No Poço das Águas Corredeiras


A menina estava lá. Talvez dez anos, ou dois anos mais que isso. Um pequeno chapéu de rendinha de filó, engomado, pousado a cabeça. Donde por baixo derramava-se, exuberante cascata de negro cabelo liso, que lhe ia ao colo. O vestido alvíssimo quase que tocava as meias brancas suplantadas num singelo par de sapatos igualmente brancos. Parecia estar muito triste. De verdade, triste estava. Sentada a um dos bancos da Praça do comércio de Santana do Ipanema. Olhava... Uma borboleta? Sim era. Uma pequena borboleta de asas amarelas, pousada no encosto de braço do banco. Fixamente olhava. Era uma fria tarde, triste, plúmbea. Havia lágrimas que se derramavam pelo rostinho. Teimosas, caíam, em suas mãos inertes. Demorou-se por um tempo infindável e levantou-se dali. Pôs-se a andar, e era como se a calçada de veludo fosse. O menor barulho, nada se ouvia. O vento, nem o pipilar dos pardais, vozes dos transeuntes, nada. Santana do Ipanema como que deserta. No passeio só a menina. Tendo de vida mesmo, só o inseto alado. Desceram a Rua Barão do Rio Branco. A borboleta borboleteando a menina, indo para além da ponte do padre.

À porta da igreja Matriz de Senhora Sant’Ana belo mancebo, do breu interior surgido. Chapéu de palha, roto nas pontas, às duas mãos. Com leve sofreguidão amassava as abas. Posto à cabeça cobrir-lhe-ia parte do escorrido cabelo negro. A fronte, de tez mais alva. Barba rala a desenhar-lhe a face. Surrada camisa, calça igualmente velha, enrolada ao meio da perna, alpercatas de couro cru. Rosto borrado de fumo denunciava-lhe carvoeiro. Todos os dias, sacos de carvão enchia e rumava pelas ruas a anunciar: “-Olha o carvão!”. Em vão tentara se confessar com o padre Bulhões. O pároco estava em jornada missionária. Se tivesse conseguido, talvez saísse dali menos desolado. O serrote do Cruzeiro por testemunha, calado, de verde esmaecido. Um céu desbotado, de nuvens cheias de angústia, pros lados do Alto da Cajarana. Ampliando-lhe n’alma vontade de morrer, morto estava. Diria ao padre do crime que cometera.

Do que fizera à filha do Coronel Serra Negra. Se o descobrissem, jamais o perdoariam, era melhor dar fim a própria vida. Rememorava o dia fatídico. Era só no que pensara, desde então, por horas, dias, meses, anos a fio. Era só em que pensava. Ao levar o saco de carvão para a dispensa do coronel, outra vez, mais uma vez a viu. A menina deitada à cama, no quarto. Sempre vira, todas as vezes que ali fora, cândida cena. A porta entre aberta. O corpo sob luz diáfana varando a cortina fina, aura rósea, virginal. Perfume de suave fragrância das cobertas fluindo, da intocável flor de lótus, guardada sob a calcinha de algodão e fitas de cianina. Indo o cheiro às aguçadas narinas encarvoadas. Não podia tocá-la, mesmo assim aquele homem o fez. Não podia, ainda mais por ele! Cometia dolo de crime qualquer que o fizesse! Amava a menina, ela nunca poderia saber. Um pecado incrustado a sua carne, sobre a pele, nunca, jamais deveria dali ganhar forma, do consciente sair. Como jamais saíra. A ponto de invadir o quarto da ninfeta, a tocar-lhe os pequenos seios. Não o fez, nunca faria, delirava. Suas imensas mãos desadestradas na rudeza do campo, nunca tocariam a púbis inefável, crime imperdoável! Pecado venial. Sentia ele, merecedor de morte e morte cruel! Por tudo o que vira e desejava não ter visto! O coronel! Não! Não queria acreditar que fosse capaz daquilo! 
  
Coronel Serra Negra, homem talhado no bronze. A sisudez no trato e o caráter ferrugíneo de quando vivera assim retrataram-no à praça. Pelo que representava virou figura no rol dos vultos de nossa história. Figura imorredoura. Tudo pronunciado de sua boca, lei seria. Seus atos, alguns até corriqueiros virados lenda. Causos densamente narrados de roda em roda de conversas de outrora. Diziam de feitos heroicos, de atos bravios na guerra do Paraguai. De medalhas de honra repousando em cofre depositadas. Orgulho de família, passado glorioso. O coronel tivera com dona Domiciana oito filhos, sete varões e a caçula Maria Engrácia, a menina do banco da praça. Coronel fundou em Santana do Ipanema a primeira escola de esgrima. E o primeiro pelotão dos aspirantes a Agulhas Negras das matas e sertões.

A um terreno baldio, por trás da casa do padre encontraram o corpo da menina. Havia dois dias desaparecida. Chovia à dias. O coronel havia suspendido as buscas, ao longo do rio por conta da cheia. Os meninos que voltavam do mato, com alçapões e gaiolas, encontraram-na morta. Um deles viera chamar alguém pra ver. O delegado Bento e o soldado Faustino, esbaforidos chegaram ao local. Os lindos olhos vitrificados contemplavam o céu, o nariz afilado pra lá apontava. A boca entreaberta, como se por ali, tivesse escapado o último halo de vida. O vestido branco, o frágil corpo comprimindo a relva contra o solo negro, úmido. Hematomas no pescoço indicavam que talvez tivesse sido morta por asfixia. Formigas subindo-lhe pelo pescoço e braços, a explorar aquela imensa boneca de pele alva, inerte, levemente rosácea, rica em proteína que se decompunha. Uma borboleta de asas amarelas, como se costurasse no ar uma sinfonia muda, convidou a menina pra passear, e se foram as duas.

Percival, o carvoeiro, estava profundamente perturbado. Estava no poço das águas corredeiras, além do Bebedouro. Na encosta do rio as mulas pastavam. Afogado em pensamentos o rapaz contemplava o torvelinho de correnteza bravia. Buscava sem encontrar, coragem para ataviar os animais. Impor-lhes cargas, e ganhar a vereda que dava pra rua. Coronel Serra Negra partira em seu encalço. Enquanto avançava o cavalo, outro sinistro se delineando, aconteceria em breve. O coronel conjecturava se abordaria o carvoeiro, indagando-lhe sobre o que conseguira ver naquele dia, ou se chegava sacando sua arma e desferindo-lhe os tiros fatais. Estava decidido, não mais importava saber o que vira o carvoeiro. Se o que ele presenciara acabara levando sua filha à morte, também ele teria que morrer. Chegou atirando. Tanto era o ódio que fez o cavalo avançar por pedregulho falso, íngreme. Os projéteis ricochetearam na pedra sem alcançar o alvo. Cavalo e cavaleiro despencaram no precipício. Já o rapaz, dum salto projetara seu corpo ágil no ar. Alçou voo indo parar no ventre do espumante turbilhão d’água sanguineo. Tudo estava consumado. Homens, cavalo, armas, para todo o sempre, selados os destinos. O rapaz à porta da igreja matriz perdido em pensamentos. A menina ao banco da praça brincava com a borboleta. O coronel talhado no bronze, do alto do pedestal contemplava - as pedras que um dia fora - o profundo poço das águas corredeiras.

Fabio Campos   

A Ponte e o Padre


O Padre
Cônego José Bulhões, por muitos anos - especificamente os que preambularam o século vinte - à frente do rebanho do povo de Deus, na terra do sol e do mandacaru. Filho de família tradicional deixou tudo pra ser soldado de Cristo. Empunharia um revólver se assim a situação exigisse. Indo a cavalo levava evangelho e hóstia pros viventes, anciãos e enfermos ditos cristãos. Andante numa terra onde a lei de mais vigor era a darwiniana, o mais forte subjugando o mais fraco. Agarrou-se até ferir o coração, à espinhosa missão de desentortar almas. Com paixão cristificante, abraçou à missão de conduzir ovelhas peregrinas, gente penitente de suas cruzes. Com igual intensidade amava e odiava aquele povo, de dúbias vicissitudes. A um só tempo, desletrados de oportunidades, sem cabestros, nem parcimônias no doar-se, de humildade locupletados. O tanto que carecia de bens sobejavam de hospitalidade a um estrangeiro a sua porta.

Padre Bulhões tinha fama de homem rígido nos tratos. Traços amplamente imprimidos a sua personalidade, talvez trazido dos laços familiares, ou herdade da vida religiosa. Um São Paulo que não careceu de uma visão, pra perseguir os seus. Perseguia-os até torná-los filhos de Deus, a lei do a pulso, se preciso fosse. Casava amancebados, confessava e ditava expiações aos pecadores arrependidos, ou orgulhosos. Precisava de meses à fio, pra varrer, sob as patas de seu cavalo, a imensa paróquia que conduzia. Ia a Vila do Capim, hoje Olivença; Pedrão e Gavião, à hoje Olho D’água das Flores; povoado Riacho Grande, hoje Senador Rui Palmeira; Caldeirão, hoje São José da Tapera; Sítio Cedro e Serra da Caiçara, na atual Maravilha; Sitio Pilões, município de Ouro Branco;  Povoado Tanquinhos;  Serra do Poço das Trincheiras;  A leste ia até a Pedra do Urubu, pertencente a Dois Riachos e mais uma centena de novenas, e capelinhas, por ele erguida, futuras paróquias, sob a égide de santos católicos. Dom Santino Maria Coutinho, arcebispo da arquidiocese de Maceió nomeou-o pároco da paróquia de Senhora Sant’Ana. A igreja matriz ainda não adquirira torre de dez côvados de altura. Assentada na parte arribada das ribanceiras do Ipanema e do riacho Camoxinga. Este de cá, transpassado de singelo pontilhão.   

A Ponte
Lá estava assentada, a confluência do rio e riacho. Enquanto o Camoxinga, lânguido se entregava ao Ipanema, Riacho João Gomes, lá do outro lado desembocava. Exato no vértice da cruz de águas - bem ali onde Jesus, na hora dolorida, recostou a cabeça - o padre daria de habitar imponente casarão. A casa do pároco era construção solta, resvalada no batente do riacho. Concebida de alegre arquitetura colonial. Rodeada de vegetação briófita, que escalava pilares dos telheiros profusos, Barroco.  As manhãs brincantes e vinha o sol banhar-se ao regaço, faceiro, platino como se posasse a um quadro. Se a aura crepuscular, nigromante ar plainava, vespertinando indo amigar-se com os verdes-azuis, meridional. De tão fluídas as cores sibilando - e tanto de si, se dando - se entregando, que a ponte sorria.
   
A ponte nasceu à foz. Na grota, onde antes o povo lavava os pés quando atravessava o arroio. Enterrando na água e na areia os pés, se molhando até os tornozelos. Apoiada nas muretas cresceu nos beiços do riacho. Deixou o pega-pinto, a catingueira lá embaixo - de cada lado - e escalou meia braça. Esplendor de muro de arrimo, pronto pra enfrentar as já esperadas pancadas das cheias, dos dois mananciais. Viesse, pois o Camoxinga bradasse então o Ipanema.  Bravia e paciente aguardaria a pontesca. Lapidada a cinzel, o granito, tomou forma e deitou o lombo pros passantes. Acessou aos que se destinavam a usina, vapor dos irmãos Melo. Portal pros que rumavam ao vale do Caiçara e os que tinham Pernambuco por destino. Santana precisava - muito ainda - se expandir pras bandas da centenária, Poço das Trincheiras, o rio jamais poderia ser obstáculo, não podia parar o progresso, nunca fora - jamais seria - empecilho. Era parceiro.

 O governador planejava um hospital, pra depois da ponte. Já as primeiras catacumbas lá no alto, Cemitério Santa Sofia aos poucos se fazia. Manso, o rio doou de si, água, areia, pedra para untar argamassa. Possibilitar os santanenses irem e virem livremente, sem precisar tirar os calçados, a batizar-se de doce salubridade toda vez que rumasse pro norte. Doravante passariam a pé enxuto, o casco do boi do carreiro – de eixo azeitado - cantando cantiga de canzil. Seco agora, os cascos do jumento toque-toque no cimento! Troteando iam também, cavalos e cavaleiros no passeio, não mais ferindo o espelho d’água. Feixe de aço e concreto musculoso ecoante, então. Enxuto, os negros pés descalços das mucamas, com imensas trouxas   de roupa na cabeça, tendo à guisa buguelos, buchudos, pelados, atravessavam a ponte. E ia o trazedor de água do rio. O vendedor de ui-ui. A preta Nagô - toda vestida de branco - tabuleiro de tapioca e fubá à cabeça. Açoitando o vento com voz aguda: “-Ô de lá da casa do padre! A tapioca vai na ponte!”. Passar à ponte, ato pábo de poesia.

Não mais que um lance de olhar tinha de vão, não mais que isso. O balaústre de peitoril baixo olhava pros meniscos dos passeantes. Pinos de jogo de damas em alvenaria concebidos. Enfileirados constituía o minúsculo parapeito, como se feito pra gente anã, causando frenesi no passante alto, medroso. Olhar lá embaixo, acrofóbica aventura. Nos quatro cantos - às cabeças do balaústre - postes de cimento com luminárias a farolear a partir das seis horas da tarde, quando vinha o acendedor de lanternas, munido de escada, candeeiro e óleo diesel. O intendente Municipal Firmino Falcão, junto ao Conselho Municipal, orçou os gastos, deu despacho: “-Seja feita! A obra.”. Primeiro pensou em homenagear o Doutor Bacharel Washington Luiz Pereira de Souza presidente da República do Brasil. Ponderou que aquele, jamais saberia da existência, naquele fim de mundo, de metro e meio de ponte com seu nome. Desistiram. Decidiram a ponte teria o nome do nosso governador, o senador da república Pedro da Costa Rego. A língua da rua confiscaria pra o padre. Até hoje pelo povo consagrada Ponte do padre.

Fabio Campos

"Passarinho" e Virgulino Fúria de Titãs


 O povo santanense, civilização surgida às margens do Nilo do sertão, o rio Ipanema, cujo delta em terras alagoanas, banha o vale do Ka-Içara. Santana do Ipanema de três raças.  Os nativos primórdios deram nome às duas principais fontes de vida, à mata chamaram de Ka-á-tinga e o curso d’água de “Águas amargas”. Cobiçada pelos donatários, a rica e fértil planície seria incorporada à sesmaria dos irmãos Vieira. Ocupação que marca a chegada do homem genuinamente branco, de origem portuguesa. Em meados do século XVIII chegariam às primeiras levas de negros escravos. Mercantilizados na feira livre, em meio a toldas de legumes, frutas, cereais e a manufaturas de couro e madeira. Mercadoria valorada conforme a condição física que se encontravam. Pelos senhores feudais comprados para os mais variados trabalhos. Agropastoril ou doméstico, segundo suas habilidades.

Nossa história, vem de um século depois que a princesa Isabel decretou o fim da escravidão negreira, em terras brasileiras. Num tempo em que índios e negros legendavam suas sagas. Eram maioria, e poucos se atinham disso. Tempo em que negros e nativos mais prolíferos e sem posses, acabariam pelo inchamento da plebe, empurrados pra periferia. Margearam a reboque o braço do rio. A montante de sua várzea direita a cidade serpenteou, se expandiu. No centro, soergueram sobrados, instalaram entreposto, empórios e intendência municipal. O padre reconheceu firma, em livros cartoriais registrou a freguesia de Senhora Sant’Ana, ergue a Matriz. A periferia alastrada em mocambos. Do tronco tupi-guarany, os nativos aqui existentes se disseminaram da linhagem I-atés ou Kaá-r-nijós que significava “Os que habitam as margens da água forte” e “nascidos do ventre da mata”.

Índios
Santana do Ipanema, imenso legado indígena herdou. Costumes, cultura muito ainda se teria deles para sempre. Nomes de ruas, lendas, plantas: Baraúna, Maniçoba, Velame, Kaa-mo-xinga. Famílias tradicionais de consolidadas raízes aborígenes, Cinésio conhecido por “Caboclo”. Professor Valter, cujas veias, flui sangue da descendência I-até.  “Índio” ex-goleiro do Ipanema Atlético Clube. Aman-tá -y- Çá que significa “mãe-da-chuva-que-vê”, era minha avó, cuja mãe viveu e a criou numa aldeia. Aportuguesado, seu nome virou Amância de Sá. Índio se conhece pela cor da pele amarronzada, o cabelo, a compleição facial. Deixou pra civilização o hábito de cultivar milho, usar plantas alienantes como a diamba, em rituais de cura. O tabaco para selar acordo de amizade entre tribos. Deles que depois terminariam sendo estivadores, por não terem tido oportunidade de estudar.  “Carrinho” índio”, “Passarinho”,  dentre outros, ganhavam a vida no carrego e descarrego de secos e molhados, dos caminhões que chegavam e saiam todos os dias, levando e trazendo o progresso pra Santana. Açúcar, café, e manufaturados. E levavam feijão, milho e algodão. “Passarinho” era um de estatura física fenomenal, braços fantasticamente musculosos. Seu corpanzil titânico daria a atribuir-lhe feitos formidáveis, enaltecido pelos contadores de causos nas noitadas de luar à praça São Pedro. Narrativas apoteóticas de suas caçadas. Numa delas teria enfrentado a cobra Norato, uma serpente gigante de dez metros de comprimento, que engolia um boi inteiro. “Passarinho” teria matado-a na ocasião que dera uma cheia no Ipanema, ao tentar atravessar o rio a nado pelo poço das corredeiras próximo a foz do riacho João Gomes a bichona se atracou com ele dentro d’água, o ofídio  gigante teria o engolido. Dentro das entranhas do réptil, sacou seu punhal e destroçou suas tripas. Uma vez livre teria nadado chegando são e salvo a margem do rio.

Negros
Os primeiros autenticamente negros em Santana do Ipanema, teria vindo de duas linhagens Bantus e Nagôs traficados da mãe África. Era fácil diferençar uns dos outros, os de origem Nagôs, vindos de Nova Guiné e Guiné Bissau, eram negros retintos, o pretume da pele era tanto que reluzia. Bem alimentados, aumentavam no porte físico. Muito prolíferos. Arredios no manejo com lavouras preferiam trabalhos domésticos, tinham dificuldade de aprender nossa língua. Exímio no manejo de armas brancas. Sonhavam com a liberdade por isso eram muito fujões. Ficaram conhecidos como a raça dos Baus. Bantus eram originados de Moçambique e Angola, eram negros fubentos, a pele parecia coberta de cinza, não eram dóceis com seus donos. Praticavam rituais de macumba, com holocaustos de animais e fetos humanos. Eram bons capoeiristas. Ficariam conhecidos e temidos pela fama de antropófagos,  a raça dos Bius. 

A Briga
Foi num final de tarde, de um dia de sábado. Mais um dia de feira livre findo. Mangaieiros começavam a desarmar suas toldas. Início da Rua Tertuliano Nepomuceno, quase à porta do mercado da Carne. A via ficava imunda, frutas e legumes estragados jaziam no leito. Cães vadios catavam o comer no meio dos despojos do burgo. Conhecida também como “Rua dos porcos”. Leitões e galinhas - entre grunhidos e cacarejos, fezes e lama - vendidos. Aquela artéria acessava a Intendência Municipal e o baixo meretrício. Virgulino um estivador morador do mocambo da Lagoa do Junco - da raça dos Bius - com “Passarinho” se encontrou por acaso. Estavam intrigados por uma desavença anterior. Por ter ingerido vários grogues de cachaça Virgulino esbarrou com violência contra seu desafeto. Isso foi suficiente para darem início a uma briga.

Entre gritos da populaça e curiosos, os raçudos titânicos se atracaram. O choque de músculos produzia quase um som metálico, como de espadas. Golpes magníficos de capoeira desferidos atingiam o alvo. Tenazes braços, claves de bronze, catapultavam bancas dos mascates. Fantasticamente pesadas, flutuavam como se feitas de isopor. Como num passe de mágica, um machado foi parar na mão do índio que vibrou no ar, buscando destroçar carne e osso humano. Conseguindo apenas arrancar um silvo do ar. Virgulino de posse de uma cangalha arremessou-a contra o oponente, atingindo a espádua de “Passarinho” que foi ao chão.  Uma vez engalfinhados desferiram golpes um no outro. Numa sincronia e reciprocidade de pura fúria de brutamontes, como se trocassem cortesias. Eis que abrindo passagem entre os espectadores surgiu um homem, trajado em paletó e de gravata, encheu os pulmões de ar, emitiu um grito, que tornaria estático o burburinho. Parado no ar o murro, o golpe a ser desferido congelado. Tudo e todos estratificados por um grito de “parem em nome da lei”. Diante da voz do homem, os gigantes virados estátuas. Quisera, o tempo tornasse em pedra aqueles dois titãs, no meio da rua, eternamente. E ao cimento fresco, o artista autor da obra assinasse: Doutor João Ioiô Filho, juiz de Direito da comarca de Santana do Ipanema.    

Fabio Campos        

Pátria! Ó Pátria amada!


Sesquicentenário da Independência. Quarenta cívicos calendários civis se gastaram desde então. À época, o general Emílio Garastazu Médici, comandava o país da recente capital do planalto, cheirando a concreto e arte ainda. O estado das Alagoas governado pelo magistrado, Afrânio Salgado Lages, fosse o mais recôndito sertão - de baixo destes céus, desse solo mãe gentil – teria que vivenciar a data histórica.  Jamais se permitiria que em brancas nuvens passasse o marco extraordinário.

Santana do Ipanema, Praça da Bandeira. Efusiva sete de setembro - manhã de quinta-feira - de 1972. Estudantes, garbosamente perfilados, perante os pavilhões, nacional, estadual e municipal. O público respeitoso, solene, acompanhava das calçadas. Profusão de cores, flâmulas, broches, fardas. Bandeirolas, verde e amarela, passarinhavam sobre o Largo do Monumento. Autos-falantes tonitruantes inundavam o passeio de melodia varonil. Tragicênicas folhas, verde oliva, dos pés de figos saldavam a pátria, enquanto fugidios e atônitos pardais revoavam. Bandeira brasileira, de Alagoas e de Santana do Ipanema salvaguardadas em ternos colos. Tudo tornado túrgido, de hinos retumbantes que evidenciavam os feitos heróicos, de vultos históricos. Salva de tiros e arranjos de flores - orvalhado de lágrimas - aos desconhecidos soldados, que com bravura lutaram, e derramaram seu sangue, pela pátria ultrajada em seu valor.

 “Já raiou a liberdade/ No horizonte do Brasil
Brava gente brasileira/ Longe vá temor servil
Ou ficar a Pátria livre/ Ou morrer pelo Brasil”

Estremecendo o calçamento, o forte compasso cadenciado dos coturnos, um pelotão de soldados da polícia militar, seguia adiante da banda filarmônica. Jeeps camuflados, com imensas antenas de radioamador, cães pastor alemão, amplamente treinados, à guisa de seus guardas passavam no paço. Farda cáqui do pelotão militar, camuflagem na caatinga. A imprescindível continência, o rosto rispidamente voltado perante o palanque oficial. O capacete ovulado dos soldados do exército brasileiro estimularia a criação da alcunha “soldado de cuia”, pecha rechaçada, odiada em caserna, digna de severa ação punitiva. Na televisão, se repetia a cena, pela rede Tupi de Televisão, o desfile militar na Avenida Paulista, ovacionado por milhares de pessoas.    

“Salve lindo pendão da esperança
Salve símbolo augusto da paz!
Tua nobre presença à lembrança
A grandeza da Pátria nos traz!”

 “Este é um país que vai pra frente!” “Brasil Ame-o ou Deixe-o!” alguns, dentre outros, chamamentos, que o governo federal veiculava com veemência, via emissoras de rádio, televisão, jornais, cartazes nas repartições públicas e adesivos nos carros, era preciso deixar claro quem mandava. Autoridade não se conquistava se impunha pela força. Por trás das idéias progressistas, no ano anterior, deram de iniciar a construção da estrada Transamazônica. “Brasileiros Unidos Constroem Estrada Trans Amazônica” escreviam os meninos do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, nas paredes dos banheiros, destacando as iniciais para formar o apelido da vulva feminina. Já o  presidente ganharia o simpático apelido de "Garrafa Azul". Transamazônica, obra descomunal, cujo verdadeiro intuito era encobrir manobras militares. Tropas do exército e da aeronáutica rastreavam um foco de dissidentes políticos na região do Araguaia. Marco desextraordinário! Mancha aos brios imaculados da nação brasileira! Guerrilha do Araguaia, como ficaria conhecida, desencadeada na região de Xambioá, norte do antigo estado de Goiás, bem aos fundos do quintal do palácio do planalto! Nas barbas, severamente escanhoada do presidente. Ato vil, inconcebível! Militantes do partido comunista PC do B, líderes políticos, estudantes universitários, bancários demissionários, ex-guerrilheiros e camponeses. Iniciaram movimento com objetivo de destituir do cargo, o presidente da República do Brasil. Havia um plano, um golpe de estado, implantar um governo civil comunista. Um nome e um episódio ficaram, Osvaldo Orlando da Costa. Enquanto abria uma trilha na mata “Osvaldão” deparou-se repentinamente com uma patrulha do exército, foi alvejado no peito com um tiro de espingarda 12. Amarrado pelo pé foi arrastado pela selva, içado por um helicóptero da FAB. Ao alcançar altura, largaram o corpo de “Osvaldão”.

“Nós somos da pátria amada
Fiéis soldados por eles amados
Nas cores da nossa farda
Rebrilha a glória, fulge a vitória”

Santana do Ipanema, assim como em todo lugarejo do país também tinha seus comunistas, considerados revolucionários pelo governo. De modo pacífico protestavam contra o odioso regime militar, deixavam crescer o cabelo, cultivavam longas barbas. Dessa forma se diziam simpáticos aos ideais do socialismo. A bandeira de Cuba, a foice e o machado cruzados, o charuto de havana, cumprimentar o colega por “camarada”, isso era pro militares indícios de que se tratava de um subversivo. A classe dos artistas era a mais perseguida, escritores, atores, cantores. Elis Regina, por ter feito declaração maldosa a imprensa, dizendo que vivíamos num país governado por gorilas, foi obrigada a cantar o hino nacional durante as festividades daquele ano.  Chico Buarque de Holanda voltou do exílio na Itália, e faria uma música, que para sua surpresa, não foi vetada pela censura, pois dizia ao presidente da República: “apesar de você/ amanhã há de ser outro dia...” E foi.

Fabio Campos