Cap. 19 Zooantropia da Saga do Sonho de Kira

desenho feito pelo meu neto Thomas Kael que completou este mês 10 anos de idade.



Ferdinand Navarro morava num apartamento de esquina, no vilarejo de Belaville. Morava quase sozinho. De companhia seus vinte e sete anos, de livre arbítrio, livros e solidão. Toda vez que ia ao armazém, passava em frente à casa de Morennah.  No inverno ia de guarda-chuva. Ela olhava da janela, e ria das suas galochas que rangia e rangia de umidade se enfiando na lama. No verão punha um boné amarelo, uma bermuda azul e chinelas nos pés. Da janela ela olhava, e ria de suas pernas precisando de sol. E voltava trazendo salame, uns pães, bisnagas que acenavam pra moça.

Kira, se esforçava para entender o que acontecera. Jamais deixara de ser humano. Aliás, seu verdadeiro nome era Ferdinand Navarro. O pai trabalhava na companhia de eletricidade, a mãe se fosse preencher um formulário diria que era do lar, porém ajudava no orçamento doméstico como manicure. Quanto a Kira, melhor dizendo Ferdinand, tudo não passara de surto psicótico. Jamais saíra do seu corpo. A mordida que levou do cão de rua, fizera com que tivesse entrado em verdadeira transe psíquica. O que o levaria a pensar que havia se transformado em um cão. Kira era o nome de um cão que Ferdinand tivera quando conhecera Morennah. Um cão enorme, negro, muito novo. Tinha só seis meses de vida. Não era um cão assim de personalidade forte. Afinal era um cão adolescente. Isso porque cães têm personalidade. Agressividade não é característica somente de algumas raças. Todos sabem que tem cães cujo pedigree coloca-o na condição de dócil, no entanto ficam bravos por determinadas coisas. O mundo dos humanos jamais saberia explicar por que Kira era assim tão calmo, aliás, calmo até de demais. Desengonçado sempre, atrapalhado bastante, e que entrava em algumas enrascadas por conta disso. Outro dia foi levado pra namorar com uma cadela que estava no cio. Não deu o menor valor a pobre cachorra. Pior, caiu num fosso no quintal, e não conseguiu sair sozinho. Uma decepção.

A avó ficava no alpendre da casa do sítio. Lá vinham os netos se aproximando, debaixo do sol inclemente. A imagem deles tremeluzia abrasada de fogo. Todas as cores tronadas amarelo trêmulo. A velha, de pele alva, enrugada, um pó de arroz nas faces. Os olhos claros, os cabelos que um dia foram loiros, clarearam, alguns fios brincavam ao vento por trás das orelhas. O rabo de cavalo deitado debaixo dum lenço sóbrio. De onde ela estava lançava um olhar inicialmente contemplador, pra logo virar desaprovação. Em seguida rodava sobre os calcanhares e entrava em casa, antes mesmo que as crianças chegassem. A casa da avó paterna, a casa do povo de olhos claros, olhos azuis, bem azuis. Os irmãos chegaram, vinham da roça, o sol brabo, e tanta era a fome e a sede que um deles desmaiou assim que pisou no batente de alpendre. Acordou já era a noite.

Toda vez que alguém começava a falar sobre as qualidades e os defeitos do seus cães Magda lembrava de uma história bem triste. Mais uma, do seu repertório de histórias tristes. Um casal criava um cachorro pastor alemão fazia muitos anos. Chama-se Rin-tin-tin para homenagear o astro da tevê dos anos cinquenta. Pois bem, esse cachorro foi adestrado pelo dono que era policial, de modo que muito ajudava nas tarefas domésticas. O casal teve seu primeiro filho, um lindo bebê do sexo masculino, a quem puseram o nome de Juan Francisco. Houve um grande festa de confraternização de fim de ano, na vila. O casal foi participar, e deixou o cachorro de guarda da casa, e o bebê dormindo. A festa ficava a apenas uma quadra da casa do policial. Ao voltarem perceberam que havia algo de errado. Rin-tin-tin não parava de latir, e tinhas as patas dianteiras cheias de sangue, em desespero o policial, deduziu que algo de ruim tivesse acontecido com seu filho, sacou a arma e deu vários tiros em seu cão. Qual não foi seu desespero ao entrar no quarto, e deparar-se com seu filho dormindo tranquilamente enquanto ao lado do berço jazia numa poça de sangue um ladrão, que invadira a casa.

A irmã, tinha boa memória. Uma vida de recordações. O tempo que vivera, mais da metade gastara com recordações. Trazia coisas de muito tempo, bem como coisas que vivera a poucos dias atrás. Recordava coisas de infância, assim como adorava reviver momentos corriqueiros, vividos a poucos instantes. Magda era a irmã “disco arranhado”. Lembrou de um dia quando vinham da roça, a noite se projetava no firmamento. E ela e seus irmãos viram no meio das capoeiras um fogo corredor. A roda de fogo ia girando e soltando fogo rente ao chão, dentro do mato. Estava a uma boa distância de onde eles estavam. Era um baixio, lugar pantanoso. A imaginação fértil possibilitava ouvir  sons e ver fogo colorido, como de fogos de artifício. Magda tão impressionada ficara com a visão que não conseguiu dormir naquela noite. No pesadelo via os seus padrinhos caindo em adultério. Sua madrinha ficava com seu pai, seu padrinho traindo a esposa com sua mãe. Pois diziam que fogo corredor nada mais era que os compadres que em vida traíram seus cônjuges. Pura crendice. O pecado da traição, o julgamento de Deus. Mandando-os para um lugar numa caverna lúgubre, em fogo ardente, fedida a enxofre. Em meio a chamas os corpos se consumindo, os gritos lancinantes, o desespero. Os que escapavam dali vagavam pelo mundo, em forma de fogo corredor.

O cavalo, não se sentia cavalo. Cavalgou elegantemente no terreiro da casa de alpendre. Sacudiu a crina como quem ajeitava o cabelo. Olhou com altivez, olhar de olhos negros, inteligente, vivaz como de alguém que sabia jogar xadrez. 

Fabio Campos, 30 de novembro de 2019.

POESIA:     O CRAVO E A ROSA

O CRAVO ERA BRAVO
A ROSA DENGOSA
O CRAVO BRIGOU COM A ROSA
A ROSA PÕE-SE A CHORAR
O CRAVO FICOU DOENTE
A ROSA FOI VISITAR

O TREVO TRAZ SORTE
GIRASSOL ALEGRIA
IBÍSCO COR DE CHÁ
NORMA-ROXA VAI A MORTE
Ô JARDINEIRA POR QUE ESTAIS 
TÃO TRISTE?
O QUE FOI QUE TE ACONTECEU?
FOI A CAMÉLIA QUE CAIU DO GALHO
DEU DOIS SUSPIROS E DEPOIS MORREU

MARGARIDA TU ÉS QUERIDA
JASMIM TE QUERO PARA MIM
ORQUÍDEA FLOR DA SERRA

OLHAI OS LÍRIOS DOS CAMPOS
LÍRIO MARROM, LÍRIO VERMELHO
LÍRIO ROSA, LÍRIO MANGA
ORELHA DE BURRO
AS QUE NÃO OUVEM POEMAS!

SANTANA DO IPANEMA, 23 DE OUTUBRO DE 1978.


POESIA:     QUERO, NÃO QUERO

NÃO QUERO VIAJAR, OU NAVEGAR
QUILÔMETROS PARA A FELICIDADE
ENCONTRAR
NÃO É DO OUTRO LADO DA SERRA
NEM É DO OUTRO LADO DO MAR
QUE EU VOU ENCONTRAR

QUERO VIVER AQUI MESMO
PORQUE É AQUI 
QUE EU VOU ENCONTRAR
A FELICIDADE
DA NATUREZA QUE EXISTE POR LÁ

NÃO QUERO A PRISÃO DOS LIVROS
DE SONHOS
NEM A LIBERTINAGEM 
ESCONDIDA ATRÁS DA PORTA
NEM ILUSÕES MORTAS

QUERO NOITES CLARAS DE LUA
CHEIA PRA NAMORAR
OS DIAS QUENTES PRA VADIAR
AMANHECER CANTANDO
COM OS PÁSSAROS
CORRER NOS CAMPOS
NADAR NO RIACHO
LUAR DE GALOPE
DORMIR NO CANSAÇO

NÃO QUERO QUE ACABE
QUERO QUE NUNCA ACABE
MEU APEGO A MÃE-TERRA.

POESIA FEITA EM: 24 DE OUTUBRO DE 1978. 

                          PENSAMENTOS

Só há uma solução pra o mundo: solução de bateria.

Para se medir a capacidade de uma máquina, usa-se combustível. Para se medir a capacidade de um homem, usa-se uma mulher bonita.

Errar é humano. Acertar é com as máquinas; Amar é humano. Escravizar é com as máquinas.

O homem que sempre acerta, serve de alvo para os que erram.

Fabio Campos, 02 de novembro de 1978. A quarenta anos fizemos essas pérolas do pensamento-filosófico, e guardamos por todos esses anos até hoje, data  em que resolvemos publicar neste blog. 
  



Nenhum comentário:

Postar um comentário