MEDO [1º Conto da Série Delliriu's Cap. 1]



Vidraças e luz. Pessoas. Gente vária. Sala de espera. O céu do avião. Cartazes, avisos, recomendações médicas. Estúpida sincronia de passantes, ao longo de um corredor estreito. Cada um carregava no próprio corpo sua história. Histórias às vezes compartilhadas. O passado, no subconsciente. Turbilhão de sentimentos, a maioria ruim. Os compromissos poderiam acabar todos naquela sala. Tudo era questão de escolha.

A alma, que nunca envelhece. O corpo sim, esse envelhece. E adoece. Os dias vão se agrupando, feito folhas de um livro que parece nunca ter fim. Puro engano. Amarelando, vão se desbotando, virando pro outro lado. Ciclistas passavam no asfalto, com suas roupas coloridas, capacetes reluzentes, músculos ágeis. A meta chamando a seguir, em frente. Os óculos escuros. Suor suado, suor salgado. Namorados voltando da escola, de mãos dadas. Em que pensavam? O sinal vermelho pra pedestre, verde pros automóveis.

A vida indo, andando. Um cão sem rumo, nada comera até então. Revirou um resto de lixo. Guardanapos de sanduíches. Uma música gemida ao banjo, vindo diluir-se pelas frestas de sol na vidraça. A tevê solitariamente ligada trepada na parede. O apresentador do jornal, bem motivado, a noticiar uma chuva de sol, um tsunami de calor sobre a cidade. As nuvens cinzentas, marcadas pro final do mês, viriam antes do décimo terceiro, talvez.

O menino, tinha um curativo no olho direito. O velho, um tampão no olho esquerdo. Os vidros de remédios dentro das caixas tarjadas de vermelho só saíram do ambulatório, com receita médica. Os balcões de vidro, as janelas de vidro, o olhar de vidro. A carência de amor, mesmo que de vidro. A falta de compreensão, na receita médica. Os meninos sem natal continuariam sem natal. Enquanto houvesse natais. O viaduto, nada via. Cego de cimento e concreto. Os desenhos sucateados, praticamente impedidos de brincar com a cidade. Sufocados pelos entulhos de construção.

O sorvete sorveteando na mão, entre os dedos. Entrando na igreja. O sorvete e os santos. Os santos de olhos angelicais não queriam sorvete. Gravemente olhavam. A pele de cera, de protetor solar. Os pés cheios de poeira, orações e velas derretidas. A língua seca. As pupilas dilatadas. O véu na cabeça da santa ficou noutra cidade, noutra igreja, noutros tempos. O oratório, ponto obrigatório. Antes de ir pro centro cirúrgico. A fé, guardada no bolso.

O cavalo do santo, com seu olho negro. Grave pensar de cavalo. A pisar pisada de cavalo, impávido colosso de guerreiro. Os monumentos, vivendo nuvens virarem fumaça, corpos de concretos, almas de valentes que nunca esqueciam o ódio. Era o que os mantiveram vivos. Até então. Vinte, trinta, sessenta anos de ódio. Isso render-lhes-ia excelentes cânceres pulmonares, biliares. Aguardaria calmamente que envelhecessem. Não tinham pressa.

Julgar é escuro. Intuir é obscuro. A inocência é divina. As almas são feitas para a luz, nascem para luz. Adoecem se no escuro. O escuro cega. O claro também. Tudo a depender da intensidade.  A água quando viesse seria pra espalhar vida. Ceifar vidas, quando tinha raiva. O dia chuvoso aguardado com apreensão. O ciclista foi tomado pela enxurrada, não largou a bicicleta. A água arrastou-o pra dentro do bueiro. Melhor morrer que perder a vida. Porque um trabalho danado daria pra reencontrar. Melhor morrer com dignidade, de ciclista. Melhor morrer que sentir a dor da perda.

O asfalto pulsando seu sangue quente. Seus músculos exalando cheiro e suor.  O lixo entupindo as vistas, entupindo pensamentos, entupindo bueiras, criando detestáveis moscas varejeiras. Asquerosas, incômodas. Os dinheiros sempre perigosos. Fosse qual fosse o estado físico que se encontrasse sólido, líquido, gasoso. A saúde dos olhos, custando os olhos da cara. A doença ainda mais cara. O ódio custando os olhos da cara. O ar atmosférico nos pulmões virando oxigênio, se transformando em adrenalina. Aumentando os batimentos cardíacos. A pressão arterial. A morte lhe sorrindo.

O sistema medroso, aparentemente quase sem alteração. Totalmente alterado. Porém. Não fosse o tensiômetro, ninguém jamais descobriria. Sabia, estava à beira de um colapso nervoso. O médico, amigo, comentou. Nada que alguns “emes éles” de adrenalina na veia não controlasse. O amigo médico, conhecido de infância. Lembrou de uma brincadeira boba que gostava de fazer. Imitava o Topo Gigio, aquele ratinho italiano, dos anos setenta. Fazia assim: Puxava demasiadamente as orelhas, até ficarem vermelhas. Enchia as bochechas com bastante ar, punha os lábios preso dentro da boca. Pra completar, ficava vesgo, de propósito. Era bem engraçado. Arrancaria risos, ainda hoje se mesmo médico anestesista imitasse o camundongo.

Teve que tirar toda a roupa, menos a cueca. A anestesia, além de local era intra-cutânea. Se é que existia algo desse tipo A assistente diante da sua semi nudez agia com naturalidade. Conversava como se estivessem num salão de festa, rodeados de gente. Embora só houvesse os dois ali. Solícita, simpática. Os nervos entrevando a alma. Entravando os gestos. Os objetos e pertences seriam entregues aos familiares. Sentiu-se como um cadáver vivo.  Como nos “is emes éles” da vida. Em que os parentes vão até lá, pra reconhecer o corpo. Nesse caso perfeitamente reconhecível. Ainda vivo. Medo embota a alma.

O que antes estivera obscuro foi ficando apenas escuro, e depois muito claro. Tanto que cegava. As luzes, muito forte, chegava a doer nos olhos. Na verdade cegavam. Os cheiros múltiplos causavam náuseas. Talvez, efeito da adrenalina. A água consumida em excesso, o ar condicionado provocando muitas idas ao banheiro. Teve uma sede incontrolável. Medo de morrer. Não entendia por que, antes dali, medo nenhum tinha de morrer. Medo da dor tinha. Medo de sentir dor, era medo assumido. Da morte não. Preferia morrer a sentir dor.

A mulher, ao lado na sala de espera. Até então desconhecida, tornou-se familiar. Como não! Eram da mesma cidade do interior. Puxar conversa ajudaria a descontrair. Arrepender-se-ia da conversa pra descontrair. A mulher falou em dor. Sentira dor quando fizera a primeira cirurgia. Talvez, a anestesia não "pegou". Melhor morrer que sentir dor. Negou a si mesmo que estivesse, mais uma vez, com vontade de ir ao toalete. Mas estava. Já fora pelo menos umas dez vezes. Adrenalina, andando de skate no sangue. Adrenalina vinha na cabeça, em forma de rapel, de board Jump, asa delta. Não sabia que era hormônio capaz de matar. Os batimentos cardíacos esses não dão pra controlar. Só tinha conhecimento de faquires capazes de tal façanha. Meditação, ioga, rezas, alternativas que só funcionavam à longo prazo. E em suaves prestações. Black Friday nos corredores dos hospitais. Seria algo inédito.

Os ouvidos doíam, talvez apenas zumbissem, talvez fosse fosse só impressão. Era melhor que fosse. Na cabeça colocaram-lhe uma touca de material reciclável, esterilizado. Estaria ridículo? Talvez parecesse um daqueles açougueiros da sessão de frios do supermercado. Mas onde estaria o sangue? Tudo tão limpo. Ainda dentro das veias, correndo alucinado. Tantas luzes e  equipamentos. A assistente pediu que deitasse, pôs uma faixa que imobilizou a cabeça. Segurava seus ombros como quem segura um suíno, inerte pronto pra ser fatiado. Inerte não estava. Não ainda. A equipe conversava animadamente. Conversavam como se diante de um cadáver. Cadáver ainda não era. Ainda não.

Lá no canto do corredor. Bem no alto uma câmera. Olhou fixamente pra lá. Como quem dissesse a pessoa que estivesse por trás dela. “Sou eu que estou te filmando viu?” Na folha da porta, a altura de um homem mediano, pelo lado de fora, um adesivo dizia que o médico, que atendia ali cuidava da visão. Sublinhado com o desenho em “três dê” um olho azul.

A mulher falou pro marido. É você o próximo. Agora deixe de nervosismo! Não vê, todos estão calmos. Há mentiras que em determinados momentos necessitam serem ditas. Antagonismos, mentiras tudo junto. Junto e misturado. Frases compartilhadas. Repetidas. Amassadas  contra aquelas paredes, não conseguiam mais se libertar. O marido, seria o décimo a ser atendido. Recebia reprimenda da esposa, a décima que ali estava. Pedia que levantasse a cabeça pra colocar o colírio, pela centésima vez o faria. Como uma mãe com seu filho. Indiferente, não agiria diferente. A dor veio forte sobre o peito e se estendia pelo braço direito. A vista foi escurecendo, formigando. Os olhos ficando pesados, tudo escurecendo.

O homem que o recebeu olhava-o com olhar sereno. Por que está vestido assim? Porque estava num hospital, ia fazer uma cirurgia. O que tinha? Doença nos olhos. Isso não é roupa adequada pra chegar aqui. Vá trocar-se. Lucas! Por favor! Saiu com um acompanhante, um negrinho desses bem sem-vergonha, embora contido, para o trabalho que exercia. Conhecia aquele tipo, quando fizessem amizade seria só palhaçada. Todo almofadinha, de terno e gravata. Fazia o possível pra ser simpático. Voltaram os dois, de terno e gravata.

Agora sim, parece mais adequado para a ocasião. Lucas, por favor! Acompanhe o moço até um dos apartamentos no andar de baixo. Olha! Nem pense que vai ficar por aí, andando livre, solto... Voando pra lá, voando pra cá. Passeando nas nuvens a hora que bem quer... Não senhor! Vai usar tornozeleira eletrônica. viu? Por quanto tempo? Quem sabe...Talvez, uma eternidade.



Fabio Campos, 01 de dezembro de 2018

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