
Lembranças de casa chegaram com
nitidez, porem em relampejos. A mãe na cozinha, virada pra pia preparava alguma
coisa. A peixeira luzidia na mão. Cheiro de legumes cozidos. Lenço na cabeça, atado
por baixo do queixo duplo, a realçar enormes bochechas róseas. O avental engordurado
cobria obesidade de ventre. Grossos meões em chinelas de dedo escondiam as
varizes subida as pernas. O pai, arriado na velha poltrona. O dia inteiro
metido no pijama. Sob o efeito de barbitúricos adormecia e acordava, a televisão
assistia-lhe. Daquele ângulo dava pra ver apenas a calva, e uma ponta do aro dos
óculos. Numa mesinha duas caixas de remédios. Um pires com dois comprimidos,
talvez fossem pra gastrite e controle da pressão arterial. Meio copo com água.
Um frasco de adoçante, uma xícara vazia com um refil de chá verde. Um prato com
meia lua de papa de aveia jazia no braço da poltrona. Migalhas de pão no chão.
Um gato branco, enorme, alisando-lhe as pernas do pijama, enchendo-lhe as meias
de pelo. Era noite, a mãe agora se estava no quarto, de camisola sentada na cama.
Revirava alguma coisa na gaveta do criado mudo. Um rosário de contas azuis pendurado
num crucifixo prateado, logo acima da cabeceira da cama. Uma vela apagada. Uma
caixa de fósforos caso à hora derradeira chegasse, não pegá-la-ia de surpresa.
Uma lanterna, pro caso da vida persistir, e a única coisa a faltar ali fosse energia
elétrica. A parede tinha um enorme Zepelin, numa mancha de umidade. Duma infiltração
da caixa d’água do banheiro. Impregnados de mofo os forros da cama. O que fazia
com que espirrarem sucessivamente até tornar-se coriza. Antes de deitar-se consultaria
um calendário de 1972, colocaria o dedo num dia do mês de julho circulado com
risco de caneta esferográfica. O que de importante teria acontecido naquele
dia?
Havia louça suja na pia. Um rato
passou do ralo pra detrás do fogão. Dali a pouco reviraria o que havia no
forno. O gato obeso estirado no sofá. Viu o movimento do camundongo, e sequer se
dispôs a persegui-lo. A lerdeza, a preguiça, a empáfia, estes e outros azedumes
humanos talvez atingissem o bichano. Na verdade, o sentimento mais presente ali
era o medo. Implacável invadindo almas, admoestando as carnes. Um medo mórbido,
de viver, e de morrer. O mundo rodopiando e ameaçando derreter tudo feito peças
de museu de cera, expostos ao calor. O médico diagnosticou labirintite. Maldita
tontura, um comprimido não evitaria a náusea. O pão com café revirou o estômago,
e ameaçava sair em forma de larva. Tinha que tomar um antiácido. Caso não
encontrasse um, encheria a boca com uma massa qualquer, mastigaria arroz cru. Abriu
a gaveta, e a faca quase o cegava. Sequer gostava de tocá-la. Portava e
via-lhes tremores por todo o corpo. Depois de empunhada aparentemente tudo se
normalizava. Era como um alcoólatra que depois do primeiro copo via
restabelecido os nervos. Pensava nela cortando músculos expostos. Estranho
prazer de ver o fio de aço penetrando carne. Apertara o gume com tanta força
que o sangue pingou da mão tingindo o chão da cozinha. Estranhamente não sentia
dor alguma.
Ali estavam seus pais. A quem
tanto aprendera respeitar, e odiar. Ultimamente dera pra pensar de como abrira mão
de sua vida pra cuidar deles. Acreditava que tudo era coisa do destino. A vida
se encarregara pra que fosse daquele jeito. O quarto período do curso de
Direito, acabara por desistir pra dedicar-se a eles. A área criminalista
exercia-lhe fascínio. Tantas leis que antes de evitar, beneficiavam o crime.
Tornou-se alguém que descobrira um câncer no esôfago agravado pelo tabagismo e
que acabaria por assassinar os pais pra ficar com a herança. Sempre levara uma
vida desregrada, Foi necessário amadurecer e apodrecer na idade pra perceber
que abrira mão de viver pra cuidar dos pais, idosos. Não casara, não
constituíra família. Administrar-lhes os remédios controlados. Os tremores das
mãos. O zumbindo no ouvido, a labirintite.
Os medos, os vícios. As imagens deslizando, gelatinosamente. O pai
continuava assistindo televisão. Ou será que dormia? O relógio na parede da
sala dizendo que já eram mais de duas da madrugada. No filme da tevê um
assassino invadia um apartamento de uma mulher. Um mascarado se escondendo
atrás das cortinas, Alguém via a ação do bandido de outro apartamento, e em vão
tentava avisar a moça do perigo. As luzes acesas. A mulher andando pelo apartamento,
sem saber que a morte lhe rondava. O pai dormindo, correndo igual perigo da
mocinha da televisão.
A noite estava muito quente, a
mãe tinha ido tomar banho, não viu a cena do bandido na televisão. Muito menos
a iminência do perigo que corria. Esfregava as costas com um escovão, sentada dentro
da velha banheira de estanho, cheia de água de sabão. O sangue tingindo a água
azulada. Uma touca branca na cabeça. Os pingos do chuveiro misturando-se a água
sanguínea. A faca estava lá. Proibia-lhe terminantemente de portar uma faca.
Não havia desculpa ou razão, qualquer que fosse. O chá, o líquido quente descendo
por dentro da garganta. Outro líquido quente vermelho, jorrando da jugular, descendo
pelo pescoço, empapando a camisa do pai. Nenhum grito de dor, nada. Ao menos o
último suspiro. Daqueles que dão os moribundos, nada. A mãe se quer percebeu o
assassino aproximar-se, de cabeça baixa olhando pras mãos, viu uma sombra
descer sobre si. Só então percebeu que havia alguém mais no banheiro do quarto.
Pensou que fosse o marido vindo aliviar a bexiga, e que depois voltaria pra
televisão. E mais tarde deitar-se-ia ao seu lado na cama. A faca deslizou macia
sobre o seu pescoço. A pele flácida lembrava a galinha sendo desviscerada na
pia da cozinha, nos dias de domingo. Macia deslizando, e o sangue quente, indo encher
dum vermelho vivo a água de espuma de sabão, da banheira. O pai morto a televisão
ligada. A mãe morta, o chuveiro ligado. Enchia a banheira d’água, misto de
sanguínea, e azulada.
Acendeu um cigarro ficou sentado
olhando pros anéis de fumaça que fazia com a língua. Não sabia o que faria com os corpos. Se não
tivesse tão cansado retalharia. Colocaria em malas, e iria jogar num terreno
baldio. Longe da cidade cobriria os pedaços de corpos para que não congelassem
de frio. Temia pelas aves de rapina. Lembrou-se que era inverno, não havia
delas naquela época do ano. E os cães? O filme do bandido no apartamento da moça já
acabara. Agora passava uma aula de mecânica, logo, logo, amanheceria. Quem
seria capaz de cometer tão hediondo crime? Quem seria o autor daquela barbárie?
Não teria coragem pra cometer tamanha atrocidade jamais. Não se animava a limpar toda aquela sujeira,
esconder provas. Somente um criminoso frio e calculista mataria os pais. Pior,
sem sentir o menor remorso. Talvez alguém como aquele bandido que atacou a moça
no filme.
Pegou um livro de capa amarela na
estante. Era de Aritmética viu que pertencia a seu irmão, tinha o nome dele
escrito de caneta na contracapa: Ezequiel. O livro era do ano 1972. Lembrou do
calendário, fora naquele ano. O champanhe que não era champanhe era Sidra. Falta
de conselho não foi. O próprio diabo tantas vezes lhe aconselhara para que não
fizesse besteira. Preferia que vivesse honradamente a ter seu inferno
particular, ainda no mundo dos vivos. Precisava dele ali. Era muito mais cômodo, no inferno já havia gente demais. Olhou pela
janela. Lá encima uma lua branca, perdida no azul do dia. Soprou uma baforada
do cigarro. Amenizando o vermelho dos olhos, um gosto de sangue na boca. Aquele
era gosto antigo.
A vitrola tocava Vivaldi à matina.
A camareira chegou ao trabalho. Cumprimentou-o. Acostumada a não receber
resposta, cumprimentava-o assim mesmo. Depois do que viu, saiu esbaforida, aos
gritos. A porta aberta tornava público o sinistro. Um vizinho ligou pra polícia.
Não demonstrou a menor reação. Um policial, no seu procedimento padrão apontado
a arma, dando voz de prisão, enquanto outro lhe punha algemas. As luzes da
viatura piscando lá fora sem destaque, afinal era dia. Realmente se tudo, tudo não fosse tão real.
Confundir-se-ia com a cena do filme que assistira naquela madrugada.
Fabio Campos
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