Cap 18 Mágoas Da Saga de Kira





Aos poucos, estava tudo voltando ao normal. Devagar e brando, voltava. As coisas do mundo eram assim. Mas, só alguns poucos entendia, e se davam conta disso. O céu parecia outro, era o mesmo porém. O sol, agora, com seus quase sessenta anos, exibia ainda, muito vigor e energia pra quem já era, praticamente,  sexagenário. A máquina de costura, herdada de mãe para filha, de filha pra neta, ia indo sem tirar nem por. De neta pra bisneta, indo, ao longo das casas indo. O Aero Willis, rabo de peixe, eternizou-se nas chapas, nos flagrantes das polaroides da vida. Nas jovens tardes de domingo, de passeios matinais, dos “weekend”, na praia, nas estradas dos sertões. Motivo de tantos suspiros, de anotações, registros que acalentou sonhos. O automóvel continuava lá, hibernando, na porta de casa. Silenciosamente, entregue as lembranças. Ternas recordações.

A mãe de Kira, na cadeira de balanço rangedeira, acalentava um menino no colo. Ele próprio. Aproximando-se, agachou-se ao lado de sua mãe. Passou de leve a mão na sua cabeça. Tocou-lhe os cabelos brancos. Tocava-a levemente, com medo, não querendo ser inoportuno. Tocar na cabeça de sua mãe, era algo muito forte. Sentia como se sua mão, fosse a própria mão da mãe. Tocando-lhe a cabeça, de infância. Mão morena, nodosa, carente de carinho, de afeto. Retribuía o que recebera.

Do rádio vinha uma música, velha, que falava de amor por um rio, de um país separado por um rio. A música vinha "molhada" com notas de guitarra. As mulheres com franjas e rabo de cavalo no cabelo estampavam no rosto e na vida, suas felicidades bem guardada em gavetas arrumadas com esmero, de carretel de linha, agulha e dedal. Antes do chá das cinco, folheariam revistas.As propagandas com desenhos, de traços finos, simples, de cores desmaiadas, E se agradariam de blusas que valorizavam seus braços sinuosos, os seios firmes, o colo delineado. As saias godês enxadrezadas, tão em voga. Os móveis, cheios de curvas, design de formas psicodélicas, em tons pasteis. E tudo remetia aos anos quarenta, e cinquenta.  

Vieram lembranças do dia que brigou com seu irmão, João. Ele o chamou de cachorro. Dona Morgana o repreendeu, dizendo que não se devia dizer aquilo. Ela obrigou os irmãos se desculparem, e se abraçarem. Foi um abraço frio, distante. De dedos cheios de incertezas, ressentidos de mágoas. Mágoa que carregariam por anos, sem conseguir se desvencilhar. Um peso extra às costas, acabaria provocando um desvio na coluna, fardo que os rins não suportaria tanta bile. Lembrou, dias antes daquela encrenca estavam os dois tomando banho no açude do sítio de Seu Antonio Martin. De repente, João escorregou duma pedra, de onde se encontrava no paredão. Caiu na parte mais profunda do lago. João tinha só nove anos, não sabia nadar. Kira tinha onze anos, e não pensou duas vezes, se atirou nas águas. Mergulhou fundo, indo por baixo d’água até o irmão. Empurrando-o pelos pés até as margens. Pelos outros meninos, foi puxado para fora.  Ganhou alguns arranhões na barriga e pernas que tem até hoje. Engoliu um monte de água, mas João sobreviveu.

O azulejo preto e branco, parecia um tabuleiro de damas tamanho família. Kira, ia pisando ora só nos pretos, ora só nos brancos. A geladeira guarnecida dum pinguim, que nem estava aí pro calor, com seu cachecol e boné preto. As paredes do corredor, três biscuits de patos branco, que voavam sem sair do canto, sem farfalhar de asas, sem emitir som nenhum de seus bicos amarelos. Sem terras longínquas pra fugirem do calor, perspectiva de vida somente a do velho corredor. A cristaleira dando guarida a uma bailarina de porcelana, assistida por um soldadinho de chumbo com um olho vazado, a baioneta avariada. Tudo, tudo revestido duma verdade, abrupta, comovente, se quisesse bem que podia chorar. Hoje avaliava tudo com um pouco de lirismo. Uma vez que fazia parte do passado tornava-se tão lírico. O presente era que era duro, desumano, as vezes. O ar amarelo-cádmio quase não dava pra respirar, de tão carregado, de misturas, de cheiros. De emoções de mangas maduras, de fotogênico bolo de chocolate, recém saído do forno. A porta do banheiro, ao se abrir, deixava a água de lavanda se derramar feito tromba d’água rumo a sala de estar. Ia arrastando tudo que via pela frente. Carinho de toalha fofa de flores cantantes e vidraça translúcida. Canto de bem-ti-vi, que os meninos chamavam de lavandeira. O único pássaro poupado pelas baladeiras e estilingues. Por acreditarem que as lavadeiras ajudaram Nossa Senhora, Maria Santíssima, lavar as vestes ensanguentadas de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Kira, não precisava mais se esforçar para entender o que acontecera. Jamais deixara de ser humano. Tudo não passara de surto psicótico. Jamais saíra do seu corpo. A mordida que levou do cão de rua. Kira sofrera de um mal, de nome estranho, zoantropia.

23 de Novembro de 2019.

                                            SABATINA
SABES TU
QUE TODOS NÓS TRAZEMOS
UM NÃO SEI QUE
DE ESPERANÇA

SABES TU
QUE A PAZ
É UMA LÁGRIMA
DE COR SALGADA
DE GOSTO BRANCO

SABES TU
QUE UM DIA
QUIS SER, FUI, OU SEREI
NAMORADO DA LUA
DO MAR, DA HARMONIA

SABES TU
QUE O VIVER É
O IÇAR DE UMA BANDEIRA
QUE TREMULA
PORQUE AS RECORDAÇÕES
TRAZEM SAUDADE
QUE SABES TU?


POESIA FEITA EM 21 DE OUTUBRO DE 1978. GUARDADA POR 40 ANOS NUM CADERNO ESPIRAL, HOJE DE FOLHAS AMARELADAS, FRÁGEIS, SECAS...

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