A história de que mentira tem
pernas curtas, quem somos nós pra refutar tal adágio. Podemos sim arvorar-nos na
premissa, que a dita cuja talvez tenha sim, quanto ao mentiroso, nem sempre. Consideremos
a existência de variado tipo de mentiroso. Existindo inclusive aquele que não convence
nem a si próprio. Caso engendre-se nossa história de fantasiosas lucubrações. Deixaremos
a cargo de quem lê-nos, os auspícios das próprias conclusões.
O matuto verdadeiro. O homem do
sertão com suas particularidades. Em essência é aquele que vive matutando. Se entre
um colóquio e outro der-se a falar de alguém que já passou dessa pra melhor, é costume dizer “-Que Deus tape as “oiças” lá onde ela estiver, pra não ouvir o
que hei de dizer a seu respeito!” Julieta tinha nela dois defeitos. Pernas
curtas e tortas, por conta de uma poliomielite, e mentia que era uma beleza. Num
tempo que a gente haveria de chamar tempos idos. A ilustre figura, juntamente
com sua família, fora vizinha de minha vó materna. Julieta era assim, cabocla,
criada com leite de cabra. Nascida nas brenhas do sertão de Belém do Cabrobó.
Trazia no sangue linhagem Iatê-Tapuio. Da calada da noite tirou a cor dos
cabelos, da casca do angico tirou a morenês da pele. Apesar do nome de
personagem do clássico literário inglês uma Tiêta agrestina, era. Aliás, depois de
saída da infância, assim que se entendeu de gente, Julieta dedicou-se com
ferocidade de animal predador, a caçar o seu Romeu. Arremedo de pavão, bonita somente dos pés pra
cima, ao atingir maturidade, buscou com sagacidade um homem pra chamar de
companheiro. Desde a infância tornou-se amiga dos familiares de minha vó. Vizinho
naquele tempo era adjetivado de “parede e meia”. Os matutos do mato, aos poucos iam se chegando
a urbanidade. Atraídos pela concentração de luzes dos quixós, quando a copa da
noite dava a cobrir o vilarejo. E as casinhas de taipa iam sendo construídas
umas encostadas nas outras, pareciam meninos buchudos quando iam pra feira.
Tímidas se espremiam na barra da saia da cidade.
Animado, igual pinto no lixo,
assim se apresentava o sertão naquele ano. As promissoras trovoadas vieram no
tempo certo. E o dezenove de março chegou, encimado na carroceria dum caminhão
Ford. E lá foram pra procissão, e a última noite do novenário das festas de São
José da Tapera. Dona Amância, sentada na calçada da comadre Aurélia botava
cuidado nas meninas. Os corrupios eram como chamavam o carrossel. Uma sombrinha
gigante girando alucinadamente. Um engenho de cana adaptado, movido a tração
humana, remetia no ar meia dúzia de moleques afoitos sentados em cadeirinhas. Nos
apoios das mãos, patinhas grosseiramente pintada. Uma ruma de gente regozijava
só de olhar. Deus me livre! Jamais me atreveria a tal aventura! Melhor era mesmo olhar! Lá
vinha o Mateu, mais enfeitado que santa cruz de beira de estrada. Estalando um
relho, assoprando álcool, num apito de caçar “Fogo-pagô” enchia o oco da noite
de lúgubre silvo. Jovens casais tentavam a sorte num Laça-laça enganoso. Tacos
de madeira que não se deixavam laçar facilmente, exibiam cédulas tentadoras. Uma
estranha pescaria, peixinhos feitos de lata de óleo, enterrados num tacho cheio
de areia. Se pescados a cauda exibia um número que indicava o prêmio ganho: um
sabonete “Alma de Flores”, uma boneca, calunga de pano, uma carteira de cigarro Astoria,
Chesterfield, Continental.
Depois de muita correria, os
meninos dirigiam-se pras barracas de comidas, iam recuperar o gasto energético.
E das algibeiras de seus calções tiravam suas tão bem guardadas moedas,. A menina
antes de sair de casa, implorara: “-Ô mãe! A senhora não tem tanto
dinheiro! Me dê uma moeda!” E se fartariam de pão doce com um suco composto de
mel, groselha ou caldo de cana, rolete de cana num gancho de catingueira,
desbotava os dentes. A luz dos caandeiros alumiava as prendas do leilão: uma
ancoreta de cachaça, frangos fritos, vários perus na pena. Um luzeiro mais
potente, abastecido com óleo diesel, garantia claridade pra imagem do santo e
pro altar. A missa campal elevava aos céus, hinos de louvores ao santo
padroeiro. O cântico glorioso se diluía na fumaça dos estrondosos estampidos dos
bacamarteiros. E os foguetes subiam deixando pra trás um rabo de fogo. E o
fedor de pólvora esturricava nas ventas do trio de zabumbeiros.
Julieta era irmã de Zefinha
costureira. Na noite da festa do padroeiro, as meninas conheceram um rapaz que ficou
interessado por uma delas, que infelizmente não fora nossa personagem. Então
ela armou seu laço de língua. Teria dito à irmã, que a amiga tinha arranjado
um noivo na festa e pedira que ela providenciasse a confecção de um vestido bem bonito
para um próximo encontro, que haveria entre eles. O tecido foi providenciado, o
cochicho correu solto. O nome do suposto namorado também foi inventado, um
padeiro da panificação São José. Sem nada saber entrou na história, de cochicho
de mulher mexeriqueira. Numa tarde em que estavam brincando Julieta
confidenciou à amiga: “-Minha amiga! Como você tem pés tão bonitos! Já os meus...”
Doeu até hoje, nada podia fazer.
E o sol depois de um dia de
trabalho. Cansado e enfadado, começou a escorregar por detrás das telhas dos
quixózinhos, dos cristãos, cristãozinhos! Daquela terra de Deus, meu Deuzinho! Zé Costa
chegava por ali, se inconstava na beira do fogão de lenha de minha vó. Davam de
iniciar uma prosa morna, cheirando a milho assado. E iam molhando as palavras
com café quente. E falaram de Mariazinha coitada, que tinha asma. E estudavam:
Mariazinha, Julieta, a sua melhor amiga, e uns meninos dos Abreus, outros do
Gavião e do Pedrão. Um dia chegou uma professora nova, pra conhecer seus alunos
inquiriu-os. Dirigindo-se a um deles perguntou: “Qual é a sua graça?” Todos
riram. Não sabiam o que significava “Sua graça”. Mariazinha cansada, cansada, coitada! Na hora de soletrar, soletrava: “C-a: cá, c-é: cé, c...Ô Julieta? Como é
esse aqui pertinho do cú? Zé Costa e minha vó riam, e riam. A balançar a pança
como fazia padrinho Pizeca.”
“- Ô Zé! Por acaso, tu soube da
história que lá no grotão, no olho d’água, depois que anoitece, deu de aparecer
aos homens, uma mulher nua, que vai tomar banho? Dizem que o cabelo é tão
grande, mas tão grande, que passa das suas partes! Mas ninguém consegue se
aproximar, ela simplesmente se invurta! Some!” Não sabia dessa história. Sabia de outra
mais interessante: “-Tá correndo por aí uma história de Ave Maria! Ave Maria! (se
benzia) De Lampião! Mês passado, o bando do cangaceiro andou por aqui perto,
passou no Capim e teve no barraco de Zé Banca, se abasteceu de um tudo. O bandido
deixou o homem quebrado. Foi embora, mas deixou um recado, que o vendilhão, não
dissesse (não dixésse! Era assim que pronunciava) pra ninguém que ele tinha passado ali. Mas foi só o bando sair do seu
terreiro. Correu Zé Banca, foi dizer ao delegado. Ah! Minha filha! Lampião quando
soube, voltou lá no Capim, e praticou miséria. Zé Banca coitado foi amarrado
num pé de babão. Deram uma pisa de urtiga no cabra, nu em pêlo. Pra encurtar a história
cortaram a língua do desinfeliz e enfiaram no fiofó do miserável!" -Vixe Maria!"
Julieta ficou velha. Também velha
tornou-se sua melhor amiga. Um dia, velhinhas tornaram a se encontrar. Na casa
da viuvez da amiga, se encontraram. Aquela que arranjou namorado na festa de
São José. Namorado de mentira que se tornou verdade. Agora tudo era motivo de
risos. Com aquele, a amiga constituiu família, tiveram filhos. E tornaram a ri,
riram, e riram lembrando de Mariazinha, que era doente de asma, que não sabia soletrar
o c-a: cá! Mariazinha que já morrera. E padrinho Pizeca que ria tanto a balançar
a pança. E se despediram. Sem saber Julieta que era a última vez que via a
melhor amiga.
Fabio Campos