Os Pés de Julieta

A história de que mentira tem pernas curtas, quem somos nós pra refutar tal adágio. Podemos sim arvorar-nos na premissa, que a dita cuja talvez tenha sim, quanto ao mentiroso, nem sempre. Consideremos a existência de variado tipo de mentiroso. Existindo inclusive aquele que não convence nem a si próprio. Caso engendre-se nossa história de fantasiosas lucubrações. Deixaremos a cargo de quem lê-nos, os auspícios das próprias conclusões.

O matuto verdadeiro. O homem do sertão com suas particularidades. Em essência é aquele que vive matutando. Se entre um colóquio e outro der-se a falar de alguém que já passou dessa pra melhor, é costume dizer “-Que Deus tape as “oiças” lá onde ela estiver, pra não ouvir o que hei de dizer a seu respeito!” Julieta tinha nela dois defeitos. Pernas curtas e tortas, por conta de uma poliomielite, e mentia que era uma beleza. Num tempo que a gente haveria de chamar tempos idos. A ilustre figura, juntamente com sua família, fora vizinha de minha vó materna. Julieta era assim, cabocla, criada com leite de cabra. Nascida nas brenhas do sertão de Belém do Cabrobó. Trazia no sangue linhagem Iatê-Tapuio. Da calada da noite tirou a cor dos cabelos, da casca do angico tirou a morenês da pele. Apesar do nome de personagem do clássico literário inglês uma Tiêta agrestina, era. Aliás, depois de saída da infância, assim que se entendeu de gente, Julieta dedicou-se com ferocidade de animal predador, a caçar o seu Romeu.  Arremedo de pavão, bonita somente dos pés pra cima, ao atingir maturidade, buscou com sagacidade um homem pra chamar de companheiro. Desde a infância tornou-se amiga dos familiares de minha vó. Vizinho naquele tempo era adjetivado de “parede e meia”.  Os matutos do mato, aos poucos iam se chegando a urbanidade. Atraídos pela concentração de luzes dos quixós, quando a copa da noite dava a cobrir o vilarejo. E as casinhas de taipa iam sendo construídas umas encostadas nas outras, pareciam meninos buchudos quando iam pra feira. Tímidas se espremiam na barra da saia da cidade.

Animado, igual pinto no lixo, assim se apresentava o sertão naquele ano. As promissoras trovoadas vieram no tempo certo. E o dezenove de março chegou, encimado na carroceria dum caminhão Ford. E lá foram pra procissão, e a última noite do novenário das festas de São José da Tapera. Dona Amância, sentada na calçada da comadre Aurélia botava cuidado nas meninas. Os corrupios eram como chamavam o carrossel. Uma sombrinha gigante girando alucinadamente. Um engenho de cana adaptado, movido a tração humana, remetia no ar meia dúzia de moleques afoitos sentados em cadeirinhas. Nos apoios das mãos, patinhas grosseiramente pintada. Uma ruma de gente regozijava só de olhar. Deus me livre! Jamais me atreveria a tal aventura! Melhor era mesmo olhar! Lá vinha o Mateu, mais enfeitado que santa cruz de beira de estrada. Estalando um relho, assoprando álcool, num apito de caçar “Fogo-pagô” enchia o oco da noite de lúgubre silvo. Jovens casais tentavam a sorte num Laça-laça enganoso. Tacos de madeira que não se deixavam laçar facilmente, exibiam cédulas tentadoras. Uma estranha pescaria, peixinhos feitos de lata de óleo, enterrados num tacho cheio de areia. Se pescados a cauda exibia um número que indicava o prêmio ganho: um sabonete “Alma de Flores”, uma boneca, calunga de pano, uma carteira de cigarro Astoria, Chesterfield, Continental.

Depois de muita correria, os meninos dirigiam-se pras barracas de comidas, iam recuperar o gasto energético. E das algibeiras de seus calções tiravam suas tão bem guardadas moedas,. A menina antes de sair de casa, implorara: “-Ô mãe! A senhora não tem tanto dinheiro! Me dê uma moeda!” E se fartariam de pão doce com um suco composto de mel, groselha ou caldo de cana, rolete de cana num gancho de catingueira, desbotava os dentes. A luz dos caandeiros alumiava as prendas do leilão: uma ancoreta de cachaça, frangos fritos, vários perus na pena. Um luzeiro mais potente, abastecido com óleo diesel, garantia claridade pra imagem do santo e pro altar. A missa campal elevava aos céus, hinos de louvores ao santo padroeiro. O cântico glorioso se diluía na fumaça dos estrondosos estampidos dos bacamarteiros. E os foguetes subiam deixando pra trás um rabo de fogo. E o fedor de pólvora esturricava nas ventas do trio de zabumbeiros.

Julieta era irmã de Zefinha costureira. Na noite da festa do padroeiro, as meninas conheceram um rapaz que ficou interessado por uma delas, que infelizmente não fora nossa personagem. Então ela armou seu laço de língua. Teria dito à irmã, que a amiga tinha arranjado um noivo na festa e pedira que ela providenciasse a confecção de um vestido bem bonito para um próximo encontro, que haveria entre eles. O tecido foi providenciado, o cochicho correu solto. O nome do suposto namorado também foi inventado, um padeiro da panificação São José. Sem nada saber entrou na história, de cochicho de mulher mexeriqueira. Numa tarde em que estavam brincando Julieta confidenciou à amiga: “-Minha amiga! Como você tem pés tão bonitos! Já os meus...” Doeu até hoje, nada podia fazer.

E o sol depois de um dia de trabalho. Cansado e enfadado, começou a escorregar por detrás das telhas dos quixózinhos, dos cristãos, cristãozinhos! Daquela terra de Deus, meu Deuzinho! Zé Costa chegava por ali, se inconstava na beira do fogão de lenha de minha vó. Davam de iniciar uma prosa morna, cheirando a milho assado. E iam molhando as palavras com café quente. E falaram de Mariazinha coitada, que tinha asma. E estudavam: Mariazinha, Julieta, a sua melhor amiga, e uns meninos dos Abreus, outros do Gavião e do Pedrão. Um dia chegou uma professora nova, pra conhecer seus alunos inquiriu-os. Dirigindo-se a um deles perguntou: “Qual é a sua graça?” Todos riram. Não sabiam o que significava “Sua graça”. Mariazinha cansada, cansada, coitada! Na hora de soletrar, soletrava: “C-a: cá, c-é: cé, c...Ô Julieta? Como é esse aqui pertinho do cú? Zé Costa e minha vó riam, e riam. A balançar a pança como fazia padrinho Pizeca.”

“- Ô Zé! Por acaso, tu soube da história que lá no grotão, no olho d’água, depois que anoitece, deu de aparecer aos homens, uma mulher nua, que vai tomar banho? Dizem que o cabelo é tão grande, mas tão grande, que passa das suas partes! Mas ninguém consegue se aproximar, ela simplesmente se invurta! Some!” Não sabia dessa história. Sabia de outra mais interessante: “-Tá correndo por aí uma história de Ave Maria! Ave Maria! (se benzia) De Lampião! Mês passado, o bando do cangaceiro andou por aqui perto, passou no Capim e teve no barraco de Zé Banca, se abasteceu de um tudo. O bandido deixou o homem quebrado. Foi embora, mas deixou um recado, que o vendilhão, não dissesse (não dixésse! Era assim que pronunciava) pra ninguém que ele tinha passado ali. Mas foi só o bando sair do seu terreiro. Correu Zé Banca, foi dizer ao delegado. Ah! Minha filha! Lampião quando soube, voltou lá no Capim, e praticou miséria. Zé Banca coitado foi amarrado num pé de babão. Deram uma pisa de urtiga no cabra, nu em pêlo. Pra encurtar a história cortaram a língua do desinfeliz e enfiaram no fiofó do miserável!" -Vixe Maria!" 

Julieta ficou velha. Também velha tornou-se sua melhor amiga. Um dia, velhinhas tornaram a se encontrar. Na casa da viuvez da amiga, se encontraram. Aquela que arranjou namorado na festa de São José. Namorado de mentira que se tornou verdade. Agora tudo era motivo de risos. Com aquele, a amiga constituiu família, tiveram filhos. E tornaram a ri, riram, e riram lembrando de Mariazinha,  que era doente de asma, que não sabia soletrar o c-a: cá! Mariazinha que já morrera. E padrinho Pizeca que ria tanto a balançar a pança. E se despediram. Sem saber Julieta que era a última vez que via a melhor amiga.

Fabio Campos               


O Cínico e o Amuleto

Sentado a mesa de um bar, estava Antonio Gabriel. Não um bar qualquer. Um pouco de acuidade ao olhar, e qualquer um daria a perceber, que havia naquele ambiente um clima de nostalgia. Ao fundo, noutra mesa, outro sujeito, muito parecido com ele. Lembraria Noel, um cigarro apagado entre os lábios, folheava um jornal. Levantando uma das mãos, pedira ao garçon uma cerveja bem gelada, ao tempo que encostasse a porta pois não estaria disposto a ficar exposto ao sol.

Não por acaso foi parar ali. Nós, o colocamos lá. Para que os senhores entendam que tipo, temos aqui, e o que fazia naquele local, necessário se faz que descrevamos o ambiente que costumava frequentar. O lastro das mesas, e do balcão, eram peças inteiriça de mármore polido. Em madeira de lei, envernizada. No rodapé um cano de ferro cromado para apoio dos pés. Por trás do móvel, o garçon, por um segundo estático, remeteria ao crupiê que estaria no cassino, lá ao fundo.  Uma fileira de bancos altos, redondos, estofados, coberto de napa em tom pastel. Prateleiras em varas de ferro apoiadas, pintadas e trabalhadas com arte. Sustinham pranchas de vidro que ostentavam belíssimos e reluzentes litros de vinhos, uísque e licores. Refletiam exuberante colorido no espelho ao fundo. Dando um ar de vitalidade e alegria ao ambiente. Um pouco a cima das cabeças, sóbrias caixas de alto-falantes. Donde uma vitrola, suavemente ia misturando aos sussurros dos fregueses, gritos dos snookers, e estalidos das bolas de sinuca chocando-se, a aveludada voz de Nelson “Dolores Sierra vive em Barcelona na beira do cais...” Senhoritas de vestidos tubinho enxadrezados, na companhia de rapazes, camisa colada ao corpo, com suas madeixas tesas de laquê. Enamoravam-se enquanto saboreavam espumante “Chuva de Prata”.

Isabela e Isabele eram irmãs gêmeas. Filhas do coronel Paranhos, conceituado militar que servira às forças armadas na década de sessenta, e setenta, nos governos de Médici e Costa e Silva . Participou de muitas guerrilhas na América central. Combateu o mau combate, subversivos, dissidentes políticos, no tempo da ditadura militar. Não vamos contar muito sobre a vida egressa desse cidadão, melhor que entre aqui meramente como pai de família. Porque se formos vasculhar seu passado, de sangue inocente mancharemos a narrativa. Infelizmente temos que dizer que alguém vai morrer. Inevitavelmente uma morte estaria para acontecer. Nosso ilustre amigo Antonio Gabriel o pivô desse sinistro? Sinceramente não sei. Talvez, porque simplesmente vivesse uma paixão por Isabela. Ó Isabele quanta perda de tempo! Acontece que Isabela era casada. Casou-se justamente com o irmão do dito cujo, Antunes Coutinho e Souza, conceituado comerciante do ramo têxtil. Começou como simples mascate e prosperou. Abriu lojas filiais em toda região. Mas, do que mesmo vivia um boêmio? Ora, boêmio vivia da boemia. Da sorte no carteado, dos sonhos das mulheres apaixonadas. Tinha meu pai um ditado, que tão bem cabe citá-lo aqui: “Assim dizia Lulu Felix: Dinheiros curtos, mulheres apaixonadas.” Pela manhã não se via um só deles. Lá pras três da tarde é que começavam a aparecer no passeio. Paletó e gravata chapéu branco. Ia ao engraxate polir os sapatos. E iam assentar-se a porta da Farmácia dos Pobres. O olhar acompanharia as velhas corocas, a reboque levando, as filhas e netas pra igreja. A rezar o apressado terço da misericórdia. E o sino, dizendo be-lém bém blém. Acabavam por espantar os pombos assentados no pórtico da torre da igreja. Anunciavam, aos quatro cantos do mundo, as matinas do santo ofício.

Antonio tinha combinado com Isabela um código, um jeito de se encontrarem sem serem descobertos. Artimanha nada fácil, porque a casa dela ficava num ponto estratégico, afastada do centro da cidade. Se alguém resolvesse ir até lá, era visto por toda cidade. Pros amantes se encontrarem arranjava Antonio um jeito de disfarçar-se de vendedor de livros, cartomante, caixeiro viajante enfim. Porem só ia mediante um sinal. Caso ela retirasse de uma estaca na entrada da casa, um crânio seco de bovino, com dois imensos cornos. Um negrinho filho da mucama criada dos Souza, encarregado de guardar o ilustre amuleto, que os fazendeiros costumavam colocar na entrada das suas fazendas pra espantar os maus agouros. Depois de consumado o ato pecaminoso, voltava os chifres a enfeitar o portal de entrada. 

Por aqueles dias estávamos à capital do estado, Maceió. Hospedamo-nos no hotel Beiriz, Rua do Sol, de Djavan, de poesias, de Ledo Ivo.  Passamos no antigo Bar do Chopp, entramos na igreja do Rosário. Detivemo-nos a observar a impressionante arquitetura barroca, misturada com o neoclássico, tendências artísticas européias do final do período seiscentista tão em voga, à época. Os azulejos vindos de Portugal, do período imperial, desenhos seculares, em tons azuis sobre fundo branco, retratavam a via sacra. O púlpito, elevado. Sobre gradis ricamente adornados, com certa quantidade de bancas, delimitando espaços. Denunciando que no passado, os senhores de engenho, acompanhados dos seus familiares, pagavam um dízimo diferenciado para ocuparem aqueles lugares privilegiados. Pra garantir que não dividiriam espaço com gente pobre, desclassificada, ou escravos alforriados.  Caminhando pela rua do comércio fomos parar na Praça Montepio donde imponente edifício Brêda, o mais alto, elevava-se aos céus, apontando pra Deus. A plena tarde, sob lúmen vespertino, meretrizes disputavam clientes, em meio aos vociferados alardes, dos vendilhões de milho verde assado, e tapioca. Também a falsa baiana a vender, o igualmente falso acarajé. Um moleque puxando-me o braço anunciou: “-Moço! Aquele homem ali quer falar com o senhor!” A pessoa anunciada pelo pivete, encontrava-se amplamente sentado a um dos graciosos bancos da praça. Percebi-o de paletó e gravata. Trajes um tanto pomposo pro momento e ocasião. Ao aproximar-me quedei estupefato. O que viam meus olhos! Exatamente, o senhor Antonio Gabriel, em carne e osso!  

Era inevitável a pergunta: “-Como se chama?” “-Ora! Como vossa senhoria mesmo me denominou: Antonio Gabriel!” Ora, ora, pois, pois! E não é que estávamos ali, frente a frente. O escritor e o personagem. E olhe que não tinha terminado ainda o conto. Sem mais delongas apenas disse-me que não aceitava a tal suposta situação de matar alguém na história. Argumentou que era um sujeito pacato, que não o envolvesse em nenhum delito. E que na opinião dele, o crime teria um único interesse: dar um clima de suspense, ou quem sabe manter o interesse no leitor. Concordei, em parte, porém tínhamos um contra argumento plausível. Disse-lhe que seria pra dar mais autenticidade a trama. Ao final do nosso colóquio ficou decidido ele não mataria ninguém. Despedimo-nos com um aperto de mão. E seguimos cada um seu caminho.

Antonio e Isabela tornaram se encontrar, muitas vezes. Ó terna, doce Isabele! Antonio considerava-se, um “bon vivant”, uma pessoa que só pensava em desfrutar a vida, e dizia: “-Tenho gosto apurado as artes, todas: pintura, escultura, música, porém tenho predileção pela Literatura, amo Jean-Paul Sartre que se alto intitulava “o idiota da família”, um cínico, como eu. Enquanto meu irmão almejava ganhar muito dinheiro, eu desfruto do seu recurso, e da sua mulher.”  Convenceria o irmão a lhe pagar, pra dar aulas de balística, a Isabela e Isabele. As filhas do coronel desde criança aprenderam a gostar de tiro ao alvo, gosto do pai. 

Magnífica tarde de sol se fazia, tornando-se afinal em chuva torrencial. Acabaram voltando pra casa molhados. E lá nos aposentos do adultério, no leito dos amantes, sobre alvos lençóis. Nus tomaram vinho pra se aquecer. Depois de muitas taças do licor dos deuses, gargalhavam loucamente. Volúpias, beijos. Deram de imitar a cena derradeira da trama shakespeareana. Por fim, nossa Julieta, virando-se pra Antonio indagou: “-Oh! Meu amor... Por que fizeste isto?”  Apontando uma pistola pro peito do seu Romeu, acionou o gatilho.


Fabio Campos

Rosas Encarnadas Negro Gato

Nossa história daria de começar assim um tanto triste. Não por causa daquela chuva fina que caía no fim da tarde. Tampouco tinha a ver com o rubro, no leito da rua encharcada, trazido pela enxurrada. O barro vermelho da chácara de Seu Narciso, acabava tingindo de encarnado o calçamento da Rua São Vicente. Uma melancolia branda, plúmbea, desenhada junto das nuvens, lá nos cantos do mundo.  Encontraram Damásio morto.

Quem era Damásio?  Um dos sete gatos de dona Milu.  Veio-me, ainda agora, a lembrança de seu esposo, Seu Benjamim, o tangedor de burros. Chapéu de massa, que um dia fora preto, na cabeça. A copa amarrotada, bolorento na fita. A peninha colorida, milagrosamente se mantinha intacta, a aba carcomida na fronte. Corpo franzino, rosto sulcado de salubridade das águas do Panema. Barba rala. Camisa de mangas compridas. Rota, nos ombros. Desgaste provocado pelas ancoretas. Os punhos enrolados até os cotovelos. Caso Seu Zé “Bêja” tirasse o chapéu, o que era raro acontecer, expunha uma testa alva. Serpenteada por alguns poucos fios de cabelos que lhe restavam. O jeito dele andar é que era interessante. Andava como se mancasse, como se acabasse de pisar num espinho. Arqueava os braços, semi-abertos claudicante. Também a calça enrolava a bainha até a altura das panturrilhas. Nos pés um par de alpercatas. Falava mais com o corpo que com a boca. Se sorria, expunha os incisivos tintos de fumo. Teve um dia, que junto com a carga d’água, trouxe-nos um gatinho enjeitado. Feio, assustado, não parava de miar, e tremia. O bichinho quase sumiu nas mãos cascudas, enrugadas de meu pai. Foi adotado, meu pai gostava de gatos.
    
O bichano morto de dona Milu havia sido encontrado por Seu Genésio carroceiro, as margens da Br 316. De manhãzinha. Foi levar um carreto de areia, pra reconstrução de um muro de arrimo, que o aguaceiro derrubou, bem ali perto do santuário da Virgem de Guadalupe. Dona Milu não entendia como Damásio fora parar na pista. Não era comum seus gatos sairem de casa. Quando era de tardezinha, Enquanto recolhia os panos do varal, eles a acompanhava no terreiro atrás de casa. Roçavam em suas pernas. Brincavam fazendo estripulias, rolavam no capim verdinho. Amolavam as unhas no caule duma goiabeira. Saltavam uns sobre os outros, e perseguiam gafanhotos e borboletas. Depois que o marido morrera, e os filhos foram embora pra São Paulo restara-lhe a filha caçula, com síndrome de Down, e os gatos pra lhe fazer companhia. No fim do mês, quando recebia o dinheiro da aposentadoria, na feira de sua mantença, dona Milu, tinha como obrigação a compra de ração. Tratava aqueles bichanos melhor que seus filhos. E tinha esperança que um dia, voltassem os que se tinham ido.

Da janela do quarto de Francisco, o primogênito, tendo sido este o primeiro a ir embora, pro Paraná. Recordava. Prisioneira das coisas ligadas ao elemento terra. Pupilas retraídas pelo excesso de luz, a íris criando efeitos, nos reflexos do sol nos vidros da janela. Os cílios varriam tudo que estava ao alcance das vistas, inclusive a rua. Desenganava a mente que aparentemente não encontravas beleza em coisa alguma. O balaustre, um muro de tijolos, a montanha tão verdinha! Lá longe. Uma estrada, um caminho, era o chão, era a estrada, e era o sol. E viu um menino correndo, várias crianças correndo. E viu o tempo, inexorável sem dar trégua, sem parar, não parava nunca. E uma força estranha no ar. E a mulher que passava no caminho, preparando outra pessoa. Roberto Carlos vindo de um tempo tão longe, a estar ali. O carteiro procurando um destino se apoiando num corrimão, subiu uma escadaria carente de pintura. E os olhos finalmente foram lá pro alto. Arremessados pra mais um céu vespertino. E ficou refém dos azuis, que foram parar nas águas, saturadas de cloreto de sódio, dos olhos. Duas pequenas manchas de marrom bem a sua frente, num fio de alta tensão. Dois pardais conversavam com animosidade. Novamente se abaixaram as vistas, indo colherem rosas no jardim. Uma garça estática de dar dó, dizendo: sou apenas uma ave. Porem a imaginava uma graça, voando. E um sapo, tão à vontade, de pernas cruzadas, imitando os banhistas quando vão a praia e ficam embaixo de seus guardas sóis. A grama verdinha, calada, resignada, apenas dizendo: sou grama! O pintor porem diria: Ai das rosas se não fosse você! Sentiu que era observado. Um par de olhos de algum ponto, de algum lugar lhes olhava. E descobriu, lá estava ele. Um gato em cima do balaustre.  Era um gato branco enorme. À quanto tempo estaria lá? A íris dos olhos dele viradas num fio, adaptadas a luminosidade, fitava-o. As patas dianteiras juntas faziam-lhe um monge, meditando. As orelhas apontadas pra cima diziam: estava em sinal de prontidão. Como se a qualquer momento partiria a caçar. Será que queria dizer-lhe algo mais? 

Por uma dor ainda maior que a de dona Milu passara Zelito. Ao chegar a casa encontraria Rosalina, sua única filha, estuprada, e morta. O crime ocorreu no sitio Barra da Talhada, interior do município de Riacho Grande. Como era que uma desgraça desta foi acontecer. Logo com ele Zelito, que sempre fora um homem temente a Deus. Um seguidor da Lei de Crente. O objeto de mais valia na sua residência, era a bíblia sagrada. De todo lucro que obtinha dez por cento doava a igreja. Todo ano, era assim. Bastava vir as trovoadas de janeiro, azeitava as máquinas de plantar feijão. Tirava a ferrugem das pás do arado, untava as rodas com óleo queimado. Tudo pro preparo das terras a agricultar. Ele e a companheira, de sol a sol na lida. Tinha ano que dava parte da terra, pra homens cultivarem-na, acordando a divisão da safra. Naquele ano, um bando de homens viera arar parte de sua terra. Entre eles, Antonio um mancebo viril, apelidado Negro Gato. Num cair de tarde Zelito acabaria flagrando o negro a espreitar Rosalina nua, no banho de riacho. Pondo-se a um prazer mórbido, ao ver a menina de dez anos apenas a banhar-se.

Aquele fora realmente um ano ruim. As promissoras trovoadas, não vieram. As cabeçadas d’água que abasteciam os açudes falharam, os barreiros secaram. O gado pondo-se a mirrar. Sem pasto no cercado morrendo um a um, tudo tornado difícil. A silagem minguando. A água da mantença da casa escasseando. Zelito  em tais ocasiões, punha uma pipa no carro de boi. E duas vezes por semana ia buscar água nos Poções, a mais de dez léguas de distância. Resumiam-se as refeições à fubá de milho, meio dia com um taco de charque, e a noite molhada com leite. Mas como desgraça na casa de pobre nunca vem solteira. A mulher de Zelito resolveu ir embora. A menina Rosalina, filha do casal, a altura dos seus doze anos, optara em ficar com o pai. 

A história triste estava chegando ao fim. Ainda mais triste, por dois motivos: dona Milu jamais saberia que Damásio não morrera atropelado, e sim envenenado. Aturdido saíra de casa porque sabia que ia morrer. Comera uma isca. Uma bola, colocada, pra outro gato ladrão. O filho de Seu Antenor perdera um canário e ofertou a ermo, a refeição macabra, vitimando um inocente. Zelito também até hoje acredita que Negro Gato teria sido o autor do crime hediondo contra sua filha. Se ele tivesse o cuidado de observar minuciosamente o corpo da filha poderia ter chegado mais perto da verdade.  Não seria comum um rapaz de vinte e poucos anos, largar pêlos grisalhos, na vítima. E embaixo das unhas da menina, resto de pele branca, de ranhuras que dera no assassino. Ora não era o rapaz um negro? Zelito alguns dias depois conversava com o velho Rosalvo Maragato, seu vizinho de propriedade. A prosa versava sobre colheita, gado e carestia.

E quando deitaram a falar dos males que o corpo, com o passar dos anos dava de apresentar, Zelito até brincou, duns arranhões que o vizinho apresentava no pescoço: -Oxente! E o compadre andou brigando com uma raposa choca?  Do alpendre pitavam e contemplavam o plantio, o céu azul. A luz do sol intensa não vos permitia, verem uma menina de cabelos de ouro, brincando com um gato no meio do milharal.

Fabio Campos

Vai Carta de Manuel! Vai encontrar Sulimita.

O mês do aprisco desenhou fortes tons de verdes nos campos rurais.   E os dias pareceriam felizes. Embora estivessem às ruas, matilhas de cães, que urdiam pelas vidas de homens guarnecedores de bens, enquanto outros dormiam. Os caminhos - Valha-me Deus! Apresentavam-se tortuosos. E as casas  conversavam conversas que não levaria a coisa alguma. E pariam rebentos que ia cada um pro seus mundos, seus destinos. Deseducarem-se, do que jamais se importariam em aprender.

Quem sabe já era maio? Importava saber em que mês estava? Estava no caminho, isso era o que bastava, por enquanto. Lá adiante homens conversavam sobre cães, de verdade, no leito da rua. Vários deles vicejavam uma cadela no cio. Não podiam ficar ali esperando pra ver qual deles conseguiria o coito. De posse de uma foice meia lua, foi um deles pra ribanceira do riacho, cortar capim, pra alimentar uma mula, que dali a pouco seria atrelada a uma carroça. O capim verdinho, ainda orvalhado da manhã, soltaria pelo urticante, e picadas de mutucas deixariam calombados seus braços rudes. Sentado à porta, o outro punha cuidado as gaiolas dos passarinhos pra não se tornarem presas dos gatos.  Quando fosse mais tarde, amparando-se do sol, no muro do campo do Colégio Estadual, sentariam, em velhos tamboretes, pra jogar dominó. Enquanto isso a serra neblinava. O que era um paliativo a esfumaçar os pensamentos. Esperaria pentecostes pra se regozijar? Mais tarde descobriria que não. E a música em forma de oração que vinha como fogo. No verso, “enche-me de novo”, tinha uma quase certeza que devia cantar-se de outro jeito.  Substituiria por “enche-me de gozo” mas só em pensamento.  O templo o aguardava.  Com solicitude tiraria o chapéu. Um gesto de cabeça, um monossilábico “Bom dia!” a duas sisudas senhoras que saiam da igreja. Sentado aos primeiros batentes um mendigo, pitava um cigarro apagado. Barba branca, cabelos grisalhos, pensava, em nada.

A aula seguiu com cara de aula. E assim terminaria se não fosse Sulimita. Uma menina ainda. E nem sabia o significado do seu próprio nome. Apenas que era bíblico, assim disseram seus pais. Prometi mais a mim mesmo, que a ela, que buscaria. Um nome forte assim, jamais poderia passar em vão. Jamais, de jeito nenhum. Tão forte, diferente, ficou. Claro que o sorriso nos olhos da bela garota, em muito ajudaria. E era a própria.  Sulimita tão amorosa e talvez a mais bela de todas as mulheres. Teve seus momentos de alegria por viver intensamente um amor lindo e apaixonado. E seus momentos de tristeza, por estar separada daquele seu tão grande amor. A ponto de sair pelas ruas em busca do amado. A moça de Sunem, a jovem digna de aquecer o leito de Salomão.

No domingo fomos à vila. Quando saímos chovia. Bom viajar. Ainda mais quando chove. Estrada, casas, plantações, pomares, varais, tudo, tudo molhado, se encharcando. Numa vereda, um ciclista debaixo dum guarda-chuva. Pra onde iria? Talvez levasse café e açúcar no pensamento.  E pensasse em chegar a casa logo, pra se aquecer ao fogo de carvão. Tomar uma xícara do estimulante, e deleitar-se ao encher a casinha com aquele aroma forte, encorpado. E assim espantaria o frio, a tristeza pra bem longe. Pra além do milharal, do grotão, da matinha no cume da serra, onde pinhais, mangueiras e jaqueiras frutificavam. E tudo isso foi ficando pra trás. A subida íngreme pondo preguiça no furgão. De repente, lá estava a vila. Será que continuava do mesmo jeito? Não, por mais que a gente quisesse já não era a mesma. Os olhos convergiram pra igreja, era o ponto de referência. O orfanato, ternas recordações voltando. Entrando pelas frestas do carro, lembranças envolvendo-nos com seu frio abraço. Franciscanos no passeio, com seus hábitos marrons. Engraçado como metiam as mãos por dentro das mangas, pra manterem-nas aquecidas. A serra dizendo: “Lembra-se de mim?” Claro! Quem poderia esquecer! Não era daquelas serras que de tão longe se anulam no azul do horizonte. Um colosso verde, palpável, bem diante dos nossos olhos. Como se a gente pudesse esticar o braço e tocar, e fazer um afago como a um cão de estimação. E o cérebro a reassimilar urgentemente toda aquela realidade, de mais de catorze anos depois. A neblina ajudava. A aura remetendo ao trem que um dia passou pro aqueles trilhos, levando parentes de Graciliano, que fez poesias olhando o velho moinho, a represa, a cachoeira de águas límpidas ainda. E ia repondo o antigo clima de mistério das histórias que envolvia a vila. E se perguntava por que já não escrevera outras histórias sobre tudo aquilo ali. Desde antes já não sabia do padre que fora assassinado por um homem louco, possesso. Invadindo a igreja, sabe-se lá por que matou o sacerdote, enquanto ainda rezava a missa. Construíram uma capelinha enfrente a igreja, só pra os romeiros colocarem ex-votos. Um mural de esteira de piri-piri. Fotos que contavam histórias.  
       
Manuel ainda moço, foi caixeiro viajante. Uma, ou duas vezes por mês, o primo da minha mãe, ia a cavalo por esse mundão de meu Deus, varando o sertão. Vendendo toda sorte de mangaios: bijuterias, peças de tecido, perfumes, unguentos etc. Isso lá pros idos de 40. Batia desde o sítio Capim, ao Pedrão, passando pelo Gavião e descambava indo a Porto da Folha, e povoado Entre Montes. Atravessava o rio, Neópolis, Curralinhos enveredava por terras sergipanas. E não é que Manuel veio se tornar professor. Como isso aconteceu? Foi assim, ia ele pelas casas, vendendo seus mangaios etcétera e coisa e tal. Matuto é um bicho observadorzinho que é danado! E não que notaram que o homem era letrado! Ele lá, fazendo suas anotações e também lendo pro povo ouvir livretos de cordel, que chamavam de romances. Então passaram a lhe pedir pra fazer cartas pros parentes distante, os que tinham se ido pras bandas do sul do país, ou pra zona da mata, pro corte da cana-de-açúcar. E nem precisavam dizer muita coisa ele sabia o que cada um queria dizer. Manoel acabou sendo contratado pelo governo pra ensinar a ler uma turma de rapazes. As moças não podiam, porque moça queria aprender a ler, pra escrever cartas pros namorados.

“-Manuel já morreu.” Estávamos tomando café, naquela tarde fria. De repente, minha mãe teria dito aquilo. Ora, por que aquela lembrança? E contou.  Foi assim: Ele foi embora. Foi morar em União dos Palmares. O professor virou até nome de rua! E mostrou-me na lista telefônica.  Porém antes de ir, ele disse a madrinha Moça enteada de minha vó: “-Eu vou embora, mas volto pra casar com Dineusa.” Ora minha mãe nessa época não passava de uma menina. E ficaram se correspondendo. Muitos anos se passaram, minha mãe casou. Um dia meu pai, achou as cartas, e sem explicar que as tinha encontrado, de sopetão, perguntou-lhe: “-Você está querendo me fazer de corno?” E em surdina, simplesmente daria fim às tais cartas. Manoel tinha um sítio. Toda manhã a mesma coisa, reunia os empregados na frente da casa, faziam uma oração, e determinava o que devia ser feito. Naquele dia, tudo do mesmo jeito, só que, nem bem os camponeses deram as costas, Manoel caiu no alpendre, morto. Vitimado por infarto fulminante.  

Como era fisicamente? Foi buscar o álbum de fotografias. Mostrou uma foto antiga, em preto e branco. O sobrinho de minha vó, de pé, de terno e gravata, chapéu na mão. O que não entendia era que, lá na vila, na sala dos milagres, alguém deixou uma foto idêntica. Mesma posição, mesmos trajes, mesmas feições. Só que dos tempos atuais, colorida. Mas era ele, o mesmo sorriso, os mesmos olhos, a vasta cabeleira de índio. E não era que uma de suas cartas havia escapado. Datada de 12 de outubro de 58. O que me deixaria ainda mais intrigado, Manuel falecera em janeiro daquele ano.


Fabio Campos

Jurássico Renato

Quando cheguei encontrei Thomas na sala. Dei-me conta que estava chorando. Era um choro desatado, incontido. Choro assim carregado de sentimento, de perda. Seu pequenino corpo tinha-o debruçado sobre o sofá. De joelhos, o rosto entre as mãos. Lápis de cor espalhados pelo chão. Uma folha de papel almaço, garatujada de traços e rabiscos. Ao perceber minha chegada, ainda chorando, virou o rosto e disse:
“-Vô! Eu não consigo terminar meu Tiranossauro rex.” Quis saber, dentre tantas coisas que havia lá, qual era o dinossauro, que infelizmente não teria vindo ao mundo por completo. Por imaturidade do inventor, no seu gênesis jurássico.

O indicador da destra apontou um círculo pintado de verde, com outros círculos menores na parte de dentro. Prontificou se a explicar. “-Vô! Eu consegui fazer a cabeça. Isso aqui são os dentes. E aqui os olhos! Faltam ainda as patas! As patas não consigo!” Rebusquei meus arquivos memoriais, e a figura do rei dos dinossauros surgiu-me ameaçadora. Constatei que na hora de criar o monarca do período Triássico, da Era Mesozóica, Deus, assim como meu neto Thomas, caprichou nas arcadas dentária, porém suas patas dianteiras pareciam atrofiadas. Ainda uma lágrima descia, entre um e outro soluço. E de repente, um raio de luz entrou pela janela atingindo-nos em cheio. Tive a sensação de estar encolhendo. Infelizmente não era apenas pressentimento, realmente havíamos encolhidos. O feixe de luz nos fez deslizar, até a superfície de papel. E lá estávamos agarrados em galhos azuis, de uma árvore exótica, que liberava um cheiro forte. Eram galhos duma árvore pintada com tinta azul de metileno. E tinha a árvore frutos parecidos com maçãs, só que maiores, e blues. Olhando pro horizonte vi uma imensa bola cor de ouro. Dum amarelo intenso, cor de cádmio. Era um sol, cor e luz, porem não liberava calor. Um astro rei sem quentura. Fomos parar num mundo, onde as plantas não realizavam fotossíntese, nada era verde, não possuía clorofila. Thomas quis saber: “-Vô! Onde estamos?”

“-No seu desenho Thomas!” Com algum esforço descemos da árvore. O chão onde pisamos era macio, todo branquinho como neve, porem não havia frio, nem umidade. Uma neve que não era neve. Como de pipoca o chão, de uma superfície tão alva que doía. Iniciamos uma caminhada, sem ter a menor idéia pra que lado devêssemos ir. Ocorreu-me que a qualquer momento poderíamos encontrar um dos bichos desenhado por Thomas. Melhor seria não ter pensado em nada. Nem bem fechei o pensamento, e um carro surgiu no horizonte. Os faróis acessos o que primeiro vimos. E veio vindo, sem fazer o barulho característico dos carros, porque não tinha motor, portanto não liberava dióxido de carbono na natureza. Um menino cor de grafite, porque desse mineral era do que era feito, ao volante. O carro andava de modo desengonçado, como se fosse se desmontar a qualquer momento, porque os pneus eram círculos irregulares, imperfeitos. Feitos de caneta hidracor de cor lilás. Nesse momento Thomas sorriu, pois reconheceu o piloto. Disse-me que se tratava de “um velho” amigo, Diego. Na verdade, acabavam de encontrar-se criador e criatura. Um fraterno abraço selou o encontro dos dois. E como se pareciam!

De repente uma nuvem negra, cobriu nossas cabeças. Que nuvem que nada! Eram centenas de Pterodáctilos! Mais que depressa Diego nos fez entrar no seu carro, cuja lataria se constituía de riscos de caneta esferográfica! Era o que manteria nos protegidos dos pré-históricos pássaros carnívoros. Permanecemos ali até findar a revoada dos pterousauros gigantes. Uma vez que se foram, voltaram os amigos à conversa. Diego queria saber como Thomas tinha ido parar na “Terra do Onde-Tudo-Era-Possível”, assim chamada segundo ele, porque do branco tudo podia surgir. E disse mais: “-Naquele mundo, todos temiam o lápis preto. Tida como a cor símbolo das trevas, devorava tudo que era luz.” Todos seres daquele lugar fugiam do nanquim, como o diabo foge da cruz! Thomas disse-lhe apenas como tudo tinha ocorrido que estava na sala mais o avô, quando uma luz atingiu-os e eles encolheram. Diego disse não entender o que havia ocorrido, mas que na “Terra do Onde-Tudo-Era-Possível” lá para além da montanha Branca, morava o mestre dos Magos que com certeza sabia o que tinha acontecido. O problema era encontrar a montanha Branca, num mundo onde, até aonde a vista podia alcançar, tudo era branco.

De volta ao carro de Diego, iniciaram a jornada em busca da alba montanha onde morava o mestre dos Magos. Não andaram mais do que umas vinte jardas, vencendo a neblina da neve, que não era neve. E os faróis alumiaram uma imensa montanha verde. Ora! Se o sol não emitia calor como nascera planta ali? “-Cuidado vô! A montanha está se mexendo!” Que montanha que nada! Nossos incautos heróis tinham acabado de encontrar o Tiranossauro rex inacabado, de Thomas. Como não tinha as patas inferiores permanecia deitado, porém movimentava a cabeça para um lado e para o outro. Thomas aproximou-se. Desta feita foi a vez do avô cobrar-lhe cuidados. O menino de carne e osso, disse ao “vô” para não se preocupar, seu dinossauro não comia carne (pelo menos não a dele!). O dinossauro era amigo. Dócil, queria saber do seu criador, quando pretendia terminá-lo. Não via a hora de sair andando pela “Terra do Onde-Tudo-Era-Possível.” Assim que encontrasse um jeito de crescer, e voltar ao mundo dele, e do avô, respondeu-lhe Thomas.  O Tiranossauro rex então disse: “Ora! Não é à toa que me chamam de rei!” E concluiu: “-Na ponta da minha cauda tem um osso pontiagudo, em forma de lápis. Tudo o que um menino traçar sobre o branco com ele, vira realidade.” Pegando a ponta da cauda do dinossauro Thomas desenhou no chão branquinho, um par de patas traseiras pro dinossauro. Disse-lhe o avô: “-Dê-lhe o nome de Renato, porque significa renascido.” Desenhou também um par de asas mecânicas gigantes e colocou-as no carro de Diego. E voaram até a montanha do Mago da “Terra do Onde-Tudo-Era-Possível”.

No terceiro dia de jornada encontram o castelo. O mago recebeu muito bem os estrangeiros em seu palácio. Depois de ouvir a história, explicou o que havia acontecido: “-Todo ano que termina com o número quatro; quatro planetas do sistema solar se alinham. Exatamente na metade do outono quando, faltam quarenta dias pro solstício de verão no hemisfério sul. Se no exato momento do alinhamento, um menino que tenha quatro anos, iniciar um choro, por um motivo muito necessário, em qualquer parte da terra, desencadeia-se um campo de energia cósmica, do espaço sideral que faz com que aquela criança, e quem dela estiver próximo  encolha. O problema é o antídoto. É preciso que a bisavó do infante esteja pensando nele, no exato momento do realinhamento, quando a terra e os outros três planetas voltarão as suas órbitas de origem, o que acontecerá daqui a sete dias.”  
                 
Minha mãe estava só. Era noite. A luz fluorescente da cozinha derramava-se sobre seus cabelos brancos. Tornando assim, ainda mais brancos. Tomou café. Sentou-se a sua poltrona. Pôs-se a folhear o calendário: a folhinha do Coração de Jesus.  Em que dia do mês estava? Perdera a conta. A velhice tem dessas coisas, a gente esquece o dia, o mês, e até em que ano se está. As horas passavam a passo de tartaruga.  E vieram velhas recordações. O dia em que morrera seu pai.  Veio o padre Moisés para as exéquias. Teria o sacerdote afirmado: “-Tomaz, morreu num grande dia: 25 de março dia da Anunciação!” E lhe ocorreu um pensamento: “-Um de meus filhos tem um neto, com o nome de meu pai, só que ao invés de Tomaz chama-se Thomas.”

Fabio Campos