Vidraças e luz. Pessoas. Gente
vária. Sala de espera. O céu do avião. Cartazes, avisos, recomendações médicas.
Estúpida sincronia de passantes, ao longo de um corredor estreito. Cada um
carregava no próprio corpo sua história. Histórias às vezes compartilhadas. O
passado, no subconsciente. Turbilhão de sentimentos, a maioria ruim. Os
compromissos poderiam acabar todos naquela sala. Tudo era questão de escolha.
A alma, que nunca envelhece. O corpo
sim, esse envelhece. E adoece. Os dias vão se agrupando, feito folhas de um livro que parece
nunca ter fim. Puro engano. Amarelando, vão se desbotando, virando pro outro
lado. Ciclistas passavam no asfalto, com suas roupas coloridas, capacetes reluzentes,
músculos ágeis. A meta chamando a seguir, em frente. Os óculos escuros. Suor
suado, suor salgado. Namorados voltando da escola, de mãos dadas. Em que
pensavam? O sinal vermelho pra pedestre, verde pros automóveis.
A vida indo, andando. Um cão sem rumo,
nada comera até então. Revirou um resto de lixo. Guardanapos de sanduíches. Uma
música gemida ao banjo, vindo diluir-se pelas frestas de sol na vidraça. A tevê
solitariamente ligada trepada na parede. O apresentador do jornal, bem motivado,
a noticiar uma chuva de sol, um tsunami de calor sobre a cidade. As nuvens
cinzentas, marcadas pro final do mês, viriam antes do décimo terceiro, talvez.
O menino, tinha um curativo no
olho direito. O velho, um tampão no olho esquerdo. Os vidros de remédios dentro
das caixas tarjadas de vermelho só saíram do ambulatório, com receita médica.
Os balcões de vidro, as janelas de vidro, o olhar de vidro. A carência de amor,
mesmo que de vidro. A falta de compreensão, na receita médica. Os meninos sem
natal continuariam sem natal. Enquanto houvesse natais. O viaduto, nada via.
Cego de cimento e concreto. Os desenhos sucateados, praticamente impedidos de
brincar com a cidade. Sufocados pelos entulhos de construção.
O sorvete sorveteando na mão,
entre os dedos. Entrando na igreja. O sorvete e os santos. Os santos de olhos
angelicais não queriam sorvete. Gravemente olhavam. A pele de cera, de protetor
solar. Os pés cheios de poeira, orações e velas derretidas. A língua seca. As
pupilas dilatadas. O véu na cabeça da santa ficou noutra cidade, noutra igreja,
noutros tempos. O oratório, ponto obrigatório. Antes de ir pro centro
cirúrgico. A fé, guardada no bolso.
O cavalo do santo, com seu olho
negro. Grave pensar de cavalo. A pisar pisada de cavalo, impávido colosso de
guerreiro. Os monumentos, vivendo nuvens virarem fumaça, corpos de concretos, almas
de valentes que nunca esqueciam o ódio. Era o que os mantiveram vivos. Até
então. Vinte, trinta, sessenta anos de ódio. Isso render-lhes-ia excelentes
cânceres pulmonares, biliares. Aguardaria calmamente que envelhecessem. Não
tinham pressa.
Julgar é escuro. Intuir é
obscuro. A inocência é divina. As almas são feitas para a luz, nascem para luz.
Adoecem se no escuro. O escuro cega. O claro também. Tudo a depender da
intensidade. A água quando viesse seria
pra espalhar vida. Ceifar vidas, quando tinha raiva. O dia chuvoso
aguardado com apreensão. O ciclista foi tomado pela enxurrada, não largou a
bicicleta. A água arrastou-o pra dentro do bueiro. Melhor morrer que perder a
vida. Porque um trabalho danado daria pra reencontrar. Melhor morrer com dignidade,
de ciclista. Melhor morrer que sentir a dor da perda.
O asfalto pulsando seu sangue
quente. Seus músculos exalando cheiro e suor.
O lixo entupindo as vistas, entupindo pensamentos, entupindo bueiras, criando
detestáveis moscas varejeiras. Asquerosas, incômodas. Os dinheiros sempre perigosos.
Fosse qual fosse o estado físico que se encontrasse sólido, líquido, gasoso. A
saúde dos olhos, custando os olhos da cara. A doença ainda mais cara. O ódio
custando os olhos da cara. O ar atmosférico nos pulmões virando oxigênio, se
transformando em adrenalina. Aumentando os batimentos cardíacos. A pressão
arterial. A morte lhe sorrindo.
O sistema medroso, aparentemente
quase sem alteração. Totalmente alterado. Porém. Não fosse o tensiômetro,
ninguém jamais descobriria. Sabia, estava à beira de um colapso nervoso. O
médico, amigo, comentou. Nada que alguns “emes éles” de adrenalina na veia não
controlasse. O amigo médico, conhecido de infância. Lembrou de uma brincadeira
boba que gostava de fazer. Imitava o Topo Gigio, aquele ratinho italiano, dos
anos setenta. Fazia assim: Puxava demasiadamente as orelhas, até ficarem vermelhas. Enchia as bochechas
com bastante ar, punha os lábios preso dentro da boca. Pra completar, ficava
vesgo, de propósito. Era bem engraçado. Arrancaria risos, ainda hoje se mesmo
médico anestesista imitasse o camundongo.
Teve que tirar toda a roupa,
menos a cueca. A anestesia, além de local era intra-cutânea. Se é que existia
algo desse tipo A assistente diante da sua semi nudez agia com naturalidade. Conversava
como se estivessem num salão de festa, rodeados de gente. Embora só houvesse os
dois ali. Solícita, simpática. Os nervos entrevando a alma. Entravando os gestos. Os objetos e
pertences seriam entregues aos familiares. Sentiu-se como um cadáver vivo. Como nos “is emes éles” da vida. Em que os
parentes vão até lá, pra reconhecer o corpo. Nesse caso perfeitamente
reconhecível. Ainda vivo. Medo embota a alma.
O que antes estivera obscuro foi
ficando apenas escuro, e depois muito claro. Tanto que cegava. As luzes, muito
forte, chegava a doer nos olhos. Na verdade cegavam. Os cheiros múltiplos
causavam náuseas. Talvez, efeito da adrenalina. A água consumida em excesso, o
ar condicionado provocando muitas idas ao banheiro. Teve uma sede
incontrolável. Medo de morrer. Não entendia por que, antes dali, medo nenhum
tinha de morrer. Medo da dor tinha. Medo de sentir dor, era medo assumido. Da
morte não. Preferia morrer a sentir dor.
A mulher, ao lado na sala de espera.
Até então desconhecida, tornou-se familiar. Como não! Eram da mesma cidade do
interior. Puxar conversa ajudaria a descontrair. Arrepender-se-ia da conversa pra
descontrair. A mulher falou em dor. Sentira dor quando fizera a primeira
cirurgia. Talvez, a anestesia não "pegou". Melhor morrer que sentir dor. Negou a si mesmo que estivesse, mais
uma vez, com vontade de ir ao toalete. Mas estava. Já fora pelo menos umas dez vezes.
Adrenalina, andando de skate no sangue. Adrenalina vinha na cabeça, em forma
de rapel, de board Jump, asa delta. Não sabia que era hormônio capaz de matar. Os
batimentos cardíacos esses não dão pra controlar. Só tinha conhecimento de
faquires capazes de tal façanha. Meditação, ioga, rezas, alternativas que
só funcionavam à longo prazo. E em suaves prestações. Black Friday nos corredores
dos hospitais. Seria algo inédito.
Os ouvidos doíam, talvez apenas
zumbissem, talvez fosse fosse só impressão. Era melhor que fosse. Na cabeça
colocaram-lhe uma touca de material reciclável, esterilizado. Estaria ridículo? Talvez parecesse um daqueles açougueiros da sessão de frios do supermercado. Mas onde
estaria o sangue? Tudo tão limpo. Ainda dentro das veias, correndo alucinado.
Tantas luzes e equipamentos. A
assistente pediu que deitasse, pôs uma faixa que imobilizou a cabeça. Segurava
seus ombros como quem segura um suíno, inerte pronto pra ser fatiado. Inerte
não estava. Não ainda. A equipe conversava animadamente. Conversavam como se diante
de um cadáver. Cadáver ainda não era. Ainda não.
Lá no canto do corredor. Bem no
alto uma câmera. Olhou fixamente pra lá. Como quem dissesse a pessoa que estivesse por trás dela. “Sou eu que estou te filmando viu?” Na folha da porta, a altura
de um homem mediano, pelo lado de fora, um adesivo dizia que o médico, que
atendia ali cuidava da visão. Sublinhado com o desenho em “três dê” um olho
azul.
A mulher falou pro marido. É você
o próximo. Agora deixe de nervosismo! Não vê, todos estão calmos. Há mentiras
que em determinados momentos necessitam serem ditas. Antagonismos, mentiras tudo
junto. Junto e misturado. Frases compartilhadas. Repetidas. Amassadas contra aquelas paredes,
não conseguiam mais se libertar. O marido, seria o décimo a ser atendido. Recebia
reprimenda da esposa, a décima que ali estava. Pedia que levantasse a cabeça
pra colocar o colírio, pela centésima vez o faria. Como uma mãe com seu filho.
Indiferente, não agiria diferente. A dor veio forte sobre o peito e se estendia
pelo braço direito. A vista foi escurecendo, formigando. Os olhos ficando
pesados, tudo escurecendo.
O homem que o recebeu olhava-o
com olhar sereno. Por que está vestido assim? Porque estava num hospital, ia
fazer uma cirurgia. O que tinha? Doença nos olhos. Isso não é roupa adequada
pra chegar aqui. Vá trocar-se. Lucas! Por favor! Saiu com um acompanhante, um negrinho desses bem
sem-vergonha, embora contido, para o trabalho que exercia. Conhecia aquele tipo,
quando fizessem amizade seria só palhaçada. Todo almofadinha, de terno e
gravata. Fazia o possível pra ser simpático. Voltaram os dois, de terno e
gravata.
Agora sim, parece mais adequado
para a ocasião. Lucas, por favor! Acompanhe o moço até um dos apartamentos no
andar de baixo. Olha! Nem pense que vai ficar por aí, andando livre, solto... Voando
pra lá, voando pra cá. Passeando nas nuvens a hora que bem quer... Não senhor!
Vai usar tornozeleira eletrônica. viu? Por quanto tempo? Quem sabe...Talvez, uma eternidade.
Fabio Campos, 01 de dezembro de
2018
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