Medonha Noite

Era assim um cair de tarde, e as nuvens do céu se inventavam de falar de tristeza. Para isso tinham que se livrar do sol, que só falava de vigor e luz. E tudo estava como que empesteado com uma alegria quase incontida. 

Então o trovão disse, estou. O relâmpago também, eis-me aqui. E veio a chuva. Assim uma chuva feia. Com seus pingos grossos, espaçados, previsivelmente inesperada. Intrometidamente apressada. 

Borrando a tarde, afugentando as cores das flores, dos pássaros. A dizer o que não mais era prioridade. Tirou os namorados do banco da praça. Fez o velho senhor improvisar o jornal como guarda-chuva. As crianças, somente elas gostaram daquela chuva. E da mesma forma que veio se foi.

A noite, desembestou-se cheirando a terra molhada. Ainda era cedo da tarde, mesmo assim chegou. Nem um pouco surpreendente mais cedo veio. A moça ficou no alpendre, e era parte desses acontecimentos. Não podia, nem devia ser apenas mera observadora. Fazia parte de tudo como protagonista duma história, que não tinha começo, nem meio, apenas fim.  Os cílios molhados de lágrimas repousadas na foto que jazia na palma duma das mãos de seus longos dedos trêmulos. Mãos que a pouco esmerara no tocador seu longo cabelo. Enquanto seus olhos buscavam no espelho encontrar alguém tão estupidamente parecida com ela, porém não se sentia aquela, refletida lá. A boca semi-aberta os alvos incisivos mordiam o lábio inferior tornando-o túrgido, rubro. Uma palavra que teimava em não se materializar, cujas cordas vocais simplesmente se negavam concretizar, escondida no consciente, se fazia, ciente.

A brisa quente, esbaforida como bafejo de bovino. Veio vindo, carregando, como quem flutuava a alma morta da tarde. A tocar-lhe os lábios permitindo-se fundir-se com o seu hálito adocicado. Lembrava de Leonardo, com ardor. Do tempo do namoro, escondido porque seus pais de criação não consentiam. Leonardo era um soldado recém admitido na corporação. Não tinha um ano de farda, e fora designado para subdelegado da Vila Capim da Igrejinha. Administrada pelo intendente Firmino Fontes era, nomeado pelo então governador Major Luiz. E do alto de seu orgulho não aceitava que sua neta-afilhada namorasse um soldado de polícia. Pra ele, todo militar não prestava. Apesar de que precisava sempre dos seus préstimos: pra dar uma surra em cabra safado, pra dar fim a outro que andasse se metendo a besta. A falar de sua gestão, a ferro e fogo implantada. Debaixo daqueles bigodes até onde as vistas podiam alcançar, tudo que vivesse tinha que respeitá-lo.

Lembrou com muita veemência do dia que Leonardo conhecera coronel Firmino Fontes. Mais dois dias e faria uma semana que havia chegado à vila. Conheceu a professora Maria Auxiliadora por providência do acaso. A delegacia ficava quase defronte a escola. Uma troca de olhar, um cumprimento formal. Daí a pouco estavam conversando. Falaram sobre o calor, a escassez de água, e que naqueles tempos de seca, era tirada da cisterna da delegacia pra servir a cantina. Naquele quinto dia de vila, nem bem Leonardo pôs os pés dentro do cubículo onde funcionava o distrito policial, e o coronel por um dos seus capangas, mandou buscá-lo. Chegou trazendo-lhe outra montaria. Orgulhava-se de trajar aquela farda cáqui, o cinto largo, a cartucheira com a arma da corporação, os coturnos pretos, engraxados, o boné engraçado que cobria somente o cocuruto. Porem tão respeitado um soldado de polícia em todo estado,com ênfase no meio da feira. O cabelo rapado, rosto bem escanhoado. Era o ano de 1969, e ele só tinha vinte e quatro anos. Um bigode fino conservado, mais pra dar ideia de mais idade. O dia realmente muito quente, dum desses verão, seco torrado, dum céu azulino sem nuvem. De doer às vistas se o cristão se inventasse de olhar pra cara da bola de fogo que tinha nome de nota musical. Inclemente seguia o sol sua pauta de clave de si implacável. A música era a segunda paixão de Leonardo. Tinha um trompete que vez outra tirava dele uns acordes.

 O coronel se estava no alpendre. Sentado na cadeira de palhinha. E pareceu que tudo no mundo, de tão cansado, parado estava. Não se ouvia um nada. Se quer um vento de respeito, dos que assobiam forte nos ouvidos, ou mesmo um redemoinho de encher os olhos de areia, e derrubar mais folhas da craibeira na calçada. O que ainda malmente se via, era aqui e acolá se levantar uma poerinha acanhada, a dar ideia de que algo ainda estava vivo. No sertão brabo de meu Deus os viventes não entregavam os pontos assim facilmente. O coronel Fontes despira o terno e a camisa. Porem lhe cobria os peitos flácidos, forrado de fios brancos e a barriga volumosa, uma camiseta branca, de meia. Suava por todos os poros. Um cigarro branco de filtro amarelo, recém aceso pendurado no lábio. Logo formou longa ponta de cinza. O artefato apelidado de chupeta do cão, se consumia sem ser tragado. Servindo somente de incenso a espantar moscas. Os jagunços eram três negros, de raça, e de procedência pra lá de duvidosa, que pela convivência já conheciam os pantins do patrão. Com caras de cães raivosos, amestradamente vigiavam. Pra eles, aquele tipo de postura do senhorzinho só era concebida quando algo havia a ser resolvido.  O coronel sem levantar a vista, buscou um revólver taurus 38, preto com cabo de madeira, que se encontrava numa pequena mesinha ao lado da cadeira. Abriu o tambor, checou a munição, girou o cilindro, e retornou com ele a posição original. Era tudo parte de uma encenação. A raposa velha fazia o jogo do: “É bom que esse cabra saiba: quem manda aqui sou eu!”, sem precisar dizer, exatamente. Ditava sua lei com gestos comedidamente ensaiados. “-Só tenho a dizer ao senhor delegado que deixe minha neta em paz. Não a quero de namoro com um soldado de polícia.” E sem dar a menor oportunidade de seu interlocutor falar palavra, tratou de mandar o mesmo jagunço voltar com o homem da lei até o seu posto.  

Pra continuar os estudos, Maria Auxiliadora, teve que deixar a vila. Não ficou mais de seis meses e partiu. Foi morar na casa de uma irmã mais velha, no mesmo sertão, distante da vila somente alguns quilômetros. O mundo rodopiou. A professora acabou casando com um primo chamado Valdemar, que era agricultor. Com quem teria dois filhos Raquel e Rubens. Vinte anos depois estavam separados. Valdemar foi embora pro Mato Grosso, com ele foi Rubens. Raquel ficou com a mãe.

Naquela tarde de verão Maria Auxiliadora recordava. A foto na mão. Estava no terraço da casa onde morava por tantos anos. A se consumir em recordações pensava nos filhos. Rubens escreveu-lhe: tinha ido embora do Mato Grosso, fora morar com um tio em São Paulo. Prestou concurso para a polícia e aguardava o resultado. Era quase desespero, a angústia lhe invadia naquele momento ao recordar que seu filho poderia se tornar na metrópole, repleta de violência, um policial. E ainda lhe repousava na consciência o estigma da rejeição. Soldados são pessoas tão descriminadas. Veio-lhe com vigor a lembrança de Leonardo, como o esquecera.

A foto era numa praia. Ela estava de maiô listrado, com óculos escuros, e sorria, com frescor de dentes perfeitos. Ainda não escurecido pela nicotina de cigarro, que mais tarde aprenderia a fumar. Herança maldita de família, pela admiração que tinha pelos hábitos do avô. Na imagem aparecia com uma das mãos segurando um enorme chapéu de palha. Estava em pé, ao lado do ex-marido. Sério, talvez incomodado pelos trajes minúsculos se expondo. Incomum a um homem rude, do campo feito ele tal situação. Valdemar segurava firme a cintura da ex-esposa. Os dois filhos pequenos sentados na areia sorriam felizes. A pele alva que tão poucas vezes haviam exibido ao sol, daquela forma quase ofuscava.

O relógio na parede da sala de janta, uma lua cheia, de números. Três da madrugada diziam as setas pretas. De costas pro quintal, sabia do pé de manga, lá traz, falando de escuro, e mangas de vez, esperando desfrute e vento. O chão uma pracinha cimentada. O terreno com seu considerável declive. De repente um baque surdo. Oh! Alguém saltara o muro, com certeza um ladrão! A porta buscada com aflição e angústia. A chave, tinha que girar a chave! Alívio, conseguira trancar-se do malfeitor que passou correndo, no oitão da casa. Oh longa noite insone, de desespero. Medonha noite que não trazia o dia. Mas quando viesse, e com certeza viria, a frondosa mangueira a sorrir pro sol, amanheceria com menos algumas mangas na copa.


Fabio Campos 28 de Janeiro de 2015                        

Sedução (Party 3)

As horas, diziam muita coisa, porque cada uma delas sempre tinha algo a dizer. Uma mulher pode parecer quem realmente nunca foi. Assim como o homem, quem realmente sempre fora pode aparentar. Tudo depende do lugar, do momento, especialmente da hora. Aquela mulher que atravessava a rua – que pena - não era Maria Rita. Naquele instante Ulisses experimentava tal situação, evocara a lembrança de seus irmãos. E pra qualquer lugar que olhasse - traído era pelos próprios sentidos - via a cada um deles.

Os meninos não estavam mais na praça. O azul do mundo não estava mais lá. Ainda assim pra Ulisses, tudo permanecia retido em suas pupilas. O calor na calçada refratário, aos poucos se dissipando junto com a tarde. Zelosa a mãe cuidaria pra que o menino não sentasse naquele chão. “- Por que mãe?” “- Porque dá dor de barriga!” Cheiro de café torrado, de invadir narinas, pulmões e mentes. A se embrenhar pelos pomares das cercanias, a misturar-se ao perfume das mangas, limões, frutas do conde, no sertão chamadas de pinhas. Ao sabor duma ou outra suave brisa adoçada pelo cítrico aroma.

“-Rapadura batida!” Ainda pelos becos ecoavam os gritos dos meninos, xingando o redemoinho. E o carrossel de cisco e poeira partia doido no encalço deles. Novamente Ulisses e suas lembranças fazendo-se prostrado, maravilhado. Um gato preto, não conseguindo ficar camuflado, fora visto. E deu-se início um encalço ao pobre bichano. A luta pela vida, contra a morte. Meninos e gatos: dois seres neste mundo de meu Deus que nunca se entenderam. Haveria de ter uma explicação pra desavença entre tais criaturas. Haveria de ser algo do outro mundo. Já os cães, eles os respeitavam. Gatos pretos, rasga-mortalhas, urubus, morcegos, mariposa negra presságio de má sorte. Messias e Lucas, não eram irmãos, mas vivam sempre juntos, tinham a fama de exterminadores de todo e qualquer animal, de igual ou menor porte que eles. Ódio aos gatos, porque comiam passarinhos de gaiolas, o peixe da mãe estendido pra secar, amolavam suas malditas unhas, no forro do sofá, pra marcarem território urinavam nas coisas. Outro dia, no oitão do grupo escolar Messias e Lucas armaram uma arapuca pra urubu e conseguiram pegar um. Todo amarrado o pobre foi arrastado pra dentro da sala de aula, a professora Carmem obrigou-os a soltar. Algazarra. O instinto de defesa fez o bicho regurgitar um líquido nojento, fedido, na sala. Naquele dia não teve mais como continuar a aula.

Maria Vitória, uma moça bonita, educada. Resumir assim, em apenas duas palavras a gazela seria uma desfeita imperdoável.  Bonita sim, de possuir longo cabelo negro, de seda, a moldar-lhe o rosto moreno. Bonita de belos olhos castanhos, amendoados. Encimados por sobrancelhas sinuosas, o ponto chamativo do rosto. A boca de lábios carnudos, a evocar-lhe as origens nativa, aborígene. Orelhas de lóbulos pingentes. O pescoço gracioso, bem implantado, espáduas de deusa titânica. Os braços estendidos ao longo do corpo emolduravam seu busto firme. Os seios duas fontes de vigor, de vida, de pecado. Impossível a qualquer um que olhasse pra eles não pecar. Seu ventre mesmo coberto pelo vestido vaporoso - dava saber - fonte de prazer indizível. A acender, adormecidos desejos, a um varão que pusesse ali sua imaginação. Ao que haveria de encontrar se se aventurasse sob aquele tecido de algodão, se evaporariam os brios. Pelos caminhos alucinantes dos pelos, sobre pele cuidada. Donde emanava do próprio corpo, perfume de fêmea, lancinante. E eriçariam se tocado com a leveza da paixão, a sutileza do desejo, e brotaria volúpia, tão da carne. O cheiro de mulher permanecido sob os pelos do montículo de Vênus. Gruta ardente, esconderijo da flor de Lácio. Intumescência de paixão velada, contida. Graças aos céus, haveria de se ter - o poder, sempre – o controle de pensamentos e atos. Bem velado, no íntimo do ser. Sob as cobertas escuras da mente, no mar da libido navegavam, os escrúpulos do homem navegam. E - em vigor de virilidade – fatalmente naufragariam, se falassem mais alto, os mais secretos e vis extintos. Maria Vitória aquela tão linda menina-moça, era filha de Maria Rita. A benção do tio, um beijo na mão. Um abraço, um afago na cabeça, selado estava o encontro.

Um pedaço de jornal bolando pela calçada esbarrou num pé do banco da praça onde se haviam sentado. A primeira página de “O Globo” trazia uma manchete estampada: “Morre o Ex-Presidente Epitácio Pessoa” O fragmento do periódico carioca, era de uma semana anterior aquela. Dizia que naquele 13 de fevereiro de 1942, por problemas cardíacos agravados viera a falecer no Sítio Nova Betânia em Petropólis - Rio de Janeiro, o estadista Epitácio Pessoa. Daí por diante uma extensa biografia da vida pública do ex-presidente que governara o país de 1919 a 1922. Entre outras obras que realizara: “A construção de 200 açudes no nordeste; criação da Universidade do Rio de Janeiro; a substituição da Libra pelo dólar como padrão monetário brasileiro; inauguração da primeira estação de rádio do Brasil, no dia 07 de setembro de 1922 centenário da independência, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro pela primeira vez ia ao ar.” Dizia ainda que seu governo ficaria marcado para sempre, primeiro porque fora o único presidente até então, eleito estando fora do país, quando ocorrera as eleições se encontrava na Conferência de Versalhes. Teve como opositor nada menos que o jurista Rui Barbosa. Outro fato marcante “A Semana de Arte Moderna” em fevereiro de 22, que teve a participação de nomes como: Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Anita Malfatti.  No verso da página o Carnaval Carioca, foto da Escola de Samba Portela que sagrara-se bicampeã, desfilando no domingo, 15 de fevereiro, na Praça 11, com o enredo “A Vida no Samba” de Alvaiade e Chantim que falava justo de pessoas como Maria Vitória.

“Samba foi uma festa dos índios
Nós o aperfeiçoamos mais
É uma realidade
Quando ele desce do morro
Para viver na cidade”               

Ulisses disse do quanto a sobrinha tinha da mãe. Contou que Maria Rita era tão calada. E que sua mãe - avó de Maria Vitória - temeu que a menina fosse ficar surda-muda pois demorou tanto a falar. Dona Mãezinha a ama de leite, era uma espécie de curandeira. Na falta do médico era buscada para socorrer nos “incômodos” tanto da mulher, quanto de suas crias recentes. Pro caso da demora a falar, aconselhava colocar um pinto em baixo duma bacia, e bater no tampo com algo que fizesse bastante barulho, próximo aos ouvidos da criança. Só assim foi como Ritinha desarnou a falar. Pra andar também nada fácil. E outra benzedura teve que ser feita: com os pés da menina, batiam várias vezes dentro dum pilão, como se fosse à mão daquele. Dona mãezinha recomendaria ainda uns chás, e a mãe da criança tinha que fazer uma penitência pra alcançar a graça. Poderia ser - uma romaria - ir a Juazeiro do padrinho Ciço Romão Batista de pé; durante um ano ir a missas da primeira sexta-feira de cada mês; guardar as sextas-feiras por um ano sem comer carne de criação. Era considerada carne de criação, todo bicho que mamasse, tivesse sido caçado ou pescado, e claro, criado no terreiro de casa.

Certeza de uma coisa Ulisses tinha agora, queria voltar pra casa. A velha casa do sertão, do fogão a lenha,  um abano de palha de coqueiro, o pote d’água fria num canto da cozinha. A camarinha no quarto forrada com uma colcha de retalhos. Na sala, o retrato a lápis, o pai de paletó e gravata, que jamais tivera na vida. Com os irmãos, correr de pés descalço pelo terreiro. Zelosa a mãe ordenaria que desemborcassem as chinelas. Porque filho que deixava calçados emborcados, xingava os pais, além de agourar pra morte cedo. Cheiro de café torrado, de invadir narinas, pulmões, cheiro que jamais mente. A se dissipar pelo pomar das cercas minhas, a misturar-se ao perfumo, doce caldo das mangas, limões. Frutas do conde, no sertão é chamada de pinha.

Fabio Campos 19 de Janeiro de 2015


Sedução (Party 2)

Aproximava um magnífico crepúsculo. O verão ditava suas ordens. A igrejinha, de muito grado, aceitou um último afago do sol. A coruja cruzando o céu emprestou-lhe um capucho de branco. Com seu grito de aguçar sentidos rasgou o ar dum canto a outro. Estilhaçado, semi entorpecido por alguns segundo, assim ficou o guache negro. Por um instante, muito acima de todas as cabeças, o céu experimentou o desmantelo. Cabeças de pensar, se punham a volver coisas do passado. Quão longe estavam os pensamentos, e o passado. Muito longe estavam.

Eram duras as ordens ditadas pelo verão. De rude beleza, ia revestindo o sertão, sua casa. As montanhas tal qual imensas senhoras gordas, desnudas, adormecidas. Tendo o colo alvibranco dos lagedos, o ventre de catingueira, e os pelos pubianos, verdejado de umbuzeiros e juazeiros. Deitadas languidamente em seus divãs posavam a um excêntrico artista, louco, incansável, senhor tempo. Tempo de velame e macambira, sedutores nubentes se amando. Pequenos lábios em flor se despetalando, hastes dilacerantes, desvirginando. O vento uivando, lascivamente a lamber as asas das poríferas mariposas, aturdidas de paixão. Não indo claro, além da aflição das almas. E se tudo nunca fora tão claro como parecia, por conta disso, algumas coisas eram dignas de existirem. O obséquio de ser no mundo - as coisas e os seres todos – com sofreguidão de existir e viver, viviam. O esforço desprendido pelos viventes para se manterem vivos, isso era uma das coisas dignas. E ia tudo se tornando tão obscuro, mas somente superficialmente. As nuvens que alaranjaram o alvorecer, já não eram as mesmas que avermelhavam o sol poente.

Felizmente a paz ainda era o que se almejava. Gafanhotos, grilos, aranhas, mosquitos, vaga-lumes e sapos. Nanos-habitantes suburbanos da sub-urbe. Civilização das quinas e esquinas, dos cantos de parede. Indo suas preocupações de cada dia. A dispensarem cuidados: será que vingariam o dia que ainda viria? Ora, seus futuros, só a Deus pertenciam. Não tinha como não lembrar de Mateus (6,24-33) “Por isso vos digo: Não vos inquieteis quanto à vossa vida, com o que haveis de comer ou beber, nem quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Porventura não é a vida mais que o alimento, e o corpo mais que o vestido? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas? Qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado a duração de sua vida? Porque vos preocupais com o vestuário? Olhai os lírios do campo; mão trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão em toda sua magnificência, se vestiu como qualquer deles. O vosso Pai celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso. Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo.”   

Meninos brincavam no Largo. Ulisses lembrou de outros tempos. Coberto de barro vermelho, o largo nem sonhava com calçamento. Os fundilhos das calças ganhavam manchas avermelhadas. Lamparinas - a esguias estacas de madeira - faziam vezes de postes. Espaçados, abrigavam chumaços de estopa embebidos em gás óleo. Pipas coloridas lá em cima - cuidavam de enfeitar com outras cores, negra paisagem celestial - a se enroscarem aos próprios fios, os únicos existentes. As meninas com seus vestidos coloridos de mangas bufantes, de muitas anáguas. Tiaras e tranças, nos cabelos bem cuidados, sentadas nos bancos, sacudiam os pés de sapatinhos. Ostentavam bonecas de porcelana ricamente ornadas, tão assemelhadas a miniaturas de si. Um dos moleques que os colegas chamavam de Elias, em troca de bolas de gude, revistas e figurinhas, descia plantando bananeira, os degraus da igreja. Batista tinha os dois incisivos da frente escuros, careados. Usava o cabelo lambido no cocuruto - muito provável aquilo fosse brilhantina - vã tentativa de assentar a carapinha. Um cinto fino, gasto, sustinha suas calças folgadas, sapatos velhos nos pés. Batista sonhava um dia tornar-se artista de circo, malabarista ou quem sabe mágico. Manoel Filho o mais alto de todos, assim como a maioria deles, era menino do mato que viera pra cidade. Negro de lábios carnudos, os incisivos separados, olhos de grandes pupilas e as pálpebras caídas davam-lhe a impressão de estar sempre grogue, sonolento. Tinha orgulho de dizer que sabia carrear, aos seis anos conduzira o primeiro carro de boi. Como nenhum daqueles sabia das coisas do campo. E tinha ainda “Berruguinha” que por mais que Ulisses se esforçasse, não deu pra lembrar o verdadeiro nome do danado. Sua fisionomia, no entanto, vinha nítida, por completa, inclusive com a verruga no queixo que atribuíra o apelido, a muito custo aceito. Só os mais velhos podiam apelidar. “Berruguinha” era menino arteiro, cabra bom na arte de aprontar presepadas. Ele e Ciço de Tereza, daria uma parelha boa de cães, capazes de botar o diabo a correr do inferno.

Lembrou-se dum dia que iam pelo caminho do sítio - na volta da escola - danaram-se a correr. Começaram uma brincadeira do “pega”. Adentraram uma vereda. Ulisses que ia a dianteira não viu um colchete fechado - acabou se jogando contra os arames - cortou o rosto em três cantos. Ganhou uma cicatriz atrás da orelha. E quando estava muito pensativo - como agora -  ficava passando o polegar com força a sentir o sulco. Lembrou-se da tia Iracema que quando era pequena também ganhou um latanho bem grande na barriga, porque teve que passar as pressas por baixo dum arame. No caso dela porem, teria sido quando seus avós fugiam de Lampião, isso foi lá pelos idos de 36, assim contavam os tios mais velhos. O pai de Manoel Filho,o negro Quincas era mascate, no meio da feira vendia pião de goiabeira, ponteira, faca peixeira, patuá, pedra-ume, cartucheira, apito de imitar “Fogo-apagô”. Aconselhava ter muito cuidado quando entrasse no mato. Cuidado com a sucuri quando fossem tomar banho no açude. Dizia: “-Elas costumam ficar pastorando e atacam justo na hora que sua caça vai beber água!... Uma vez uma Corre-Campo duma carreira que me deu, veio botar eu bem aqui no terreiro de casa!” A cobra Cipó facilmente é confundida com um galho, por isso, ao entrar na mata fechada, cuidado dobrado onde por a mão. Ciço jurava de mãos juntas que um dia viu um calango virando cobra. “-O bicho foi se esticando, esticando, daí caiu as mãozinhas, depois os pés, e pronto!”  Negro Messias aproveitou o embalo pra contar que outro dia quando estava caçando rolinha, viu perto da beira do barreiro de Seu Manoel, “-Uma cobra cascavel que veio bem devagarinho, chegou assim numa moita,  lançou o veneno numa folha e foi tomar água. Depois voltou e engoliu o veneno novamente.”

Negro Rosalvo tinha - assim como a maioria daqueles - na cara e no jeito, fortes evidências da descendência africana. Toda segunda-feira tinha a obrigação, de levar uma boiada do seu patrão, pro sítio Pai Mané, o gado ficava pastando por lá, até a quarta-feira quando era levado pra vender na feira. Quando chegava as margens do imenso açude, iam tomar água. Teve uma vez que uma jibóia enorme atacou um garrote. Rosalvo no seu instinto bravio, e de coragem, salvou o filhote de boi, matando a danada com uma faca. Tirou o couro, e da carne fez churrasco. Nesse dia a cachaça dos boiadeiros além do jabá teve mais um tira-gosto diferenciado. Uma cruz feita com dois pedaços de catingueira, na beira da estrada rodeada de pedras, assinalava o local onde o corpo do nosso amigo - vitimado por mãos assassinas - tombaria sem vida. Era uma quase noite quando ele vinha com o gado. Chovia uma dessas chuvas que encharcavam até os ossos, enquanto ribombavam trovões, chicoteavam relâmpagos. Era um gado pouco, mas eram cabeças selecionadas, os que vieram com ele naquele dia eram maus feitores, ladrões. Ainda encima do cavalo mesmo recebeu o tiro que varou-lhe o peito caiu na lama. E o mundo que já estava escuro foi ficando ainda mais treva. A última coisa que levou foi o cheiro bom de esterco nas ventas, a quentura do seu próprio sangue aquecendo suas mãos, e o mugido do gado assustado com o disparo, que foi ficando longe. Cada vez mais longe.    
    
A moça continuava se aproximando. Ulisses fez com que seu olhar subisse pelas suas pernas, enquanto vinha caminhando. E subiu pelo ventre, pelo colo. Por fim chegou suas vistas ao rosto. Fixou os seus olhos nos olhos dela. Não era possível! Aquela que vinha bem ali em sua direção era sua irmã, Ritinha! Santa Luzia alumiadora dos olhos era testemunha do que o que ele via era verdade! Valei-me meu Deuzinho do céu! E as meninas dos olhos de Ulisses - tristes meninas – emprestaram-lhe ao rosto um arroio de lágrimas. Porque era tempo de chorar.

Fabio Campos 12 de Janeiro de 2015

Aquela não era irmã de Ulisses, porem ele não sabia... (Continua na próxima semana)     


Sedução (Party One)

Um dia, pouco interessava qual, vinha vindo. Um homem, tampouco se sabia quem era, vinha vindo.  Um outro - que não precisava mais vir pois já estava - contava de dias que vinham vindo, de homens, de céus bem afeiçoados, ou mal promissores que sempre vinham vindo. O que vinha, parou na esquina. E ficou bem assim. Ficar bem assim - era estar-se de pé, estático - assuntando as coisas. Por um bom tempo ficou esquinando. Isso mesmo. Esquinar era - ficar afrontando o que se tinha pra desfazer, ou dependendo do caso - refazer. Àquele, não se sabia se tinha  ciência que se encontrava perante uma das quatro (es)quinas do mundo. Assim estava o homem. 

Era muito provável que o outro se dispusesse a descrever o que via. Talvez não tivesse muito que contar. Por aquela ser uma cena tão comum, corriqueira, atemporal. Um lugar qualquer no mundo. Muita gente passando. Pra lá e pra cá passando. Cada uma carregando - como bem podia e entendia - aos seus fardos-destinos. E ia um que levava às costas, um porco abatido já desviscerado. A marcha de calça coronha, e canos de botas sanguineos. Orelhas a balançar pingantes - alegremente a caminho do mercado - olhos fechados, suinamente sorrindo. Um negro com um caçuá na cabeça – ia, sem nada dizer - falava de cachos de banana da terra. Nanica, e prata somente na semana que viria, diria se alguém perguntasse.   O balaio-fubá com seus dedinhos morenos, finos, entrançados, abraçava um saco branquinho como as vestes de Jesus na transfiguração! Num misto de melancólico e curioso o balaio olhou pro caçuá. Nos bolsos da calça de ir pro cassino do homem branco, carteira, dinheiro, documentos. A algibeira-relógio de almofadinha azul-marinho no forro interno da tampa.  Numa carroça puxada por uma burra, seis ancoretas enjoadas iam, e de tantos solavancos, vomitavam água do sobejo. O promotor público com seu bigodinho fino. Os picinês no rosto recém-escanhoado - desfilava na rua do comércio - dentro do seu carrinho feio, que mais parecia uma baratinha! Não era feio não, era a inveja que era muita! E iam, e vinham, tantos destinos. Doidamente, milagrosamente, numa alucinada sincronia. Corpos a tirarem fino, uns nos outros.  Enquanto as almas não tendo a mesma sorte esbarravam-se.  Inexplicavelmente aquele homem resolvera parar. Era isso que intrigava. Por que parara? A ficar sem mais nem menos, margeava a vida? O livro, não dava pra ver. No entanto ele estava lá, com certeza, estaria guardado em uma de suas bagagens. Porque trazia mais do que necessário. Uma inquietude mal disfarçada a dizer que se quisesse consultar o livro, ali não se sentia muito à vontade pra isso.

 E aquele que observava, achou por bem - e propiciava a hora - descrever o sujeito. Gostava de começar pelo figurino, porque achava que toda indumentária tinha poder impactante. E que era o cartão de apresentação de qualquer um. Achava que até um mendigo - como tal - devia vestir-se condignamente. Porque pra ele, era bastante dizer o que vestia, pra dizer quem era. Vestia um paletó azul - pobremente desmaiado - escuro. Uma calça de tecido também muito gasta. A ponto do entorno dos bolsos a negar o blue marinho que um dia tivera. Tinha umas coisas ali que não combinava – porque nesse mundo de meu Deus tem coisas que não fazem o menor sentido – o chapéu de salgueiro, lixada a esmero. Com faixa negra na base da copa, clamava uma cor neutra, mas o sol não colaborava.  Entre os lábios e os dedos da mão direita um cachimbo, feito de álamo cru. A piteira metálica reluzia ao sol das dez, dando a impressão que o homem tinha dentes de ouro. Um par de sofredores nos pés. Três ou quatro volumes de bagagem jaziam no chão. Faltando pouco pra se apoiarem no poste. O chapéu, pendido pro lado, e o sol continuava não colaborando. Os traços marcantes, os fios de cabelo branco, as linhas da idade, tudo sequestrado pela luz. A impressão que dava era que Getúlio Vargas resolvera sair do Palácio do Catete indo bater na praia de Copabacana - em plena segunda-feira pela manhã - surpreendendo até os periquitos que arribavam araucárias, ananás e palmeiras - trazidas de além-mar por D. Pedro II para enfeitar - a Avenida Atlântica.

E o livro? Se era que o tal livro realmente existisse - o que já não duvidamos - descobrimos onde o escondia. Estaria dentro daquele bolso que fica na tampa da mala pelo lado de dentro. Muito parecido com um embornal de caçar rolinha e preá no sertão do Cariri. Donde aquele miserável nunca,  jamais deveria ter saído.  Dentro da mala de couro quadrada, dotada de cinto de couro cru, com quatro cantoneiras de lata nos quatro cantos. Na bolsa de pano da tampa pelo lado de dentro se encontrava o tal livro de capa vermelha. A capa trazia a suástica nazista dentro de um círculo preto. Em letras sóbrias – na parte de cima - talvez dissesse “Mein Kampf”. Por causa desse maldito livro há mais de vinte anos passados, ainda estudante fora preso e torturado. Seus pais e irmãos jamais entenderam o que significava a palavra comunista com que alguns vagabundos – na calada duma madrugada de sábado - picharam no oitão da casinha de taipa. Pra eles tudo aquilo só podia ser uma espécie de doença muito séria, um castigo de Deus por ter rezado pouco. Naquela redondeza, só eles foram agraciados com aquele atraso de vida. Quando iam pra feira, os homens da cidade olhavam-nos com desprezo.

Jamais esqueceriam no dia que o jipe da polícia chegou ao terreiro da sua humilde casinha. A tapera de taipa no Sítio Mocó dos Vieiras nunca tinha visto um carro na vida. O comandante e uma guarnição de cinco homens Com seus enormes fuzis dotados de baionetas espetavam o céu.  Seis pra dar voz de prisão a um frangote – que nem gala tinha direito – um menino, um matuto da roça. A vistosa farda de lona camuflada e o chapéu de cuia “brilhou no céu da Pátria neste instante” E fez raiar o sol da desliberdade. Mesmo não demonstrando a menor reação, despiram o rapaz da cintura pra cima. Amarrado de corda foi arrastado pelo terreiro no entorno da tapera, as vistas de pais e irmãos humilhado. Socos e pontapés e deitou sangue subversivo, um nariz dissidente maculando o terreiro que sua mãe todo dia varria. Sua cabeça foi raspada, seu cabelo foi juntar-se ao cabelo de milho no alpendre, no aceiro da roça. Levaram-no para o manicômio judicial. Lá as torturas se intensificaram, choques elétricos, medicamentos psicotrópicos, alucinações e o diagnóstico: esquizofrenia. Vinte e tantos anos anos ficaram pra traz, as lembranças não. 

O livro que Ulisses guardava a sete chaves desde menino, ganhara de tio Afonso. E o escondia de todos porque era um livro proibido. O padre Bento mesmo, num de seus sermões, teria excomungado e tornado herege todo aquele que o lesse. O livro falava de muitas coisas que os homens do seu tempo negavam. De que inicialmente o que hoje cogitamos chamar de mundo se dava o nome de Caos. “E havia uma densa escuridão e um imenso vazio sem começo nem fim. Dali surgiu  Gaia, a Terra, que deu a luz Urano. E Gaia e Urano se amaram, e desse coito incestuoso nasceram os titãs: seis homens e seis mulheres. Sendo Cronos e Reia os mais taludos dentre eles. Urano sabendo do poder e da astúcia de seus filhos, com medo que os derrotasse não permitiu que saíssem do interior de Gaia. Pensando que assim se manteriam obedientes ao pai.  Com a ajuda da mãe, com uma foice, Cronos cortou as genitais do pai e lançou-os ao mar, o esperma que caiu produziu Afrodite, o sangue da ferida gerou Ninfas. Após libertar seus irmãos Cronos seduziu e desposou Reia sua irmã. Com ela procriou os deuses do Olimpo entre eles Hera, Poseidon e Zeus mais conhecido por Júpiter. Através de artimanhas Zeus conseguiu tornar-se rei dos titãs do Olimpo, de lá governava, os céus e as tempestades.”

O mundo agora mesmo, não sabia mais o que fazer com Ulisses. Depois de vinte anos, um universo inteiro de gente que vivera com ele já morrera. Pais, avós, tios, irmãos talvez, se houvesse ainda algum, não o reconheceria, do jeito como se encontrava não o reconheceria mais. Além do que tantos males causara a família, melhor seria não voltar a vê-los. E as asas de Cronos puseram sobre ele sua sombra. E voando nelas foi até a casinha do sítio Mocó. Sua mãe na cozinha, a ficar de cócoras pra lavar as louças, numa bacia. O tecido da saia ajuntava todo no meio das pernas, os joelhos iam aos seios, murchos. Um lenço na cabeça escondia sua imensa cabeleira raiada de fios brancos. Pucumãs mantidas nos caibros negros de fumo, pro caso duma ferida braba a estancar o sangue. O pedaço de couro de veado preso a cumieira era pra mordida de cobras. O galho de arruda num jarro pra afastar mal olhado. Mas quem nesse mundo de meu Deus, iria lançar olho gordo pra tanta miséria em cima da terra! Uma tapera caindo aos pedaços, galinhas, bacurinhos, uma velha mula, a vaquinha Princesa, a cachorra Cruvina. A lavoura na roça, um açude quase seco.  Era o rico patrimônio dos Vieiras, que Ulisses tanto gostaria de reencontrar.

Como gostaria de estar lá novamente. Ah! Se tivesse o poder de Cronos. Enquanto pensava nisso, Ulisses viu uma moça atravessando a rua. E vinha em sua direção. Stephanie de Mônaco, bela deusa grega em plena manhã. Por um instante na terra do condor, de um olho o brilho, um raio (incan)indecente. Sedução.


Fabio Campos  06 de Janeiro de 2015