PAI-VÔ



































A vida, devagar, e branda. As adversidades, calmamente iam se ajeitando amargas e doces, dentro dos corações. Embrulhadas pra presente algumas. Os prédios, as casas, os estabelecimentos comerciais tinham mais o que fazer, a ficar se preocupando com coisas pequenas. E cada um sabia exatamente o quanto não era feliz. Não precisava ficar esperando o dia vir dizer isso. Se esticaria pra cima das coisas com gosto, no momento certo. Apreciaria os cavalos exibindo músculos luzidios, e crinas bem cuidadas. Toc toc-toc os cascos no passeio. Se tempo fosse de flamboians o chão da praça estaria salpicado de rubro e cinza. Cinza e rubro.

Lá vinha serelepe um dia de domingo. Tempo do sertão largar sua dureza. Secura de Judéia. A s noites não eram pra ficar assim, porém acabavam pensativas. Os violões, depois da guerra, não tiveram ânimo pra mais nada. Coragem não tinha de sacudir a poeira. Os pirilampos seduziam anfíbios que voluptuosamente os devoravam. As tarefas escolares dormiam nas bolsas, pacientes esparavam as correções, os pontos de exclamação. A data corriqueira passando, pra lá e pra cá, por cima das horas lentamente. A agenda, a assinatura da mãe.

E Deus quis ir conversar com ele. Embora, soubesse que não estava muito pra conversa. Não porque não quisesse, mas por estar dopado. Em coma induzido. Ficou olhando-o ao lado da cama alta, do hospital. As vestimentas verdes. O forte cheiro de amônia. A luz do dia, artificial. Numa mesma calha lâmpada feixe solar, na outra neve polar. Observava os olhos do pai, serrados. O que será que viam? De certo estaria no sertão. Lembrava do dia que o pai dele contratou um táxi. Um Aero Willys, branco, conversível, rabo de peixe. Pra levá-lo até o aeroporto Zumbi dos Palmares, dali embarcaria rumo a São Paulo. A mala cheia de dinheiro. Notas de mil cruzeiros. Seria mesmo cruzeiro o dinheiro? Naquele tempo, no comando da nação o marechal Castelo Branco. Lembranças gastas, feito filme antigo, sem cor. Como película velha que ameaça romper-se a qualquer instante. Estava sim, no sertão, era um sertão vazio. Imperfeito. Sem cheiro de bosta de boi. Nem de mato verde recém quebrado. Mas gosto de uísque, a isso tinha. Levara consigo o litro. Saiu sem se despedir do pai que se recolhera aos aposentos. Não queria ver a sua saída. Na cozinha, deu um cheiro e um abraço em Tonha, a preta velha.
 
A bisavó, deitada na cama do quarto. A neta carinhosamente chamava-a de “bisa”. Na cama baixa, de olhos fechados, meio que acordada, meio que dormindo. Gastando os últimos anos de vida. Vida árdua que vivera. Naquele tempo, aliás, tudo era difícil. Ainda mais sendo ela uma mulher, e de cor. Sofria calada. Preconceitos racistas na escola. Fingia que não se importava. Ainda criança tinha um medo mórbido que sua mãe morresse primeiro que ela. Verdadeiro pavor. Se chovia, mais aflita ficava. Enquanto a mãe não chegasse da roça não sossegava. E começava logo a rezar. Os meninos tinham que dar a lição. O casebre, tudo muito simples. Móveis, uma mesa uns tamboretes. Não havia luxo naquele mundo de meu Deus. O sonhos de ser cantora, morria junto com a voz, no oitão de casa. Uma pilhéria bastava, e tudo se acabava na beira do fogo. De olhos fechados chamava: Mãe? Mãe me perdoa. Achava que dera muito trabalho quando pequena. A asma, o remédio caseiro que não quis engolir, com nojo. O cheiro horrível, a dar-lhe ânsia de vômito só de aproximar o copo a boca. A febre que não cedia. A reza sussurrada, que produzia uns assobios baixos. Pai? ô que homem calado meu Deus! Esse povo calado me deve uma conta.

O terno branco, mesmo recém engomado, tinha vincos nas dobras do joelho. Na barra do encosto das cadeiras. O chapéu branco dava-lhe um ar de gangster americano, dos filmes de Al Capone. Um cigarro entre os lábios. A carteira e o volume retangular no bolso. Os sapatos bem engraxados. O pai o enchera de mimos. Se arrependia, mas agora era tarde. O gado, agora era coisa do passado. Achava que não nascera pra lida com o gado. Identificava-se com aquele jeitão de homem da metrópole, mesmo tendo pouca leitura. Tinha jeito pra medicina. Com destreza curava as feridas dos animais. Aplicava bem uma injeção. Quem sabe abriria uma farmácia. Agora estava na cidade. Na cidade só queria saber de casa noturna. De gastar o dinheiro do pai. De cassinos e jogatinas. De bordéis, mulheres e bebidas. De noitadas de serestas. De boemia, de tomar um litro de uísque até ficar bêbado, e não se preocupar com mais nada.

No que será que pensava? Deus sabia. Velava-o ao pé da cama.  Quem é esse homem? Quem pai? Esse ali encostado... Não tem homem nenhum ali. Lembrava do dia que foi, de carro de boi, pra Laje Grande com a família. A primeira experiência do futuro genro, junto ao sogro. E de repente um desafeto, um quase genro da filha mais nova. Apareceu na estrada. Estava bêbado e atravessou a bicicleta na estrada interrompendo a passagem do carro de boi. Deu de mão do facão. Só não cortou o homem ao meio porque o genro  da filha mais velha entrou em luta corporal com ele. Foi afronta demais se atravessar na estrada com a bicicleta. Cheio de cachaça só pra encrencar. Outro dia encontrou-os no meio da feira, eram amigos ainda. Tinha tirado o dia pra tomar cachaça. A desavença foi por causa de mulher mundana. E ficara sabendo que aquelas camisas limpinhas, bem passadas, que vestia era fruto da dedicação da mulher companheira, as custas de lágrimas, de ameaças, de impropérios. E pensar que teria que dormir ao lado dele, bêbado lavado. Depois de ter deitado, nos cabarés da vida, com outras mulheres. Com elas, as rameiras esbanjava sem reclamar. Em casa chegava brabo, quebrando tudo. A família era como um fardo pesado de carregar. Lares desfeitos, vidas desmoronadas. A filha  mais nova, que tanto sofrera na unha dele agora cuidava, na doença.

Se formara como enfermeira. Só nunca imaginava que usaria seus conhecimentos para cuidar do pai. Aquelas mãos cascudas que tantas vezes aprumava o arado na terra, e gritava com os bois, agora quedavam inertes, sobre os forros verdinhos da cama do hospital. Mãos tantas vezes lhe batera, de cinto de couro. Mãos que  esmurravam com raiva a mesa. E os pés? As unhas brutas apontando pro teto. Pés que tanto andaram pelas areias da beira dos riachos, pelas touceiras de capim elefante. Insensíveis as mordidas dos formigões. Mãos insensíveis agora, ao aperto imprimido pela filha, como a pedir-lhe a benção. Pés de agrimensor, na época de botar roça, a medirem cada palmo de tarefa de terra que encheria de palma, e  enterraria caroço de milho e feijão. E tirando o chapéu, a pedir a Mãe de Deus que mandasse chuva pra que o inverno fosse bom. Aqueles pés e aquelas mãos, tão deslocados ali.

A professora agora dormia, sem querer ser incomodada. Só queria levantar-se se fosse pra ir ao banheiro, ou ir a cozinha fazer as refeições. Abusara de ir pra porta. Não queria mais ver gente, não queria ver ninguém. Abusara de ver pessoas de verdade. Só queria ver gente no sonho, ver sua mãe. Ô menininho? Afaste-se desse barranco, é perigoso aí. Padrinho Pizeca. E como ficou feliz ao ver compadre Zé Lagoa. Perguntou por comadre Maria.

Ficar assim, sem vontade de ver gente. Não era a primeira vez que lhe acontecia. Só que não dizia. Perguntou quando lhes levaria de volta pra casa. De certo sua mãe estaria preocupada. Como podia fazer isso com ela.  Se a gente bem soubesse jamais fazia isso com as mães. Acho que Deus deve ter um castigo, e dos bem grandes pra quem faz a mãe sofrer. E todo castigo do mundo seria pouco pra quem fizesse uma mãe sofrer.

A traumática e dolorida travessia do rio. Nunca, jamais esqueceria, enquanto vida tivesse. Era um grande medo, tinha muito medo, pois não sabia nadar. Chegar do outro lado com vida, era como nascer de novo. Se dependesse dela, nunca mais enfrentaria o rio. Não mais queria ver tanta água na vida. As águas do mundo todo, lhes parecia que foram parar ali. Coisa triste deve ser morrer afogada. Qualquer morte menos afogada. E pedia a todos os santos que viessem em seu auxilio pra que não morresse, sem ver de novo, a sua mãe. Pai? Pai é tão calado. Esse povo calado me deve uma conta.

Lá estava o pai. Sozinho na cozinha. Sentado a mesa, calado. Um dos filhos mais novo ia passando. Disse: Sente aqui. Queria falar-lhe. Fora pego de surpresa. Além de surpreso, intrigado. Por pouco mais de meia hora, tivera uma conversa franca com o pai. Não foi bem um diálogo. Não se atreveu falar. Ouviu apenas. Mas foi o bastante. Em suas rudes palavras disse-lhe basicamente o que era a vida. Na começo pensou tratar-se de mais uma reprimenda, pensou em algo que tivesse feito. Mas o pai veio falar sobre o que um homem precisa para ser homem. Falou, acho, que do respeito aos mais velhos, a hora da família. Talvez, tivesse dito que considerava pouco o que tivera pra dar a ele, e aos irmãos. Muitos anos depois revendo isto, pensou que foi como estivesse se redimindo. Será que sentira que o fim estava próximo? Mas, seria mesmo preciso. Passar por aquilo? Precisavam ambos, pai e filho. Poderia ser de outro jeito. Mas fora daquele, e pronto.

Pai! Aliás, Vô! Vai ter uma festa dos pais na escola. Mas não irei, meu pai não poderá ir, vai estar trabalhando neste dia. Sentiu muito. Embora, nada pudesse fazer. Avô, não é a mesma coisa de pai. Vô, minha primeira história em quadrinhos já tem capa. E o título é: “Primeiros Desastre,,,” Os principais personagens: Puppet; Willian After; Henry; Charlie. A história se passa dentro de um restaurante. Tem um robô que é o guardião. Ele permite, ou não, a entrada e saída das pessoas ao estabelecimento. O robô ele não é do mal. Daí tem Dorothy uma menina que não estava na história, daí ela aparece. Só que ela quer entrar no bar, e o Robô, o Puppet não deixa. Daí o Willian After ataca a menina na rua, para roubá-la. Só que ele acaba desferindo-lhe vários golpes com uma faca. Daí começa uma chuva muito forte. O robô então, se vê na obrigação de ir resgatá-la. E quem sabe tentar reanimá-la...

A velha mãe, estava deitada na cama. De olhos fechados. Ao pressentir sua presença abriu os olhos. E pediu-lhe a benção: benção meu pai. Era a mãe que pedia a benção ao filho. E ele sorria. E a abençoava. Dizendo que já tantas bênçãos recebera. Agora porque não as devolver. E perguntava. Então pareço com vovô? E não é? Respondia. Ao passar perto da máquina de costura, paravam. Olhando as fotografias e repetia: Minha mãe... E está aí a raça toda! A mesma espontaneidade que a mãe tinha. Ao ver-se a si própria pelo visor da máquina fotográfica, quase eufórica exclamava: Olha minha mãe! Futucava no prato pra comer. E comia devagar. Depois com olhar meio que de quase aflição pedia: Me leva até a cama.

A cama do hospital, ainda tinha um pai. Olhos serrados. O peito subindo e descendo, lentamente. Inclinando-se Deus sussurrou-lhe ao ouvido, que tivesse fé, que iria sair daquela. Ele agora, ocupava-se em fazer um cigarro imaginário. Deitado. Olhos fechados. As mãos grossas, cascudas a arremedar o que tantas vezes repetira. Por força do vício fazia. Alisava o papel inexistente, colocava o fumo imaginário. Levava aos lábios, a passar saliva, fechava. E repetia o gesto de acender, e levava a boca. Como se realmente tivesse, o velho amigo, entre os dedos. 





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