Imagine uma casinha de taipa. Tosca,
encostada na sapata do rio Ipanema. Fincada antes das curvas das corredeiras. Telhado
baixo, de limo enegrecido, um fio de fumo se elevando das frestas. Dezesseis
infâncias, e duas criaturas adultas ali se criavam. Mais adiante outra, e acolá
mais outros casebres, melancolicamente, aflitos de pobreza. De abundância a
vegetação, que deu nome ao lugar, Maniçoba. Os destinos rumavam pra urbe, muito
embora vidas convergidas, pro entorno dali. O protagonista do nosso causo, Zé
Sapo, ali nascera no ano de 1926. Das mãos do padre Bulhões, na igreja Matriz
de Senhora Sant’Ana, recebeu os santos óleos. Batizado e consagrado a Deus com
o nome de José Gomes.
Vamos contar de Zé Sapo. Retalhos,
duma história contada pelo próprio, na escola do Bebedouro. Num misto entre
atentos e eufóricos, os alunos o ouviram, e riram, e brincaram porque estava
caracterizado de palhaço. Se ao menos um deles tiver retido algo do que disse,
creio, tenha se dado por satisfeito. Filho de pais negros, descendentes de
escravos africanos. Seus avós maternos habitaram o quilombo de São Jorge, hoje
povoado Jorge, município de Poço das Trincheiras. Teriam sido trazidos do
vizinho estado de Pernambuco para serem comercializados aqui em Alagoas,
vendidos seriam pra prestarem serviços, nas lavouras de feijão, milho e
algodão, a depender das habilidades, podiam ir pras cozinhas dos senhores donatários,
nas tarefas domésticas, pro trato com rebanhos, pra ordenha ou pra casa de farinha.
Além de amarrados pelos pulsos tinham uma corrente de ferro ligando um ao outro
pelo pescoço. Em fila indiana caminhavam por muitas léguas, tendo direito a
descansar somente quando cavalos e capitães-do-mato precisavam comer e beber
água. Num determinado pernoite, seu avô, pra defender a honra de sua avó, se
envolveu numa luta corporal, de “mãos limpas” com um jagunço. Usando golpes de
capoeira nocauteou o cabra, desamarrou outros negros, vindo a provocar uma fuga
em massa, um incêndio no acampamento, ajudou a fugirem mata à dentro. Ainda
criança conheceu seus avós morando numa comunidade chamada alto dos negros, que
existe até hoje na periferia de Santana do Ipanema.
Zé Sapo estudou no Grupo Escolar
Padre Francisco Correia. A saliência dos seios da face, os olhos minúsculos,
dentro duma caixa ocular semi-afundada, a carapinha na cabeça, e - completando
o sinistro - os dentes, como se inventados de brincar do lado de fora da boca, inspirou
o apelido. Na juventude não gostava da
alcunha de anfíbio, porém nunca brigou com alguém por conta disso. Vivenciou
belos dias nos tempos áureos, da vida do rio Ipanema. Amigos íntimos menino e
rio. Banhos nas cheias, enfrentando as águas bravias, braçadas fortes
desafiando as “panelas” os redemoinhos d’água. Os jogos de bola no areal,
também filhos de gente importante, iam convescotes à beira do rio. Trajando alegres
calções de banho, levavam cestas de lanche, moças e rapazes desafiavam, a ele e
outros meninos pobres, a darem pulos acrobáticos de um alto lajedo que terminava
na água, arriscavam a vida em troca de um pão com carne frita, e um copo de
refrigerante. Tinha por volta de nove anos quando viu o rio dar a maior cheia
de sua história. Foi uma cheia realmente grande, assustadora! Chegou com tanta
força, e tão depressa, que sua mãe teve que correr a apanhar os panos lavados,
estendidos sobre os pés de crote e carrapateira na encosta do curso d’água. E
até a noite daquele dia, choveu mais e mais, causando apreensão. Na cabeceira
do rio chovia, de modo que as águas ameaçaram chegar ao casebre onde Zé Sapo
morava com seus pais e quinze irmãos. Ficaria conhecida como a cheia que teria
lavado os degraus da igreja da cidade, muito embora, não teria sido os degraus
da igreja Matriz de Senhora Santana, e sim da igrejinha do Bebedouro.
Em 1939, o mundo viu iniciar a Segunda
Guerra Mundial. Três anos depois chegaria a Santana do Ipanema, com a
convocação de reservistas do serviço militar. “Pracinhas” santanenses iriam
engrossar as fileiras da Força Expedicionária Brasileira. Entre os trinta e
poucos homens convocados, estava Zé Gomes. Debaixo dum sol solene, e quente,
perante a bandeira hasteada, prestaram juramento de defender com honra, e a
própria vida, a pátria mãe gentil, em terras Italianas! A porta da Cadeia, a
estreita Rua do Sebo, o alvorecer escaldante, testemunhas do ato solene! Major José
Maria Correia, vindo especialmente da capital, foi o encarregado de vistoriar e
selecionar o contingente. Monte Castello e Collecchio jamais veriam nosso herói.
O dia do embarque, sem aviso, foi antecipado. Zé Sapo era motorista do único
farmacêutico da cidade, Seu Moreninho. No dia da partida, se encontrava no
povoado Tanquinhos, no vizinho estado de Pernambuco. Atendendo chamado, o
boticário fora encontrar um amigo, que solicitara sua presença, alegando estar
muito doente, na verdade era pra uma farra. Três dias depois estavam de volta.
Manhã de domingo de carnaval. Ano
qualquer, de 2000 adiante. De azul anil, vasto céu, admoestado por nuvenzinhas
pálidas de verão. Praça do Monumento tomada de povo, de troças e de folia.
Algazarra de moleques, mela-mela. No início da Rua Rotary, surgia o folião
solitário, sem estar só. Os olhares todos, pra ele, iam. Enchendo o Largo de sorriso, de alegria, de
cor colorindo. Blusa bufona e Macacão - extravagantes - sapatos pastelão. O
rosto pan-cake Pierrot. Dalí por diante, o calendário, como se tivesse avariado,
repetiria tantas e tantas vezes a mesma cena - película de filme em pane - a
cada ano. Ópera do malandro, dum ato só. À cabeça, chapéu caravela, ora avião,
ora nave espacial - centro das atenções - engenhocas de miniaturas animadas. Como
se os pensamentos, materializando-se saíssem do fantasioso cérebro do artista -
saltimbanco - mambembe.
Fabio Campos