A rua a praça, a cidade a praça, a igreja e a praça. As árvores da praça. Estava tudo lá. Tudo imperfeitamente
no mesmo lugar. Tudo tão pálido de concreto, aço, e desfalecimento. E o céu
parecia estático esperando acabar novembro, para ficar assim inflamado de
segredos. E todas as coisas ficavam com cara de livro guardado em biblioteca. Sem
destino, amofinando suas malditas incertezas.
A perdição de um homem, talvez
resida em descobrir, depois de maduro, não ter mais um destino pra seguir. Constatar
que a vida, gastara inutilmente. E que a única coisa que restava era voltar pra
casa. Tentar reencontrar-se a si mesmo. Vinte
anos virados em riscos de carvão, numa suja parede de cela de cadeia. Vinte
calendários de eterno outono. A tirar-lhe o brilho dos olhos, a colocar sal nos cabelos, e insipiência nos
gostos. E as moças nuas das folhinhas que um dia lá fora lhe sorriram. Lá
dentro, a cada mês, com tanto ódio lhe sorriam de novo. Para nunca mais, para a
eternidade de vinte anos. Pra ele fora muito, muito tempo. Duas décadas, tempo
suficiente pra um monte de gente, na lapa do mundo, nascer, crescer virar
pessoas, que ele jamais conhecera. Desejou ardentemente rever os irmãos. Como
gostaria muito de ver Ezequiel. Não sabia naquele instante onde ele estava.
Depois do ocorrido, o julgamento, a prisão, nenhuma notícia, mais de ninguém.
A velha casa onde um dia morara,
estava lá. Continuava lá, como se lhe estivesse esperando. As suas janelas ao
vê-lo choraram. Intumesceram de lágrimas ao recordarem quando pequeno sentara
nos seus batentes. Sempre no final da tarde. Trajado na fardinha de marinheiro com duas
âncoras bordadas na lapela de costas. Os pezinhos calçados em seus sapatos
pretos, de cadarços brancos. Esperaria o padrinho voltar do comércio. E quando
era lá pelo fim da tarde lá vinha. E o abençoaria, e lhe daria uma moeda. Sem
que fosse preciso pedir. Era práxis: o primeiro não podia pedir porque era
falta de educação. O outro daria, pelo mesmo motivo. Sentado ali à praça, um
mundo. Passou como um filme a sua frente passou. Um mundo tão natural, de gente
simples, de meninos pretinhos, que seguiam pela rua. Filhos de mucamas. Agarrados
na saia da mãe com medo de se perderem. Além de tombarem imensos balaios de
mangaios na cabeça, tinham as mães pretas que suportar os negrinhos, feitos
sururu de capote, grudados na barra de sua saia.
Sentado ao banco da praça. Bem
devagarzinho, sem quase ninguém perceber, foi a noite caindo. Com a noite veio
o guardador de postes, querendo reconhecê-lo focou-lhe sua lanterna.
Defendeu-se como pode. Na casa, agora havia uma luz acesa. Criou coragem e seguiu em
busca do único destino que o esperava. Bruno,
o filho mais novo de Ester sua irmã mais velha, o recebeu. Por dentro a casa
era a mesma, e o abraçou por dentro. Os traços do menino eram os mesmos do avô.
O semblante semelhante aquele do retrato da parede. Os cabelos finos, a pele
alva, o nariz aquilino, as orelhas enormes. E a mãe, morta, continuava sentada
na cadeira de balanço de palhinha. E indagou-lhe; “Onde andava que nunca mais
apareceu?” Nada respondeu. Sobre as
orelhas grandes do neto, disse: “É de família. Dizem que por conta disso vai
viver muito!” Pra cada fala uma pausa. Apoiando os pés nos chão parava o
balanço. Depois empurrava o encosto da cadeira com as costas e a cadeira
voltava a ranger nos encaixes. Indo pra traz, e pra frente. E rangia e rangia,
mas somente ele via e ouvia aquele acontecimento. A cadeira porem estava lá. Três
pessoas, a sós. Bruno distraído com um fone no ouvido. Ouvia música enquanto
folheava uma revista de futebol. Pra tevê ligada nenhum dos três olhava. Dona
Euvira agora cochilava, o sangue que jorrara de sua jugular, que empapara todo
seu colo tinha coagulado. Tornara-se um sangue vermelho escuro, capaz de ser
removido à unha de tão ressecado. Vinte anos tinham se passado, cheiro de
sangue nem tinha mais. Josuel sentado a
mesa dividia sua atenção com os dois mais que se encontravam ali. Josuel morto
vivo, Bruno vivo e meio, a mãe morta, que só ele via. Os três juntos, e sós. E
a lua se esticou pra ver melhor pela claraboia da área verde, e ia navegando a
noite. A luz da fluorescente repousava sobre os cabelos cor de prata, alvo e
preto. Bruno abandonara a revista, e o fone. Foi até o guarda-louça procurar
algo pra comer. Dona Euvira Perguntou em que dia do mês estávamos. Josuel
notívago, enjoado respondeu: “-Sei lá...” Foi à vez de Bruno perguntar: “-Sei
lá, o quê? ...” “-Nada! Estou pensando alto.” Era comum um ex-detento perder a
noção do tempo. Queria saber das suas irmãs. Dona Euvira disse que não sabia. Lembrou do dia do sepultamento dela e de Jerônimo
seu marido. Tudo tinha ocorrido rapidamente, num dia de domingo intensamente
quente, dum mês de setembro, de primavera.
A bíblia estava à mesa, a alcance
da mão. Abriu aleatoriamente. “Livro de Ezequiel Capítulo 23 – Filho do homem
houve duas mulheres, filhas de uma mesma mãe. Estas se prostituíram no Egito;
prostituíram-se na sua mocidade; ali foram apertados os seus seios, e ali foram
apalpados os seios de sua virgindade. E os seus nomes eram: Aolá a mais velha,
e Aolibá sua irmã; e foram minhas e tiveram filhos e filhas; e, quanto aos seus
nomes Samaria é Aloá, e Jerusalém é Alibá. E prostituiu-se Aolá, sendo minha; e
enamorou-se dos seus amantes dos assírios, seus vizinhos. Vestidos de azul,
capitães e magistrados, todos jovens cobiçáveis, cavaleiros montados a cavalo.
Assim cometeu ela as suas devassidões com eles, que eram todos a flor dos
filhos da Assíria. E com todos os de quem se enamorava; com todos os seus
ídolos se contaminou. E as suas prostituições, que trouxe do Egito, não as
deixou; porque com ela se deitaram na sua mocidade, e eles apalparam os seios
da sua virgindade, e derramaram sobre ela a sua impudicícia. Portanto a
entreguei na mão dos seus amantes, na mão dos filhos da Assíria, de quem se
enamorara.”
E tudo aparentava aquele aspecto,
porque vinte anos haviam se decorrido. Os esteios da casa não mais se faziam
entre aqueles. Vinte anos se passara desde que a desgraça se abatera sobre
aquela família. Dona Euvira falou que tudo aquilo que havia acontecido, um dia
tinha sido previsto por um primo que ela tivera na infância. Era um homem comum
que se tornara de muitos dons. Diziam: “-Ele chorou na barriga da mãe.” Antes
dos vinte anos, nunca passara de um agricultor, um lavrador, um dos que fere a
terra com a estrovenga e o ancinho pra dali tirar o sustento. Do dia pra noite
começou a profetizar e fazer premonições de acontecimentos vindouros e decifrar
sonhos. E do dia pra noite tornou-se um homem culto. Os vizinhos se encarregaram de espalhar que
naquele lugar havia um iluminado. Muitos eram os que vinham pra casa do primo
da avó de Bruno, em busca de cura de seus tormentos, de saberem a origem de
males que lhes acabrunhavam os espíritos.
Em dia de feira, vinham agricultores para pedir que ele fizesse cura de
seus animais, e para que o livrasse das mazelas que vinham as lavouras. Pedidos
para que trouxesse de volta o cavalo desertado, para que tivesse bom parto a
mulher grávida com filho enlaçado no ventre, que sarasse a pata do boi de arado.
Naquele fim de mundo, numa casinha de taipa ecoava na montanha as orações, as
lamentações, os gemidos dos atormentados por maus espíritos, os possessos em
busca de cura. E aquele um dia profetizou: “-Uma prima minha contrairá
matrimônio com um usurpador, porque quem deita cartas numa mesa de cassino, não
passa dum usurpador, amigo do alheio. Dessa união surgirá más índoles, pelo
menos quatro vingarão, dois varões e duas fêmeas. Porem devido aos agouros dos
que muito perderam do seu suor na ilusão das cartas, por não obter sucesso
amaldiçoaram os frutos dele.”
As velas acesas queimavam
parafina enchendo de calor e luz tênue o ambiente. As velhas corocas, com o
colo esbranquiçado de pó de arroz, e o pescoço cheirando a traseiro de bebê, se
abanavam esbaforidas com leques ricamente decorados com imagens do tempo do rei
Luiz XV de França. No altar a imagem de Jesus dos Passos. Tudo pronto para a
procissão. Seu Jerônimo estava na calçada, somente o primo da avó de Bruno o
via, de terno branco, de igual cor, o chapéu, e os sapatos. As mãos no bolso, pensativo.
Fabio Campos