
“Há um brilho de faca
Onde o amor vier
E ninguém tem o mapa
Da alma da mulher
Ninguém sai sem o coração sem sangrar
Ao tentar revelar
Um ser maravilhoso
Entre a serpente e a estrela”
Vinte e poucos anos e Zé Ivan parecia ser bem mais jovem.
Rosto alvo, espinhas avermelhando-lhe as faces. Cabelos revoltos, dum jeito de
que tomava banho, e não via pente. Proeminente dentição incisiva sob lábios
finos. Os óculos, de aros arredondados dando-lhe cara dum John Lennon,
sertanejo. Calça jeans, tênis de cadarços brancos, desalinhados, descomportados.
Bolsa de couro a tiracolo, camiseta com uma estampa maneira, o que o tornava
ainda mais esguio. Tinha, a um só tempo, cara de anjo - decaído, mas anjo - e
universitário calouro. Não era fácil captar - muito embora houvesse - bem lá no
fundo do olhar, uma rebeldia doce, quase ingênua. De um menino que curtiu Kurt
Cobain, chorou e chorou quando ele morreu de overdose. Passaria três dias,
trancado dentro do quarto, sem querer ver ninguém. As portas do guarda-roupa -
pelo lado de dentro, o espelho - cheio de adesivos do Iron Maiden, Sepultura, Nirvana,
Charles Brown Jr e Renato Russo. Quando estava de bem com a vida, pegava o violão,
num domingo bem cedinho, se afastava da cidade. Ia sozinho curtir a natureza, cantar
Sting para os lírios orvalhados dos campos. Tinha saudade das conversas que não
teve com seu pai. Quem sabe perguntar como fora pra ele viver duas gerações
antes de ser seu pai. Ele que vira nascer o rock’in roll comportado de Elvis
Presley. Esbarrado nos anos oitenta, tempos da eletrizante geração Coca-Cola,
de Rita Lee e Cazuza.
“Um grande amor do passado
Se transforma em aversão
E os dois lado a lado
Corroem o coração
Zé Ivan morava numa República com mais três amigos,
na Rua Nossa Senhora de Fátima, num primeiro andar. Estudava Geografia em Belo
Jardim. Nas noites quentes de verão ia pra Pracinha Dom Fernando Medeiros tomar
cerveja com os amigos. Foi naquela praça que conhecera Dayane. Não sabiam, mas
viveria os dois, um amor intenso. Como uma maçã cortada que encontra a outra metade.
“Apple” a marca do seu headphone era também nome da Banda da qual seu pai era
fã. Guardara dele, um disco compacto, que tinha na capa metade da fruta cortada.
Com caneta a nankim alguém havia escrito na capa: “Were a British psychedelic
rock band. The band was
founded in Cardiff in 1968 by Rob Ingram on Guitar and Jaff Harradon bass. They
released single LP in 1969, titled “An Apple a Day” E vinham as lembranças, com
nitidez de por gosto de sangue na boca. De sua infância, da casa onde morava,
próximo a Praça do Pirulito, em Maceió. Com impressionante nitidez a ouvir o
barulho do trem. A abalar os alicerces, a tremerem as panelas, no tripé lá na
cozinha. O barulho enorme, de dar a sensação que tudo ia desabar. Essa rotina
repetida mais de quatro vezes por dia. E o braço da radiola que sequer
terminava uma faixa do Long Play que seu pai colocava pra tocar retornava pro
início e começava tudo de novo. Ainda menino deitado na cama, Zé Ivan cansou de
imaginar o trem, como um gigantesco imbuá de ferro, doidamente derrubando as casas
e que a invadir seu quarto. Tantas foram as vezes que adormecera e sonhara esse
sonho.
"Não existe saudade mais cortante
do que a de um grande amor ausente
Dura feito um diamante
Corta a ilusão da gente
A noite caída, uma vermelhidão vinda do tabuleiro, se misturava com o
negro do firmamento, trazia o cheiro de tiborna. E a fuligem da palha de cana-de-açúcar
queimada enchia os móveis, os quadros da parede duma camada fina e preta. De
agosto a dezembro, a entre safra. Era sempre assim, se adoecia com
frequência de constipações. E o ambulatório do Sanatório, ficava abarrotado de
criança e idosos com problemas respiratórios. Zé Ivan era levado por sua mãe
primeiramente no Posto de Saúde ali do bairro, próximo a sua casa. Um médico
com cara de alemão nazista. Como que saído daquelas velhas revista Seleções, ou
da revista o Cruzeiro, duma matéria do jornalista de guerra, Davi Nasser que
cobria os conflitos no golfo pérsico, no Vietnã, e estivera na Itália na
segunda guerra mundial. Talvez dali se tivesse
materializado. Saído duma página de jornal, guardado por seu pai lá no sótão. Bastante irritado o médico punha a culpa nos pais pelas doenças dos filhos. E
esbravejava imprecações contra o governo, o descaso com a saúde pública. Lembrou-se de sua mãe - num daqueles domingos que ia a família
à praia - preparando sanduíches e bolinhos de arroz pra
levar. Iam à praia de Pajuçara, e tiravam fotos com uma geringonça chamada de
Polaroid que produzia fotografias instantâneas. A roupinha de marinheiro, o
calção listrado, o maiô comportado, os sorrisos de gente feliz. Uma delas flagrou o velho Gogó da Ema, o
famoso coqueiro com esse formato.
“Toco a vida pra frente
Fingindo não sofrer
Mas o peito dormente
Espera um bem querer
E sei que não será surpresa
Se o futuro me trouxer
O passado de volta
Num semblante de mulher
Olegário Martins o pai de Zé Ivan, fora funcionário
do DNER nos anos sessenta. Um belo dia acabaria transferido pro sertão.
Recrutado pra fazer parte da equipe que iria construir a ponte General Tubino,
em Santana do Ipanema. Obra sobre o intermitente Rio do sertão. A redenção para
melhorar o fluxo de acesso a Bacia Leiteira de Batalha e Major Isidoro. Aos
sábados Seu Olegário levava o menino pro Mercado da Produção. Ia comprar
verdura e carne. Um dia, vinham os dois voltando pra casa. Como sempre passavam
na feira do passarinho, na banca de revista comprava o jornal. Na tabacaria
cigarrilhas. Pro menino, churros um caminhão de madeira branquinha pintado com
corante azul e vermelho. Ao
embrenharem-se por aqueles becos escuros e mal-cheirosos, entre palafitas, um negro mal
encarado vindo ao encontro deles empurrou Seu Olegário pra um canto, e anunciou
o assalto. Como um raio uma faca peixeira brilhou em sua mão. Seu pai sequer demonstrou
qualquer reação, porém recebeu: Uma, duas, três vezes... a lâmina cravou-se em seu
abdômen. Rapidamente o ladrão rebuscou-lhe os bolsos, e saiu correndo. O menino,
estático. Em estado de choque. Vendo o pai cair lentamente ao chão, uma poça de
sangue indo contornando-lhe o corpo. Cada vez mais aumentando de tamanho. E o mundo
rodopiou. E o céu ficou vermelho. Por que
estava acontecendo aquilo? Seria bom se fosse só ilusão. O mundo
vertiginosamente rodopiando. O céu escurecendo. Pra onde fora a luz? Quem dera fosse redemoinho de vendavais que dava, no
caminho de volta da escola. Alucinadamente o céu não parava de girar. E a
realidade era uma dura constatação. Certas coisas deviam nunca acontecer. Deus.
Melhor nunca terem acontecido.
Fabio Campos
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