BONNIE




Era uma vez uma estrada. Estrada de barro. Estrada, marcada, e margeada dos dois lados, por cercas de arame farpado. Estradona bonita, boa de matuto passar. Passar montado a cavalo a ir à feira. De passar de jegue, com destino ao povoado, ou à casa de um dos compadres. Um casal de noivos montado numa carroça de burra, indo pra igreja, casar. Estrada boa também de passar a pé. Olhando os carneirinhos de nuvem branquinha, admirando o azulão do céu, As alpercatas fazendo chat-chat no calango de areia. Estrada de passar carro de boi cantando bonito, cantiga de cocão, de canga e canzil. De parelha de bois grandões, até de fazer sombra, de tão grandes. Lá iam os bois, no chão as sombronas, imitando os gestos dos bichos. O chão vermelhão da estrada. E o carreiro com sua vara com um ferrão na ponta. Os pés descalços, o facão pendido dum lado. 



Dona boninha era uma senhora velha. Dessas que quando ia pra roça amarram um lenço na cabeça. Uma vez em casa fazia com uma trança e um cocó no alto da cabeça que mais parecia uma rodilha. Acendia um cachimbo de madeira, pintado de preto, com dois anéis prateados, um na ponta do braseiro e outro no bocal. Guarnecia-o de fumo, acendia, pendurava entre os lábios, desguarnecido de dentes. E partia pros afazeres tranquila, tranquila. Pegava um tacho enorme pra fazer sabão caseiro, bem detrás de casa. Acendia um fogo a lenha, colocava os ingredientes no imenso caldeirão. E iam os meninos curiosos pra beira do tacho olhar o que estava fazendo. Daquela borra fumegante se fazia sabão? E a gosma espumosa de cheiro forte fervia e fervia. Dona Boninha, do jeito que estava ali, com Um vestidão comprido, um avental a cobrir-lhe o imenso ventre, o cachimbo na boca, o lenço na cabeça, o tacho fumegante. Enquanto mexia a poção com uma enorme colher de pau. Olhando assim, dona Boninha lembrava uma daquelas bruxas dos livros infantis, das histórias em quadrinhos. Mas se dona Boninha bruxa fosse, com certeza uma bruxinha boa seria. 

Mas, tudo isso passava longe, muito longe da civilização, não dava sequer pra ouvir o ronco dos automóveis a motor. Naquele fim de mundo, o progresso só existia na bandeira hasteada, num mastro tosco, na frente da casa da professora. E quando iam lá longe, na ladeira, ouvia-se o carro de boi cantando, gemendo, descendo. Descendo e gemendo até lá embaixo. E se chovia por muitos dias. Lá no alto da serra um espelho d’água feito mecha de cabelo de prata, na cabeleira verde da serra escorria. Um raio da silibrina, serpenteando, rumo ao abismo do mundo. Os cachorros latiam, os bois se irritavam, fungavam hálito morno, cheiroso a palma moída. Remoída, e o fio da baba se esticava, se esticava ao vento. Os meninos levavam gritos do carreiro, para que parassem a folia com os cachorros, pois aquilo assustava, irritava o gado. 

Vô, eu vou fazer uma história em quadrinhos. Poxa que legal! Já criei o primeiro personagem. Ele chama-se Bonnie. Ah é, e que poderes ele tem? Não vô, não se trata de um super-herói. Ele é um garoto, um menino como eu, quase comum. Eu disse quase... É, se não fosse alguns poderes que ele possui. Por exemplo, ele é capaz de ficar verde. Ora, mas todos nós também não ficamos verdes, às vezes? Verdes de raiva, de alguma coisa, que alguém faz contra nós, que não gostamos. Não estou falando de sentido figurado vô. Mas verde de verdade. Mudando a cor da pele. A vantagem nisso é poder se camuflar no mato. Outro poder que ele tem é de ficar invisível. Ah! Quantas vezes já não me senti assim. Às vezes sinto-me sozinho, mesmo rodeado de pessoas. A gente fala, e parece que ninguém nos escuta. É Muito triste sentir isso. Ah! vô, isso aí é solidão. Mas o Bonnie ele consegue entrar em qualquer canto sem ser visto. Não é legal? Você pode aprontar um monte com as pessoas. Ir a cozinha pegar uns bolinhos e vó nem o vê. O Bonnie também consegue voar! Não é massa vô?! Sim, ora voar, nós podemos também, igual ao Bonnie, É só imaginarmos que estamos lá no céu. Lá no alto. Veja, peguemos uma toalha azul, estendamos na instante. Daí deitamos no tapete, e ligamos o ventilador direto no nosso rosto. Não temos a sensação que estamos voando? Verdade vô! Isso é muito legal. 

Dona Boninha, como é mesmo o seu nome? Sabemos, que Boninha trata-se de apelido. Como então a senhora realmente se chama? Meu filho, você nem queira saber. Na verdade não gosto da história do meu nome. Assim a senhora deixa a todos nós, ainda mais curiosos. É isso mesmo, conta dona Boninha! Conta! Pois bem, meus bisavós são do tempo do império. E admiravam um certo comerciante chamado de Bonifácio. Meu avô chamava-se Bonifácio Neto, e meu pai Bonifácio Filho. Virou tradição de família, alguém ter esse nome. Meu pai tinha prometido que seu primeiro filho também teria o nome da linhagem. Só que contrariando a sua vontade, nasci eu, menina. Mas meu pai não se intimidou, e pôs-me o nome de Bonifácia. Só que sempre achei horrível. Sofri muito na escola. Daí minha irmã Libória, teve a excelente idéia de dar-me esse carinhoso apelido de Boninha, que prontamente adotei e todos chamam-me assim, até hoje. 

Boni o papagaio de Libória. Dona Boninha ensinava o papagaio a rezar. E ele sabia o santo ofício, a ladainha a Nossa Senhora, e mesmo cânticos gregorianos que o padre rezava na missa da quermesse. Na capelinha de Nossa Senhora Aparecida, fundada pelo pai de dona Boninha. Na semana santa, ainda de manhãzinha, nem o sol ainda tinha saído e Boni, basta ver dona Boninha com o rosário nas mãos, iniciava a reza junto com ela. O candeeiro ardendo seu fumo negro na parede de taipa. Mais tarde as crianças, invadiriam o terreiro. E rumariam pra casa da professora. Lá perto do Tanque Novo, onde existia um açude grande, onde os homens iam pegar água. Em pipas no carro de boi, em ancoretas nos jumentos. Em potes na cabeça. E lá longe ainda dava pra ouvir o eco das vozes das meninas: “Passarás, passarás/ uma delas a de ficar/ se não for a da frente/ há de ser a de detrás/ De detrás de detrás. Tenho meus filhos pequeninos/ não posso mais demorar/ demorar, demorar.” Os pequenos em fila iam. Tentando passar por um portal mágico que lhes davam acesso a um outro mundo onde existiam muitos Bonnies. Um lugar maravilhoso, onde o sol não apenas brilhava, sorria e dava bom dia! Um lugar em que para alcançar as nuvens bastava estirar as mãos e era como algodão doce. Um lugar onde todos eram felizes. 

Thômas, fez a tarefa escolar, mas acabou esquecendo o desenho do Bonnie em cima da mesa. Lá estava o personagem que muito lembrava um boneco. A cabeça pelada, vestido com roupas de astronauta todo verde. Dona Boninha, desde menina, dentro de uma velha arca mantinha bem guardado o desenho de um patriarca da família Bonifácio de Andrada. Ele aparecia de pé, com belíssimas vestes do período colonial, longas botas, uma majestosa espada. A extensa cabeleira dividida ao meio ia-lhe até os ombros. Só que poucos sabiam, o Bonifácio, assim como o Bonnie, era calvo. Mas a vaidade falando mais alto fazia-o usar peruca, importada da França. 

Um dia, não, um dia qualquer. Um belo dia, lá estava um velho agricultor na roça. A enxada vadiando na erva daninha. O mato roçava com afinco. Tanto que lhes subia as ventas o cheiro de terra, terra úmida revolvida. As brocas que abria no solo, feito feridas abertas. Cheiro de barro, cheiro de minhoca, que ia misturando-se com o cheiro de mato, arrancado. Era cheiro bom. Daí ele teve uma visão. Ao olhar pro céu, bem assim onde o sol estava, ele disse que viu Nossa Senhora Aparecida. Sabia que era ela, por causa da cor do seu rosto, das suas mãos pretinhas, da coroa na cabeça, de seu vestido azul. Ela veio, a santinha, com cara de menina, veio vindo, veio vindo, e parou bem ali assim, no ar. Õ que santa linda! Bem negrinha, com o seu belo vestido azul, a coroa na cabeça! E dela saía como uma fumaça de luz. E a santinha de meu Deus, falou com aquele homem. Falou com Seu Bonifácio Filho. 

Ela, Nossa Senhora Conceição Aparecida, queria fazer um pedido àquele lavrador. Nossa senhora queria que ele fizesse uma capelinha. Podia ser bem simplezinha, não carecia de muito luxo. E na capela colocasse uma sua imagem. E que o homem chamasse o povo daquelas redondezas para rezar na igrejinha, construída em sua homenagem. Tinha que ser bem ali no meio daquele mato. E nem adiantava perguntar por que, no pé daquela serra. Conhecida até hoje, como serra do Bonifácio.

p,s. O desenho que ilustra este Conto foi feito a partir de esboço de um desenho original de Aika, de 6 anos de idade. Neta do autor.

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