
Quem sabe já era maio? Importava
saber em que mês estava? Estava no caminho, isso era o que bastava, por
enquanto. Lá adiante homens conversavam sobre cães, de verdade, no leito da
rua. Vários deles vicejavam uma cadela no cio. Não podiam ficar ali esperando
pra ver qual deles conseguiria o coito. De posse de uma foice meia lua, foi um
deles pra ribanceira do riacho, cortar capim, pra alimentar uma mula, que dali
a pouco seria atrelada a uma carroça. O capim verdinho, ainda orvalhado da
manhã, soltaria pelo urticante, e picadas de mutucas deixariam calombados seus
braços rudes. Sentado à porta, o outro punha cuidado as gaiolas dos passarinhos
pra não se tornarem presas dos gatos. Quando
fosse mais tarde, amparando-se do sol, no muro do campo do Colégio Estadual,
sentariam, em velhos tamboretes, pra jogar dominó. Enquanto isso a serra neblinava.
O que era um paliativo a esfumaçar os pensamentos. Esperaria pentecostes pra se
regozijar? Mais tarde descobriria que não. E a música em forma de oração que
vinha como fogo. No verso, “enche-me de novo”, tinha uma quase certeza que
devia cantar-se de outro jeito. Substituiria
por “enche-me de gozo” mas só em pensamento. O templo o aguardava. Com solicitude tiraria o chapéu. Um gesto de
cabeça, um monossilábico “Bom dia!” a duas sisudas senhoras que saiam da
igreja. Sentado aos primeiros batentes um mendigo, pitava um cigarro apagado.
Barba branca, cabelos grisalhos, pensava, em nada.
A aula seguiu com cara de aula. E
assim terminaria se não fosse Sulimita. Uma menina ainda. E nem sabia o
significado do seu próprio nome. Apenas que era bíblico, assim disseram seus
pais. Prometi mais a mim mesmo, que a ela, que buscaria. Um nome forte assim,
jamais poderia passar em vão. Jamais, de jeito nenhum. Tão forte, diferente,
ficou. Claro que o sorriso nos olhos da bela garota, em muito ajudaria. E era a
própria. Sulimita tão amorosa e talvez a
mais bela de todas as mulheres. Teve seus momentos de alegria por viver intensamente
um amor lindo e apaixonado. E seus momentos de tristeza, por estar separada
daquele seu tão grande amor. A ponto de sair pelas ruas em busca do amado. A
moça de Sunem, a jovem digna de aquecer o leito de Salomão.
No domingo fomos à vila. Quando
saímos chovia. Bom viajar. Ainda mais quando chove. Estrada, casas, plantações,
pomares, varais, tudo, tudo molhado, se encharcando. Numa vereda, um ciclista
debaixo dum guarda-chuva. Pra onde iria? Talvez levasse café e açúcar no
pensamento. E pensasse em chegar a casa
logo, pra se aquecer ao fogo de carvão. Tomar uma xícara do estimulante, e
deleitar-se ao encher a casinha com aquele aroma forte, encorpado. E assim
espantaria o frio, a tristeza pra bem longe. Pra além do milharal, do grotão,
da matinha no cume da serra, onde pinhais, mangueiras e jaqueiras frutificavam.
E tudo isso foi ficando pra trás. A subida íngreme pondo preguiça no furgão. De
repente, lá estava a vila. Será que continuava do mesmo jeito? Não, por mais
que a gente quisesse já não era a mesma. Os olhos convergiram pra igreja, era o
ponto de referência. O orfanato, ternas recordações voltando. Entrando pelas
frestas do carro, lembranças envolvendo-nos com seu frio abraço. Franciscanos
no passeio, com seus hábitos marrons. Engraçado como metiam as mãos por dentro
das mangas, pra manterem-nas aquecidas. A serra dizendo: “Lembra-se de mim?”
Claro! Quem poderia esquecer! Não era daquelas serras que de tão longe se
anulam no azul do horizonte. Um colosso verde, palpável, bem diante dos nossos
olhos. Como se a gente pudesse esticar o braço e tocar, e fazer um afago como a
um cão de estimação. E o cérebro a reassimilar urgentemente toda aquela
realidade, de mais de catorze anos depois. A neblina ajudava. A aura remetendo
ao trem que um dia passou pro aqueles trilhos, levando parentes de Graciliano,
que fez poesias olhando o velho moinho, a represa, a cachoeira de águas
límpidas ainda. E ia repondo o antigo clima de mistério das histórias que
envolvia a vila. E se perguntava por que já não escrevera outras histórias
sobre tudo aquilo ali. Desde antes já não sabia do padre que fora assassinado
por um homem louco, possesso. Invadindo a igreja, sabe-se lá por que matou o
sacerdote, enquanto ainda rezava a missa. Construíram uma capelinha enfrente a
igreja, só pra os romeiros colocarem ex-votos. Um mural de esteira de
piri-piri. Fotos que contavam histórias.
Manuel ainda moço, foi caixeiro
viajante. Uma, ou duas vezes por mês, o primo da minha mãe, ia a cavalo por
esse mundão de meu Deus, varando o sertão. Vendendo toda sorte de mangaios:
bijuterias, peças de tecido, perfumes, unguentos etc. Isso lá pros idos de 40.
Batia desde o sítio Capim, ao Pedrão, passando pelo Gavião e descambava indo a Porto da Folha, e povoado Entre Montes. Atravessava o rio,
Neópolis, Curralinhos enveredava por terras sergipanas. E não é que Manuel veio
se tornar professor. Como isso aconteceu? Foi assim, ia ele pelas casas,
vendendo seus mangaios etcétera e coisa e tal. Matuto é um bicho
observadorzinho que é danado! E não que notaram que o homem era letrado! Ele
lá, fazendo suas anotações e também lendo pro povo ouvir livretos de cordel,
que chamavam de romances. Então passaram a lhe pedir pra fazer cartas pros parentes
distante, os que tinham se ido pras bandas do sul do país, ou pra zona da mata,
pro corte da cana-de-açúcar. E nem precisavam dizer muita coisa ele sabia o que cada um queria dizer. Manoel acabou sendo contratado pelo governo pra
ensinar a ler uma turma de rapazes. As moças não podiam, porque moça queria
aprender a ler, pra escrever cartas pros namorados.
“-Manuel já morreu.” Estávamos tomando
café, naquela tarde fria. De repente, minha mãe teria dito aquilo. Ora, por que
aquela lembrança? E contou. Foi assim: Ele
foi embora. Foi morar em União dos Palmares. O professor virou até nome de rua!
E mostrou-me na lista telefônica. Porém
antes de ir, ele disse a madrinha Moça enteada de minha vó: “-Eu vou embora,
mas volto pra casar com Dineusa.” Ora minha mãe nessa época não passava de uma
menina. E ficaram se correspondendo. Muitos anos se passaram, minha mãe casou.
Um dia meu pai, achou as cartas, e sem explicar que as tinha encontrado, de
sopetão, perguntou-lhe: “-Você está querendo me fazer de corno?” E em surdina,
simplesmente daria fim às tais cartas. Manoel tinha um sítio. Toda manhã a mesma
coisa, reunia os empregados na frente da casa, faziam uma oração, e determinava
o que devia ser feito. Naquele dia, tudo do mesmo jeito, só que, nem bem os
camponeses deram as costas, Manoel caiu no alpendre, morto. Vitimado por infarto
fulminante.
Como era fisicamente? Foi buscar
o álbum de fotografias. Mostrou uma foto antiga, em preto e branco. O sobrinho
de minha vó, de pé, de terno e gravata, chapéu na mão. O que não entendia era
que, lá na vila, na sala dos milagres, alguém deixou uma foto idêntica. Mesma
posição, mesmos trajes, mesmas feições. Só que dos tempos atuais, colorida. Mas
era ele, o mesmo sorriso, os mesmos olhos, a vasta cabeleira de índio. E não
era que uma de suas cartas havia escapado. Datada de 12 de outubro de 58. O que
me deixaria ainda mais intrigado, Manuel falecera em janeiro daquele ano.
Fabio Campos
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