Houve uma tarde, dessas em que um
céu se havia em todo seu esplendor. E o silêncio de Deus vinha vindo e pairava
sobre toda criatura. E o sol naquele instante dava de chegar, ao mesmo lugar do
dia em que Jesus expirou no alto do madeiro. Mas somente aos espíritos elevados
era permitido perceber isso. Visto assim o mundo parecia experimentar o
preâmbulo da consumação dos tempos. Foi num momento como esse, que um táxi
parou na porta do abrigo São Vicente de Paulo. Mais uma idosa acabava de chegar
pra compartilhar um dos cômodos junto aos demais internos.
Assentado num barranco, de barro
vermelho, no início da Rua São Vicente. Ao sopé do serrote do Pintado, pelo
lado Sul, o Asilo para idosos São Vicente de Paulo, é uma construção de linhas
simples. Um único bloco, retangular, ornado de janelas na parte externa. Na
parte de dentro, um enfileirado de pequenos quartos, guarnecidos de varanda,
com caída d’água pra um singelo pátio descoberto, ornado de plantas. Em tudo
lembrando um pequeno convento. Ao entrar ali, os olhares convergiam pra capela
e o refeitório, estrategicamente localizados. Onze almas de senis cristãos
viventes, por aqueles dias, encerravam parte daqueles cômodos. Sete mulheres e
quatro homens. Feitos passageiros, de uma nave chamada tempo, estranhamente
navegavam, sem saber dia nem hora que iriam desembarcar. A cada quarto, camas
de velhos colchões, uma pequena cômoda, um filtro de barro,
um copo num pires. Um banheiro igualmente simples, com uma pia, um pequeno espelho
quadrado. Um sabonete um rolo de papel higiênico, um lixeiro, um penico de
estanho. Invadindo as narinas, forte cheiro de desinfetante, como se a dizer às
moscas que ali não eram bem vindas. Porém insensíveis a tal informação,
esvoaçavam e iam pousar onde bem entendiam. Em todos os cômodos uma
característica comum, as malas dos seus ocupantes pareciam preparadas, prontas
pra viagem.
Apoiando-se no braço da zeladora
da instituição como se a muito a conhecesse, lá vinha dona Aureliana Feitosa, se
deixando ser conduzida pela passarela. Acabava de chegar a décima segunda
tripulante, da nave de gastar tempo. Tempo restante de vida. O chofer do táxi,
um negro de boné bufante, as seguia levando a surrada malinha de couro preta,
contendo tudo o que a velha senhora possuía. O jardim, as Cássias e espadas de
São Jorge em rubro e verde tornado. As paredes pintadas, os telhados nada
atraía a atenção, da nova hospede. Como se a única coisa que interessasse,
naquele momento fosse apenas ir pelo passeio. Não se dava conta de que pra onde
estava indo, não havia volta, não havia saída. Se quer dava-se ao trabalho de
lançar um olhar aos demais idosos. Dali pra frente seus companheiros de viagem.
Relegados ao ato de existir, era hora de estar ali e esperar, e esperar. O
traje da tripulação, roupas de dormir. Como se numa máquina de sonho. E sob uma
sonolência se permaneceriam, donde só deveriam acordar, quando chegasse o dia
do desembarque, assim viviam. Os homens, sentados nas camas, nas cadeiras de
balanço dos alpendres, se ocupavam com coisa alguma. Deles, deitados dormiam. As
mulheres preferiam conferir os pertences das suas malas, dobrar roupas. A
presença de estranhos, a chegada de uma nova companheira de viagem, nada atraía
sua atenção.
Dona Aureliana foi conduzida pra
um quarto onde havia duas outras mulheres, Benedita e Vicentina. Chegando ali, foi
logo perguntando pela mala de sua irmã Clotilde. É preciso esclarecer que dona
Aureliana vinha duma tradicional família de pecuarista. Seus pais era dono de
uma das maiores propriedades rural, dos tempos em que a cidade ainda era vila.
Aureliana tivera seis irmãs. E todas as sete se deram em casamento,
constituíram famílias e envelheceram. À medida que iam ficando viúva, iam sendo
conduzidas pelos netos e parentes, para o Asilo São Vicente onde permaneciam
até morrer. Fazia apenas alguns meses que Clotilde havia morrido. Acontece que
tem a história de um relicário, um medalhão de ouro, valioso, porém
amaldiçoado. Aureliana botou na cabeça que o colar desaparecido, estaria ali,
entre os pertences de sua falecida irmã Clotilde.
Pra contar a história do colar
misterioso, vamos ter que voltar um pouco no tempo. Embrenhar-se na caatinga,
ir até os idos de 1936 no sertão alagoano. Saber do cangaceiro José Benedito,
conhecido na bandidagem, pelo apelido de “Zé Preto” que mantinha um caso com a
cangaceira Rosemêire apelidada Sinhazinha. Essa parelha de crias do cangaço, em
determinado ataque a fazenda Grota do Pombal, localizada nas imediações da Vila
Entre Montes, às margens do “Velho Chico”, degolou friamente o casal de donos
da fazenda. Antes de matar a mulher do fazendeiro, subtraíram-lhe um colar de
ouro. Uma praga, um mau agouro foi rogado. Na agonia de morte a mulher teria
lançado a maldição, do qual ela própria se dizia vítima, que passasse para quem
se apossasse daquele colar. Sem entender do que se tratava a cangaceira passou
a usar a jóia. Não demoraria muito e a Sinhazinha deu-se em coito com outro
cangaceiro, Ao descobrir a traição “Zé Preto” matou o cabra safado que havia se
deitado com sua companheira. A maldição havia se cumprido.
Como o colar teria ido parar nas
mãos das irmãs Feitosa, é outra história. “Zé Preto” e Sinhazinha acabaram presos
pela tropa de soldados do 3º Pelotão da Polícia Militar de Alagoas, cujo
quartel ficava na cidade de Santana do Ipanema. Os despojos dos cangaceiros,
armas, munições, a tal relíquia de ouro amaldiçoada, entre outras jóias. Tudo foi
parar em cima do birô do comandante da brigada. O Coronel Albuquerque, na
ocasião era amante justamente da mulher que um dia seria a mãe das irmãs
Feitosa. Num de seus encontros amoroso teria presenteado-lhe o colar, o que
implicava em perpetuar a maldição.
Dona Aureliana não encontrou a
relíquia entre os pertences de sua irmã. O que incluía uma quantidade considerável
de bonecas e calungas de pano. E esse mundo de meu Deus vagou, e vagou pelo mar
do céu profundo. Feito a arca do dilúvio, a nave terra. Um dirigível tendo
acoplado um bojo, o asilo, tripulado pelos anciãos do São Vicente, continuava
sua viagem. Dias e dias, entremeados de noites se passaram. Um dia, melhor
dizendo, uma tarde, parecida com aquela do início de tudo, em que Noé esperava
um sinal de terra firme. E Dona Vicentina vislumbrou na imensidão do céu, uma pomba
branca que vinha. Observando melhor viu que se tratava de um cavalo alado. Se
destacando entre o azul vespertino, um alvo equino varão, feito nuvem, veio
vindo. E se fazia montado por um homem maduro, de cavanhaque, trajado em vestes
pretas.
“-Padre Vicente! O Senhor veio me
buscar? Minha mala já está pronta! O senhor trouxe a coroa de ouro da rainha
Margarida? E meu noivo, o rei Henrique da França, está esperando pra casar comigo?
Vou me casar com o rei! Vamos ter quatro filhos: Três meninos e uma menina! Olhe
essa boneca padre! Eu ganhei de Clotilde. Eu guardei pra dar a minha filha, que
terei com o rei! Vamos padre! O seu cavalo, está machucando a grama do jardim!”
Vicentina aos berros esbravejava, o que a um observador comum parecia um monólogo.
No entanto se referia a um interlocutor não visível aos demais, e ele estava lá.
Se Vicentina conseguisse viver aquele sonhado conto de fadas, seria
interessante que não presenteasse sua filha com aquela boneca. Pra não acabar
levando pro seu régio matrimônio, a maldição do colar, encerrado e costurado
por Clotilde, nas entranhas da boneca.
Fabio Campos