O policial sacou o revólver e deu
voz de prisão. Como resposta, o caubói disparou vários tiros. Acabou alvejado o
guarda, que também acertou o caubói. Tiros despedaçaram litros de uísque,
arrancou lascas de madeira. Não sabia como e porque tudo aquilo começara. Sabia
apenas que estava lá. Antes comodamente sentado, a mesa. De repente tiros. Dentro
do peito a dor. Os dois olhos, bem abertos, crispados de sangue. Uma espécie de
sono profundo foi tomando conta do corpo. O sangue tingindo o mosaico. Apagou. Letargia,
vivera por aqueles anos todos. Atrapalhava o raciocínio. Martelava as têmporas.
Marcas indeléveis. Irremovíveis, ficaram. Não restava a menor dúvida.
O menino que um dia fora, se
estava, sentado no canteiro da praça. Chorava abraçado aos joelhos. Ficou lá um
tempão. Levara uns tabefes dos quais jamais esqueceria um dia. Tabefes desses que a vida dá, pela mão de
algumas pessoas. Não sentia pena de si mesmo. Sentia ódio. As têmporas
latejavam, o sangue fervia. Doía um dor difícil de doer. Ainda mais quando
pensava tais coisas. Vinham-lhes outras ainda piores. Aquela surra que levara
de um amigo de infância então. Odiava lembrar o quão humilhante fora. Odiava-se
por não ter forças suficientes para vencê-lo. Odiava não possuir habilidades
que julgava ter. Nos filmes tudo parecia tão fácil. Mais uns e outros percalços
ao longo do caminho da vida. E passaria a andar armado, com um revólver Rossi,
calibre vinte e dois.
E se fosse buscar onde tudo
realmente começara? Teria que nascer de novo. Teria que voltar ao ventre da
mãe. Viver novamente a infância. Buscar os dias de sua adolescência. Reviver os
dias em que se dera em casamento. A questão era, seria possível ficar livre?
Não cria nisso. Achava aquele sentir, algo com o qual teria que conviver pro
resto da vida. Como um vizinho incômodo colado ao espírito, amigo confidente da
alma. Se havia. Sempre estivera lá, em tudo quanto era sua existência. Sempre
pronto a surpreender-lhe. Sempre.
Os olhos crispavam, toda vez que
o possuía. A fisionomia parecia de outro. Se conseguisse olhar-se no espelho. E
ver bem fundo nos olhos, no momento exato, talvez conseguisse ver o outro
dentro dele. O que o possuía. E que tanta estranheza lhes causava. Bastava contrariar-se.
E o homem pacato, do diálogo morria. Pra nascer um outro. que o desfigurava. O
descaracterizava. Um que adorava contendas, amava fortes discussões, brigas.
Pra onde, em tais ocasiões, ia a razão? Pouco importava, não sobrava-lhes
espaço, muito menos tempo, pra pensar nisso. Não, quando esse outro lhe
possuía. Razoar, verbo que só se ousa tragar junto a sensatez. Tornava-se
essencial, muito mais forte que ele.
Outro dia, disseram-lhe que tinham
visto o rosto do outro, dentro da sua face. Isso certamente, no auge da violência,
no topo. No clímax. Preferiu levar pro
deboche, o cinismo. Dizer que se estava tornando discípulo de leviatã, achou
leviano. Motivo ainda maior pra aumentar mais e mais tão execrável sentimento.
Não gostava da ideia de sentir-se usado. De sentir-se invadido por quem quer
que fosse. Soberbo não gosta jamais de admitir perda. Palavra extirpada do seu
sanguíneo dicionário. Ainda mais quando a perda refere-se a domínio. Se havia
uma saída seria tentar controlar os impulsos. Reter os ânimos. Nada fácil, quando
assume o controle o ódio. Nada mais tem vez. Até sair dele. Até esfriar.
O avô falava de um adágio
indígena. Dizia que dentro da gente existem dois lobos. Um que incessantemente
busca tornar-nos bons, enquanto outro com igual intensidade quer a todo custo
tornar-nos maus. Estão sempre lutando, um contra o outro. E quem vence? O que mais alimentamos. A neve, e seu poder
de aplacar a cólera. O frio da montanha. Entrar na montanha, enfrentar a
nevasca talvez fosse uma saída. Encarar o lobo dos maus impulsos, e tentar
dominá-lo. Os músculos davam-lhes sensação de força. Mas não de poder.
Um dia, chegaram dois caras, numa
moto a casa. Bateram palma. De dentro via-os, porém não era visto. O que
queriam? Comprar-lhe o revólver. Engraçado, como souberam que tinha um pra
vender. Não dissera a quase ninguém. Foram até o quintal. O caubói avaliava o
artifício de fazer buraco em gente, como um ourives que avalia uma jóia. Uma
estaca velha serviu de alvo. Deu uns tiros. Acabaram fechando negócio. Depois que
se foram, se deu conta do perigo que correra. Poderia ser morto. Aqueles, não
restava dúvida de boa índole não eram. As sobrancelhas arqueadas poderiam
servir de símbolo do ódio. Dão um aspecto violento ao rosto. O drama, a
tragédia e a comédia nas encenações representadas pelas máscaras da tristeza e
da alegria. E o ódio? Odiou não estar ali representado. Afinal não existe drama
sem ódio. Sem mocinho e bandido. De tanto ódio encaliçaram o coração, nem
conseguem mais desarquearem as sobrancelhas.
O silêncio dentro do ódio é
doentio. Odiar, tão humano quanto amar. Tomados de ódio as pessoas tornam-se
explosivas, espalhafatos no agir. Tomados de uma força que impulsiona com
fúria, da qual não tem controle. Diferente da raiva. A raiva é momento. A raiva
é rompante, o ódio pode vir com premeditação. A raiva é impulsiva. O ódio é
estudo. O ódio exige discernimento. Desprendimento da alma. Os que odeiam
premeditam. Esperam, têm paciência. Criam o momento certo.
O ódio, foi ter com leviatã. Foi
uma conversa bem franca. Se é que isso fosse possível entre estes dois. Discorreu-lhe
seu tratado, sobre o que causaria aos que decidissem dar-lhe guarida, ficar com
ele. Aumentaria os batimentos cardíacos. Encheria de rubores suas faces.
Dilataria as pupilas, aumentaria a pressão arterial e da retina, ressecaria a
boca, causaria espasmos musculares. Aumentaria a função renal. Liberaria na
corrente sanguínea taxas extras de adrenalina. Servir-lhes-ia uma sopa de sódio
e potássio, a alterar o metabolismo. Promoveria uma nata de aflição no mais
profundo do ser. Até desencadear distúrbios nervosos, e descontroles nas
sinapses neurais. Os tiques e momos se tornariam constantes. Como podia deixar-se
involuntariamente ser usado por tão vil impulso?
Ficava repetindo a mesma frase.
Disse que não odiava. Mas mentia, já ia pra quase três décadas que odiava. Só
que negava. A afronta, a calúnia, falsos
testemunhos, infâmias, injúrias, difamações. O desprezo, o orgulho ferido, a
soberba. Um carnaval de maus sentimentos arregimentado por ele. A revolta de
que lhes haviam manchado a honra. O orgulho ferido. Que honra? Não Havia
desonra, onde não há honra. Havia sim ódio solúvel, cristalino, límpido, puro,
correndo nas veias. Arregimentando células para metástase futura. Ódio puro.
Pura subserviência a leviatã.
Se Deus resolvesse livrá-los de tudo isso. Que
pena, ficariam feitos zumbis. Intrínseco ao ser humano tais atributos, da ira,
da cólera, da raiva, do ódio. A questão não é livrar-se dele. Mas como
conseguir dominá-lo? Conviver sem se deixar dominar. Muitos anos se passaram.
Um dia, ia saindo do trabalho, em
pleno sábado. Trabalhava num canteiro de obras. A firma construía
estradas pavimentadas. Passava do meio dia. Céuzão blue de azul. Caminhou até a margem da rodovia, na esperança de pegar
uma carona. Bom voltar pra casa. O espírito cantarolava uma das músicas de Tim
Maia, daquelas que faz a alma se desvencilhar das preocupações, saindo pra curtir as
melhores praias do Brasil. “Descobridor de sete mares, na verdade eu sou assim”
Um quiosque meio que abandonado.
Um reboque da polícia rodoviária federal. Dois policiais cochilavam. Esplendor
de azulão de céu, como um mar calmo. As nuvens flutuando feito ondas. A placa de
sinalização amarela e preta. A mosca no pelo do braço, refletida no rayban do
policial. O som que dava pra se ouvir era das nuvens fofas, vagarosamente se
beijando. De repente a calmaria foi interrompida pela chegada de um carrão vermelho.
Um Car Manguia riscou cantando pneus no asfalto. Parou no acostamento. Dele desceu
um caubói. Trajava com elegância camisa de botões, calça jeans, cinto de imensa
fivela, botas de couro, imenso chapéu de massa branco.
Olhou pra um lado, olhou pro
outro. E disse bem assim. Ô rapaz? Topa tomar uma cerveja comigo? O rapaz, a
que se referia, claro, o único ali, o que gostava das músicas de Tim Maia, que
topou. Invadiram o barzinho quase abandonado. Do outro lado da rodovia, um dos policiais largou
seu posto. E veio vindo em direção ao bar. Nem bem se sentaram. Sacando dois
imensos revólveres, o caubói perguntou: Sabe atirar?
Fabio Campos, 07 de Dezembro de
2018.
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