Nunca Mais...




Nunca mais, era frase forte. Ficar olhado o pai, deitado na cama, imóvel, entendia ainda menos. Jamais imaginara que um dia iria vê-lo assim. A imagem que queria guardar era ele, de pé. No alpendre da casa do sítio, ocupado em fazer o seu cigarro, de fumo bruto. Encostar-se-ia a uma das vigas, que sustinha o telhado baixo, e entregava-se ao prazer de olhar o que a Mãe de Deus lhes dera.  Enquanto ela no beiral da porta. Talvez procurasse depois uma fotografia nestes termos. Lembrava com nitidez daquele dia. Era uma tarde de sol, de mês de setembro. Tempo da colheita, da safra de feijão e milho. Na fotografia em primeiro plano apareciam seus xodós “Rio Pardo” e “Paraná”. Parelha de nelore, bons de canga que ele tanto amara.

Os meninos, magros a mostrarem os ossos das costelas, cabeludos de cobrir os olhos com tanto cabelo, serelepes, um bom tanto eram. O dia era pouco pra danar-se pelos arredores a caça de preá, de balear de peteca, de ir olhar as arapucas que armaram à tardinha, no dia anterior, e ver se pegara algum mocó. Com cuidado pois, podia ter apanhado uma cobra. Lá perto do meio dia, tomariam banho de barreiro. Tinham medo do açude do governo, pois já matara tantos meninos que já perdera a conta. O último foi Lucas, o negrinho filho de dona Nena que morreu afogado no seco. O menino pegou um cará e ficou brincando com o peixe vivo, na boca, preso entre os dentes. Só o rabo de fora, balançando pra um lado e pra outro. Naqueles meios, o peixe escapuliu garganta à dentro. E o pobre negrinho morreu asfixiado. Se batendo no chão, se jogando, se cortando todo nos arames da cerca. Por essa e outras mortes o açude ficaria mal-assombrado. Em plena luz do dia, se ouvia os gritos dos pobres finados, e davam gemidos horríveis pedindo socorro, morrendo da pior morte que existe, afogado.

Um dia, voltando duma dessas empreitadas, um dos netos passou por detrás da casa da vó. Foi até lá. Após a benção, perguntaria pela sua mãe. Disse que estava bem. Na lida lavando panos no barreiro. Foi ao pote tomou água. Aguinha saborosa, salutar pra quem vem de dentro do mato, com sede, cansado. As faces, apesar do chapéu de palha, ardendo, vermelhas. Perguntou se tinha um prato de coalhada pra lhes servir. A vó disse que não. Deu desculpa dizendo que no verão as vacas diminuíam de dar leite. Concordou. Disse, e saiu da cozinha pra fazer alguma coisa. Talvez estivesse na despensa. Tempo suficiente pra descobrir dois imensos baldes de coalhada sobre o balcão da pia. Rápido, feito um gato, foi até terreiro catou um punhado de esterco de boi, com raiva espalhou sobre a coalhada. Tendo o cuidado de cobrir novamente, com os panos, como estava antes.

Sentada a mesa, mais o irmão, em casa. A frente dos dois, um balaio de tomates, recém colhidos no oitão de casa, convenientemente frutificados com as águas de uso. Teve a ajuda das trovoadas, sinais de fim de inverno magnífico. O irmão a desafiou. Aceitou o desafio, ver quem comia mais tomates. Parte considerável do conteúdo do balaio foi embora. Também a neta, era outra que gostava de comer tomates crus. Puxara a vó. Pra seu bem, ainda os sabores do mundo, não tinha tirado aquele paladar adquirido de família.

A novena de Santo Antonio. As quermesses nos sítios e vizinhanças arrastavam uma ruma de matuto pras rezas, também pras bebedeiras. Fogos de artifícios. Bandeirolas. A imagem do santo, amplamente tocada, beijada. Algumas velhas ao redor da imagem, entre cochilos, debulhavam incontáveis rosários. Madrugada a fora. A imagem enfeitada de fitas coloridas. Promessas pagas em agradecimento ao bom ano de fartura na mesa, de recorde de colheita de grãos, de bom pasto, de bois de engorda, de crias sadias das vacas parideiras. De bons negócios na venda de garrotes mansos, bons para puxar arado, bons de cangas, e de carro.  Os quitutes, as prendas, donativos adquiridos de promessas feitas ao santo. Uma garrafa de jurubeba, uma galinha assada. Arrematada por alguns escassos cruzeiros. Homens portando a cintura suas armas da lida do dia dia, facas peixeiras e facões de meio metro. A cantiga da ladainha. A procissão das velas. A missa em latim. O padre dizendo palavras que ninguém entendia.

"Ave Maria Mater dei
Ora pro nobis precatoribus
Ora, ora pro nobis
Ora, ora pro nobis precatoribus
Ora, ora pro nobis
Ora, ora pronobis precatoribus
Nune et in hora mortis
In hora mortis, in hora mortis, mortis nostrae
In hora mortis mostrae
Ave Mariae"

Pedro pedreiro, teve fim trágico. Teve vida breve como na música de bossa nova. Do tempo em que soldados prendiam por qualquer besteira. Ao encontrar quem quer que fosse vagando, bêbado nas pontas de rua. Primeiro batia, depois prendia. Raramente perguntava quem era. Pedro não teve essa sorte. Os tempos eram outros. Voltava da obra, as mãos, as unhas, os braços, as botas ainda tinham resto de cimento. Dois homens numa motocicleta o abordou a caminho de casa. Na baixada, da queimada do rio. O serrote testemunhou a cena. Calado, nada podia fazer. Os moços disseram. Ele nos reconheceu, se sabe quem somos, temos que matá-lo. De nada adiantou, pedir que o deixasse vivo. Que levassem o que quisesse. Não adiantou implorar pela vida. O primeiro tiro seria suficiente, atingido no peito caiu. Mesmo assim, não satisfeitos, mais outros tiros foram deflagrados. Trataram de cair fora, levaram pertences, carteira, dinheiro, motocicleta. 

Pedro pedreiro, nunca mais veria seu filho, nunca mais chegaria encostando a motocicleta no terreiro. Nunca mais olharia com aquele olhar só dele, a mulher que sempre o aguardava, apreensiva enquanto não chegasse, o filho no braço. No exato momento sentiu baque forte no coração. Só pode ter sido algo com ele. E realmente foi, no momento que o atingiram. Nunca mais, o jogo de bola, nas tardes de domingo, com os amigos. Nunca mais o sítio do cunhado, nos finais de semana. A vitrola tocando músicas alegres, ao cair da tarde. Nunca mais o banho de chuveiro, debaixo da mangueira, tudo isso a tomar muita cerveja. A alegria lhes faria dançar, a fazer os colegas rirem, a sentir-se leve, solto, vivo. Pedro, nunca mais.

"Nunca mais você ouviu falar de mim
Mas eu continuei a ter você
Em toda esta saudade que ficou
Tanto tempo já passou e eu não esqueci
Quantas vezes eu pensei voltar
E dizer que o meu amor nada mudou
Mas o meu silêncio foi maior
E na distância morro todo dia sem você saber"

Nunca mais o pai, a mãe, e seus filhos. Não mais. Da janela de casa ficava olhando. Nunca fora um herói de verdade. Mas era um gigante. Um gigante isso era, um deus agro. Um, como titã agrário, com poderes sobre as terras. O senhor dos campos, prados e campinas. Aplainava os caminhos, endireitava as veredas, como aprendera do batista. Como um guerreiro romano a cavalgar uma carruagem, puxada por dois bois. A arrastar a lâmina de aço, como a fazer a barba da terra. Começava detrás de casa. E ia indo, indo, de verde pintando de marrom a medida que o aço ia cortando. O Hércules do sertão, ia indo, ficando pequeno, cada vez mais pequeno, até virar um pontinho negro sobre a linha do horizonte.



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