de frades se pareciam franciscaninhos, miniaturizados. A cabeça raspada, a
auréola de cabelos, chinelos de monge nos pés. As lanternas acesas. A procissão
do fogaréu. Os passos apressados nas ladeiras, a cantoria cansada. Esforços
humanos, superação. A menina que tinha medo de escuro, também tinha medo de
fogos de artíficios, na procissão ia. Agarrava com força o avô, choramingava.
Não sabia a letra do canto por inteiro, e cantava só o refrão: “Com a Virgem
dolorosa, nossa mãe tão piedosa/ Perdoai-me meu Jesus/ Perdoai-me meu Jesus.”
A rigidez das tradições, a
discrepância de uma mesa farta nos dias grandes. Desde a quarta-feira santa,
chamada também de quarta-feira maior. O tríduo pascal, de quinta-feira ao
sábado de aleluia. Os chamados dias grandes. Jesus tinha passado quarenta dias
orando, e jejuando. No entanto, poucos, quase ninguém, queria ficar uma semana
sem satisfazer os caprichos do corpo. Sem querer abrir mão dos vícios, pelos
quais os corpos pediam, apenas por uns poucos dias. Abster-se de comer carne
não era suficiente. Era preciso renunciar a muito mais coisas do mundo. A ceia
pascal essa sim, podia vir regada a vinho e peixes, guloseimas de chocolate. A
menina que tinha medo de gatos, queria saber o que tinha a ver o coelho com a páscoa? Na dúvida a mãe
disse que perguntasse a professora, na escola. Ao retornar disse que a tia
tinha dito, que era porque coelhos eram muito férteis. E lembravam páscoa que
era vida nova. Mas ficou no mesmo porque ninguém soube lhe explicar com clareza
o que era ‘férteis’. Desconversaram.
Fabio Campos, 15 de Abril de 2017.
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