
Outra montanha, muitos, muito
pensar distante daquela. No meio da planície um orfanato. Construção rústica no
meio do deserto. O que aquele orfanato foi fazer naquele fim de mundo? Por que
não se dava pra ouvir o barulho das crianças? Onde fora parar a algazarra? Uma
mulher de meia idade apareceu à porta, trazia um copo na mão. Havia água
naquele copo. Água límpida, cristalina das mais desejadas pelo que tem sede. Dois
braços abraçavam um corpo magro. A menina pretinha com o cabelo cheio de
pequenos cachos, presos por fitas coloridas. Por que estava ali? De nada sabia,
que outros, que jamais conhecera, tinham pensando um destino pra ela. Nada
entendia do que acontecia. Entender era o que menos importava. Ter que ficar, redimensionar
sofrimentos. Jamais imaginou outro mundo que não fosse o que sempre vivera.
Brincar com os irmãos no cair da tarde. Depois de um dia corrido. Cheio de panelas pra lavar, e água no poço pra ir
buscar, depois de varrido o terreiro de
casa. Calunga de pano pra brincar no cairzinho da tarde. O que estava pra vir,
fosse o que fosse, seria novo. Encararia qualquer realidade nascera pronta pra
isso. Desde que não houvesse alguém igual o pai no caminho. E tudo já estaria
valendo a pena. Não queria que lhe batesse e que agredisse tanto, várias vezes,
muitas vezes durante o dia, tão desnecessariamente. Pensou nos outros irmãos,
como estariam.
Se dependesse dela, ninguém
jamais ficaria sabendo o que acontecera. Mas era tão forte que vinha. E vinha
em forma de relampejos. Os batentes sujo de sangue. O facão ensanguentado na
mão reluzindo. Os gritos, abafados pelo trovão. Os raios clareando os pingos
que lavavam o rosto. A chuva aumentando, o terraço inundado. O corpo inerte do
seu irmão sendo arrastado pelos braços, os calcanhares, as pernas cavando um
sulco, fazendo um rastro de lama que seria apagado pela água da chuva. Lá no
canto da cerca havia uma espécie de tablado que a mãe usava como batedor de
roupas. O corpo franzino do menino foi arrastado até lá. Estendido sobre o
lastro, os braços pendidos, as mãos balançando. O facão erguido furando o bucho
da noite. O braço longo, longamente musculoso, negro. Donde estava só conseguia
ver as costas do pai. As costas molhada desnuda, a pele escura luzidia. Um tiro
ecoou. O projétil fez um furo próximo à pá das costas. Saiu no peito aspergindo
sangue na relva. Viu tudo, pasmada viu quando o pai tombou sobre as próprias
pernas, ficou de joelhos, pra depois despencar de bruços. O golpe mortal da folha de aço que
seria pro menino só feriu o ar. A mãe na soleira da porta segurando a
espingarda, o cano ainda fumegante. Só a coragem de mãe pra por fim ao pesadelo
de uma noite macabra.
A foto da garota sorridente era
foto de formatura. O traje negro entusiasmava ainda mais, à foto preto e
branco. O capelo dando ar de superioridade. Os melhores anos da sua vida
passara ali. Dentro da universidade. Se pudesse viveria tudo de novo. As
colegas sabiam de sua história da infância sofrida. O cordão preto da beca cruzava
o colo, e terminava num botão também preto preso a uma franja negra. Acariciar
com os dedos aquele cordão a fez voltar no tempo. Lembrou de um novelo de
cordão que o pai tinha guardado dentro de sua cesta de tralhas. Tinha o maior
ciúme dele. Não tolerava que ela e seus irmãos brincassem com ele. O barbante
de algodão era usado pra muitas coisas. Para construir o aprisco. O cordão
serviu pra marcar o alinhamento do estaqueamento. Também serviria de
prumo, e pra medição. O cordão, segundo seu pai, era uma espécie de
amuleto que só devia ser usado pra algo muito significativo. Inaceitável que
fosse alvo de futilidades. E pro pai empinar pipa era algo muito inútil. Achava
até que trazia maus agouros pra aldeia. O irmão transgredira sua regra e pagaria com a vida tamanha desobediência. Primeiro levou uma surra de cordas na
frente dos demais irmãos. Aquela corda tinta do sangue meu e de meus irmãos,
ficava pendurada na comieira da casa como um troféu. Éramos obrigados a assistir
perfilados a barbarie. O pai descarregava toda sua ira covarde em pobres
indefesos. Dizia que era para que servisse de exemplo. Foram tantas as pancadas
que o menino acabou desmaiando. Como gostaria de ter o poder de apagar da mente
aquelas lembranças. Esquecer todas as coisas ruins da infância, Mas elas sempre
vinham. E uma das piores recordações, chegou junto com uma lágrima. Num vão
único do piso de barro batido da casa, forrado com esteiras de palha, dormiam
ela a mãe e os sete irmãos. Sendo ao todo quatro meninas e três meninos. Numa
determinada madrugada acordou sendo bolinada pelo pai. Uma de suas mãos tapava-lhe
a boca pra que não gritasse, e explorou seu sexo. Naquela noite foi brutalmente
penetrada. A mãe nunca soubera disso. A depender dela jamais saberia. Sabia
que se contasse correria o risco de morrer. Isso ele havia lhe prometido.
Como uma espécie de prêmio de
consolação, do pai ganhou um cordão vermelho, de muitas voltas, enfeitado com
miçangas nas pontas e tinha um pequeno búzio preso. O pai lhe deu, pendurando
ele mesmo ao pescoço, e era uma menina de dez anos apenas. Deu-lhe dizendo que era pra
mantê-lo sempre. E que por nada devia o perder. Só depois disso percebeu que
cada uma de suas irmãs também tinham cordões pendurados no pescoço, e que eram
de cores diferente. Da irmã mais velha era verde, as demais eram amarelo e
azul. Numa determinada noite acordou e fingiu que permanecia dormindo. De
olhos serrados conseguiu ver o pai abusar da irmã mais velha. E foi assim nas
outras noites. Descobriu que para cada cor de cordão, ele abusava de uma irmã,
num determinado dia da semana.
Naquela noite na América sonhou
um sonho atribulado. As lembranças acabariam influindo nos sonhos. E viu um
homem negro que usava um cavanhaque igualmente negro. Ele entrou na aldeia de sua infância, e
portava um belo rifle. Suas roupas tinham, a camisa e a bermuda, partes feita
de couro de leopardo. A copa do chapéu era circundada por uma tira de couro de
urso. No colar que trazia pendurado no peito havia dentes e pequenos ossos de
animais, de várias espécies, e não duvidasse que dentre aqueles houvesse ossos
humano. O homem não entrou na casa. Preferiu sentar-se num canto estratégico
donde pudesse ver a entrada da aldeia. Talvez temesse ser surpreendido. Temia
os muitos inimigos que tinha. E conversou muito com o pai. E fumaram cachimbos,
abastecidos de ervas aromáticas. E davam aos pequenos para tragarem, e riam ao
vê-los caírem grogues no chão batido da aldeia. O pai negociou com o homem
ervas, e a moeda de troca era permitir ao estrangeiro fazer sexo com a mãe. Como podia ceder a própria mulher pra
deitar-se com outro homem, em troca de plantas alucinógenas?
O homem quis saber se a água do
poço da aldeia era de boa qualidade. O pai diria que não, mas diria que havia outro dentro da mata cuja água era pura, cristalina, saborosa. O estrangeiro
quis conhecer. Uma mulher com cara de irlandesa, na verdade uma negra albina, passava
o dia na borda do poço. Todos acreditavam que quem nascia com a pele clara na aldeia possuía
o dom de afastar demônios. Por isso elas protegiam os mananciais d’água. Em troca de
algum alimento emprestava baldes de ferro, carcomidos nas bordas pela ferrugem
e cordas velhas, aos que quisessem tirar água. O estrangeiro por um pouco de farinha alugou
aqueles apetrechos e com o pai adentrou a mata. O poço era profundo da
borda em diante breu. Jogando uma pedra dava pra ouvir o eco do espelho
d’água sendo importunado. O pai tinha um plano macabro. Assim que o estrangeiro
debruçou-se pra ver se conseguia ver o fundo, foi empurrado. Seu corpo
despencou dentro do poço sucumbindo num grito apavorante. O pai sorriu um
riso diabólico, e tomou posse do objeto de sua cobiça, o rifle do estrangeiro.
O pai foi enterrado num lugar
perto do aprisco. Talvez fosse ali mesmo que quisesse um dia ser enterrado.
Onde tantas vezes amanhecera embriagado. Ouviria sempre o chocalho das cabras a cada manhã. Sua cova foi circundada com uma corda vermelha sanguínea. Sangue do
seu sangue, por ele próprio derramado. Dois gravetos, tomaram a forma de cruz. Unidos transversalmente por um longo cordão de algodão, a não sobrar um pedaço
que fosse. Sobreposta linha sobre linha, tantas vezes a formar como se um
coração. Findado num nó de ódio e desgosto.
Fabio Campos 19 de Agosto de 2016.
*P.S. A Gravura que ilustra este Conto, é uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, que está na Igreja da Mesma, em Paulo Afonso - Bahia.
*P.S. A Gravura que ilustra este Conto, é uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, que está na Igreja da Mesma, em Paulo Afonso - Bahia.
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