Teve um tempo, lá atrás. Muitos
dias já se passaram desde então. À rua da casa da minha vó, matuto passava pra
lá, e pra cá. Jegue tombando carga gigante de capim. Mulher equilibrando pote
d’água na cabeça, ia e vinha. De repente um enorme carro preto parou a porta. Desceram
homens de paletó e gravata, óculos escuros, em rostos carrancudos. Brutamontes,
comparados aquele povo franzino e feio do sertão. Queriam saber da história de
uma máquina de costura, que pertencia a minha vó. Com a paciência de Jó,
convidou os homens a entrar. Ofereceu bancos pra que se abancassem. Serviu-lhes café.
A casa da vó paterna, a neta mais
nova a achava bonita. Dizia que se tivesse que morar ali, não mudaria nada. De
certo que estava muito velha. No entanto, achava que não mudaria muita coisa. O
piso com sua estampa variada de cerâmica. Um tipo para cada cômodo, também os
corredores. O pai esclarecia. Não se tratava de cerâmica, mas de mosaicos de
alvenaria, grossos, antigos. Assentados sem espaços entre eles. As paredes de
reboco irregular dividiam os cômodos, subiam sem alcançar o teto. A servir de
apoio pras traves que sustinham os caibros e ripas. O sagrado coração de Jesus,
inflamado dentro do peito de Cristo, pendido dum cordão marrom. Em moldura ovulada,
a gravura já bem desbotada. O tanto de orações que subira por aquelas paredes,
a se perder nos tempos. Quantas teriam alcançado o céu? Quanto de olhos pios
volvera aos céus. Alguns em dias azulados, outros anuviados. Quantos medos
atravessaram aqueles portões, de madeira velha, de trancas inseguras. Telhados
altos, de telhas quadradas, um dia já foram ainda mais velhas, bem mais gastas
que aquelas. Gatos quebravam o silêncio ao passar sobre a folha de zinco.
Preferia pensar que realmente fossem eles, andando sobre a bica. Na escuridão
da alma, de outras noites ainda mais frias.
Olhando assim, parecia uma
máquina comum. Como diria Thomas, só que não, né vô? Minha vó então iniciou sua história. Esta
casa guarda segredos que só Deus conhece, de onde vem, pra onde vai.
Aconteceram coisas por aqui seu moço. Coisas com essa máquina de costura,
que correu o mundo. Vou contar. Uma vez estávamos todos na calçada, era uma bonita
noite de lua nova, dum mês de agosto como este. Havia chegado a vizinhança um
povo de Pernambuco. Eram como ciganos. Dentre eles tinham um tipo que não
merecia confiança. E deu pra sumir uns objetos daqui de dentro de casa.
Primeiro desapareceu um relógio de pulso, de Tomaz meu marido. Passou-se um bom
tempo. Daí foi a vez duma corrente banhada a ouro, que ganhei no dia do meu
casamento. Eu guardava uns trocados dentro de uma lata vazia de biscoitos de
manteiga. A porta dos fundos, tenho a mania de deixar aberta. De repente, de
lá da calçada, ouvimos um forte grito, bem aqui dentro da cozinha. Tomaz e
outros amigos que estavam com a gente correu pra cá, pra ver o que era.
A cozinha da casa da vó paterna,
tinha uma área verde. Na verdade uma adaptação que tomou metade do espaço. Assentada
estrategicamente onde antes havia um balcão de muitas portinholas. Guarnecido
de prateleiras também cheias de portinhas enxadrezadas. Uma parafernália de
apetrechos de culinária tomava toda a bancada. Tigelas de vários tamanhos, terrinas,
travessas, compoteiras, paliteiros, portas-guardanapos, bandejas, xícaras,
talheres, copos, bules de café, jarras de leite, açucareiros, e pratos de
porcelana. Tudo decorado com muito esmero. Um souvenir mexicano que servia pra
coçar as costas, como uma pata de macaco. ali era intrusa. Teve um tempo que
estava muito feio, àquele recanto verde. Agora tinha plantas vistosas e bem
cuidadas. Pedras redondas chamadas de corisco, subiam até o alto iam ao
encontro de vigas de concreto que evocavam cadeias. Trazendo ancestrais do
tempo colonial que chegaram de navios. E desejaram ardentemente sobreviver, e
outras vez pisar terra firme. O céu,
somente ele trazia a liberdade Pra dentro dos corações aflitos. Acalmando o
espírito que dá vida a casa.
Vô, Deus tem asas? Creio que sim. Deve ser das
bem grandes né vô? Deus come? Deus come o quê? Pão. A mãe falou que pão
engorda. Deus não é gordo. Mas, é só se comer muito. Não, Deus não é guloso
como o vovô, ele come pouco. Desisti de fazer a história em quadrinhos. Vou
escrever histórias com palavras mesmo. Contar sobre homens que conseguem
desaparecer. E aparecer de novo, onde e quando quiserem. E se quiser conseguem
voar também. Para sumir eles precisam entrar numa máquina, vô. Isso, me fez
lembrar, dum filme que assisti, faz muito tempo. A história se passava no final
do século trasado. Contava a história de um homem e uma máquina que era uma
espécie de trenó. Uma máquina de viajar no tempo. Dotada de uma cadeira, onde o
único tripulante se assentava, sobre sua cabeça ficava uma espécie de sobrinha,
e num painel de controle umas manivelas e mostradores onde apareciam números,
que indicavam o ano a qual o navegante pretendia viajar no tempo. Ao acionar os
mecanismos, a sobrinha girava freneticamente. E o piloto era levado pro passado,
ou pro futuro.
Então Tomaz, e os
amigos, ao chegarem aqui na cozinha, se depararam com uma cena de arrepiar. Eu e algumas amigas chegamos logo atrás, a
tempo de ver também. Esta máquina de costura que vocês estão vendo aqui, como que tomada de vida própria funcionava sozinha. E com força costurava a mão do ladrão que se esvaía em
sangue. Era inacreditável, até pra quem via, imagine pra quem apenas ouve
contar. A máquina de costura como que agia contra o
homem prendendo sua mão. Até que chegasse alguém pra descobrir sua má ação. Se vocês me perguntarem de onde vinha aquilo. Sou sincera a dizer que
não sei. Talvez seja preciso voltar mais no tempo. Eu porém,
preciso saber qual o interesse de vocês, pela história desta máquina de
costura.
A menina dos olhos azuis, dos
cabelos galegos, não era bonita. Tinha rosto triste. Rosto ossudo, sofrido. Um que de rebeldia havia naquele olhar. Tinha tantos irmãos que já perdera a
conta. Um dia se enfezou com tanto sofrimento, resolveu ir morar com
uma das irmãs mais velha. Uma que vivia com um homem que era metido a vaqueiro. Um tipo
boçal que andava de vaquejada em vaquejada. Só pra sair de casa fez isso a
menina. O companheiro da irmã tentou, em surdina, abusar dela. E sempre se
esquivava. Tinha medo que a irmã pensasse que fosse ela a culpada. Procurou uns
meios de fazer dinheiro. Resolveu plantar hortaliças detrás de casa. E vendia
macaxeira, de porta em porta. Num carrinho de mão com a ajuda de um irmão mais
novo. Vendia milho assado ao lado da bomba de gasolina. As roupas, ia lavar no riacho do bode.
Feito criança que ainda era, brincava a tarde inteira. Outras meninas da sua idade, tinha vergonha de vender na feira, ou de
porta em porta. O vaqueiro, um dia alcançaria seu intento, a obrigou fazer
sexo com ele. Se não fizesse não teria mais direito de morar com eles. Pra
piorar obrigava-a a dividir com ele o dinheiro que arrumasse com as vendas das
hortaliças. Não demoraria a engravidar.
Os homens de paletó preto, que
foram à casa de minha vó investigar a história da máquina de costura, eram do
serviço de investigações científicas do governo. Eles
receberam da Nasa, a missão de descobrir no sertão nordestino no Brasil, um
fenômeno que estaria afetando todo tipo de maquinário. Fosse manual, a motor, a
tração animal. Talvez uma força vinda de um campo magnético do subsolo para a atmosfera, que precisava ser
localizado. Um campo de energia cósmica. Minha vó jamais ficou sabendo dessa história, soubera apenas que
aqueles homens eram do governo. Sem sucesso os homens tentaram levar a máquina.
O vaqueiro não entendia o que lhe
acontecia. Estava perdido de amor.
Perdera interesse por mulher dama, também por mulher senhora. E mesmo pela
mulher que lhe servia. O coração, só, palpitava
pela menina. A galega dos olhos azuis. Uma frangota de pouca beleza física. Puramente
selvagem. A menina dos olhos azuis, teve um bebê. Um rebento varão cujo pai, era o caubói. O homão de quase dois metros de músculos e força, sucumbido a
alguns quilos de loira paixão. Alguém que era pra ser só dele. Precisando de doma ainda. Um
dia a menina chegou da cidade, na garupa dum motoqueiro. Ao ver a
cena, o vaqueiro ficou possesso. O cuidador de gado tinha uma máquina, a invenção
de Samuel Colt tinha uma guardada. Um protótipo invento do cão pra fazer buraco em gente. Misturado com álcool e marijuana, o sangue subiu-lhe a cabeça. Com a máquina satânica de Colt fez
cinco buracos na galega. Nem sequer ouvia os estampidos. Como num filme de
faroeste, que estivesse com problema de som, A queda em câmara lenta. Muito perturbador foi ver o pequeno no
berço. Dormia inocente sono de anjo. O resto de sua vida, esperaria a mãe que nunca mais viria lhe dar de mamar. O boiadeiro selou o cavalo, doidamente. Tinha um plano urgente
a executar. Parado, de pé na estrada encontrou um homem negro, chapéu preto, paletó preto,
óculos escuros, luvas de couro. Sorriu, pondo a ver os dentes de ouro. Disse ao
vaqueiro, só uma coisa havia a fazer. Que fizesse rápido. Cavalgou indiscriminadamente, até chegar a frondoso pé de cajarana. A beira do riacho do Bode. Um laço de
corda alcançou um braço da árvore. Passou pelo pescoço, enxotou o animal com as esporas. Ficou pendurado, balançou, até ficar imóvel. Para
sempre.
Os vizinhos da minha vó. Depois
do ocorrido voltaram pra Pernambuco. Pra região do Caetés, de onde vieram. O
caboclo, consigo levaria, sequela pro resto da vida. O dedo mínimo da destra,
decepado pela máquina de costura. A despeito do destino, aquilo tornar-se-ia um
mal de família.
Ilustração feita por Aika Vieira Melo, de 6 anos de idade, neta do autor.
Ilustração feita por Aika Vieira Melo, de 6 anos de idade, neta do autor.
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