
O homem parou, não parecia nenhum
pouco cansado. Talvez precisasse refletir. Sentou-se ao meio-fio. Pouco se importando
com o que os outros pensavam, a seu respeito. A calça escura, os sapatos pretos, o blusão também
de couro. Fumante, tudo nele cheirava a
nicotina. As unhas, os dedos, os cabelos, as narinas, e mesmo a respiração.
Tirou um frasco de dentro de um bolso interno do blusão, parecia de perfume.
Era uísque. Sorveu um trago. Acendeu um cigarro, não sem antes praticar o quase
involuntário gesto de bater com a ponta na caixa de fósforos. A fumaça azulada
desprendida lhe envolveu como numa aura mágica, soberana. Os olhos vermelhos a
dizerem que a noite passada ocorrera em claro. Precisava fazer a barba. Tomar
um bom banho, uma ducha quente, revigorante. Enxugar-se com uma toalha felpuda,
cheirando a coisa limpa. Precisava repetir todo um ritual de banheiro. Achava
que aquilo ajudaria a devolver-lhe, ainda que ilusória, a sensação de paz. E de
rearranjo do caos que se instalara dentro de si. E que parecia não haver prazo
pra acabar. Pelo menos hora e meia ficaria sentado na privada, sem vontade de
fazer nada, nenhuma necessidade fisiológica. Simplesmente porque gostava de
perder tempo sentado ali, evacuando pensamentos. Vasculharia os bolsos da
calça, encontraria um folder, desses que se nos são entregues nas portas das
lojas de eletrodomésticos. Passando a vista por cima, sem se ligar no preço das
ofertas, pois era o que menos interessava. Admiraria o trabalho. As cores, a
arte gráfica. Quantos profissionais teriam se envolvido naquele trabalho?
Lembrou de Lucas um amigo de
infância e pré-adolescência. O que estariam fazendo naquele momento? Talvez não
mais vivesse, nem nunca mais se veriam. Também Zé Maria. E Samuel? Outros amigos
de infância, e de início de juventude dos quais lembrava agora. E Rosinaldo? E
Heleno? Onde andaria Tereza sua primeira paixão da terceira série? Jamais seria
sua namoradinha. Observava-os como numa espécie de túnel do tempo. Revia-os como
em vídeos e fotos que nunca, jamais tivera feito, mas que estavam lá.
Perpetuados dentro de sua mente. Quantos dos seus amigos de infância se havia
tornado militar? Ainda outros Lucas, outros Samuéis no mar da vida cruzariam
seu caminho. Cada um porém com suas particularidades, muito diferente uns dos
outros. Alguns poucos como ele se tornara artista, cantor, e intérprete. Soube
até de um que virou escritor. Considerado, por parte de alguns familiares, bichos
estranhos. E eram mesmo, mudavam de humor com a inconstância dos
ventos. De muitas vezes não aceitarem nem a si mesmo.
Nunca entendera de quando estivera
casado com Marlene, todas as vezes que estava a pia, lavando as louças da janta
as mesmas lembranças vinham. Sempre das mesmas pessoas. O amigo Fausto, um
policial, uma amizade tardia, da fase adulta, com que havia se encontrado
muitos anos depois. Encontrou-o casado com Viviane, ou talvez se chamasse
Mirian sua esposa? Lembrava sempre da queda de bicicleta que Fausto levou e
quebrou um dos incisivos. E desde então seu sorriso foi outro. Ficou com cara
de menino levado. Os cabelos e os olhos espichados como de oriental. No
flagrante das suas lembranças ele estava sempre sorrindo e mostrava os dentes
desarrumados.
Naquele instante se perguntou. Se
alguém já não teria se dado ao trabalho de querer saber que imagem os amigos do
passado teriam guardado de si mesmo? Einstein, o grande físico. Será que teria
gostado da quão excêntrica e irreverente imagem, estirando a língua pra
humanidade, com a qual ficaria eternizado? Lampião, o rei do cangaço, apesar de
não ser tão culto quanto o cientista austríaco. Preocupou-se em deixar pra
posteridade uma imagem bem mais sóbria. Contratando inclusive um fotógrafo para
tal finalidade. O que esperava que lembrassem dele pelo jeito irreverente,
boêmio, amante da paz? Não fosse aquele o momento certo pra se fazer uma
retrospectiva da própria vida. Ao menos achou por bem fazer uma auto
avaliação. Se dando conta àquela altura
da vida, que não era mais o rapaz que tanto insistia em permanecer dentro dele.
Ainda compunha belas músicas. Tinha que admitir o corpo, no entanto, já não era o
mesmo. A cabeça funcionava a mil. O cabelo, a barba tornado grisalhos. A visão
já não correspondia como antes. A frequência com que fazia sexo a cada ano silenciosamente
diminuindo. Os problemas de saúde pouco a pouco aparecendo. Quase que por
necessidade leu artigos sobre a próstata, a diabetes, a pressão arterial. Nesse
ínterim os shows foram escasseando, a fama de outrora assustadoramente se
esvaindo. Antes que a depressão com seu ataque mortal se instalasse, como um
golpe de mestre investiu além do álcool. Passou a usar anfetaminas, uma droga
leve. Até certo ponto aceitável, fazia parte. Afinal tão comum no meio
artístico. Servia de estímulo, até mesmo pra manter a euforia que o glamour do
palco exigia.
Sentia muita saudade de alguns
anos tão legais do passado. Tão intensamente vividos, e que agora não passavam
de cinzas como aquelas do cigarro apagado na sarjeta. A velha calça jeans,
desbotada. O orgulho de viver num país tropical, de ter tido um fusca e um
violão. Sol e praia o ano inteiro. Do desapego a bens materiais. Achava bacana a
filosofia de vida: “Viva a paz e o amor e deixe viver”; “Faça Amor não faça Guerra”; “Go do Back to
Bahia”; Art Pop; Woodstock; tatuagem do símbolo hippie no delta, surfar em
Saquarema, curtir Búzios ao menos uma vez por ano. Como doía ver que de tudo
isso, sobrara somente as ruas? Voltar pra clínica de recuperação jamais... Preferia
a morte. Não se achava uma pessoa ruim, não se considerava do mal. Os filhos
não o entendiam. As ex-mulheres também não, o deixaram. Se sentia só,
injustiçadamente só. Sempre se achou um cara do bem, amante da paz, da
natureza, do amor livre.
Sem saber direito porque veio a
lembrança de Jeremias “O Bom”, personagem do chargista Ziraldo que ilustrava a
sessão de humor da Revista “O Cruzeiro”. Isso na década de setenta! Num misto
entre perplexo e feliz dos seus lábios saltou uma quase resignada constatação: “Poxa!
Como estou ficando velho. Afinal sou do tempo do Pasquim!” Das charges de
Jaguar, Ziraldo, Fausto Wolff, Henfil com sua “graúna” o “Fradim” Paulo Francis
e seus textos satirizando o governo do regime militar no poder, Millôr Fernandes. Tropicalismo, “Garota
de Ipanema”. Viu nascer o regime
militar, crescer e tomar conta do país, mas também veria cair.
Só agora entendia por que
Jeremias era chamado de “O Bom” Mas pra onde tinha ido aquele jovem idealista? Aquele que por tanto tempo morou dentro dele? Aquele que um dia foi pras ruas, enfrentou tropas de choque, jato
de gás lacrimogênio nos olhos, quase ficou surdo com as bombas de efeito moral.
Levantou a bandeira da Une na porta da universidade. Considerado que era um
subversivo. Porradas de cassetete de polícia da cavalaria. Cabelo grande, bolsa
tiracolo cheia de panfletos contra o governo, a fugir pelas avenidas e becos escuros. Pra ser
considerado subversivo naquela época bastava ser leitor do “Pasquim”. Logo era
chamado de maconheiro, vagabundo, visto com maus olhos. E ser vinte quatro
horas por dia investigado pela polícia. Quais filmes via, peças de teatro
que assistia e livros que lia? E pronto seria preso. Ter os dedos todos borrados,
deitar digitais nas fichas de prontuário do Deic. A famosa foto 3x4 de lado, frontal
segurando a plaquinha preta com a data da prisão.
Num cartão amarelado guardado em armário
de ferro, de enormes gavetões que deslizavam sobre trilhos. Quando eram
fechados emitiam o som característico como grades se fechando. Um breve texto
escrito à esferográfica descrevia o perfil, as tendências aos crimes e os
delitos em que o prisioneiro se enquadrara. De certo uma frase mais estaria faltando naquele
prontuário: “Este deliquente matou um homem: Ele mesmo. Daqui a uns 40 anos
pelo menos.”
*P. S. A Gravura que ilustra este Conto é de NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO e se encontra na belíssima capela de São Francisco de Assis em Paulo Afonso- Bahia, construída em meados de 1965 pela C.H.E.S.F.
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