TERRAL Cap 9




Era um cair de tarde. As nuvens pareciam frias, sopravam promessas sobre aquele pedaço de mundo. E pro lado do poente, os olhos tinham que se acostumar a uma sucessão de tons vermelho alaranjado, ou laranja avermelhado. Como se um ferreiro gigante que não tinha mais tamanho tivesse dando os últimos pingos de solda, na chapa de aço onde iniciava-se o mundo, concluindo sua magnífica obra a ferro e fogo. O cair da tarde também seria assim, trazia muitos sentimentos próprios do momento. Como se o dia uma vez que cumprira sua jornada, envolveria a todos com sua despedida soldando o portão do mundo. E que despedida seria. Qualquer música que tocasse naquele instante por mais alegre que fosse, teria tons de tristeza, pitadas de saudade. O terminar de um dia era como se o astro rei, o soldador maior, não pudesse sair do mundo sem deixar seu toque fantástico de despedida. Como se não quisesse ser esquecido fecharia com um espetáculo inesquecível. O  amanhecer também.

Senhor Djalma se estava, sempre pensativo. Era como um homem que nunca estaria no presente. Como sempre estivesse no passado. Vivia do passado, pelo passado, para o passado. Disco velho, de capa amarelada, com alguns arranhões significativos. Sendo assim, volta e meia repetia alguma coisa, e repetia, e repetia. Não se orgulhava disso. Pensou que seu inimigo mortal, o havia deixado para trás a ponto de não querer nunca mais vê-lo. Ou vê-lo morto. 

A casa era pobre, aliás paupérrima. Um homem que parecia um indiano, nas feições e no trajar. Parecia ser seu amigo, talvez um irmão, não lembrava, conversava acaloradamente atarefado sem o encarar. Tinha esposa e filho. A mulher não dizia uma palavra, trazia uma criança ao colo. Com o olhar apenas dizia: “Em que posso lhe servir.” E a frase poderia ser dirigida as galinhas que haviam no terreiro, as nuvens do céu, ao chão que pisava. 

E todos se preparavam para sair. Iam todos a vila. Senhor Djalma, também ia. Não sabia bem porque, mas ia. Percebeu que estava descalço. Era hóspede do indiano. O dia nem bem amanhecera. Ou talvez anoitecia. Foi colocar os sapatos. Abriu sua mala no quarto, estava indeciso se ficava com aquela roupa mesmo, ou trocava por outra mais adequada. Roupa festiva, de quem vai a cidade. Ouviu barulho de gente chegando no terreiro. Olhou por uma janela coberta com um pano encardido que servia de cortina. Eram três homens, muitos parecidos com o indiano dono da casa. Talvez seus irmãos. Riam, e falavam alto. Sobre o que conversavam? Talvez dissessem pilhéria uns com os outros. Chegaram num velho Jeep, camuflado, coberto de poeira e lama ressecada das estradas da região. 

O que será que se passava com ele? Era sempre assim, de repente, acordava, como de um surto, num determinado lugar onde nunca antes estivera. Não que estivesse dormindo, como todas as pessoas se deitam e vão dormir. Simplesmente vinha o estado de consciência. E pronto lá estava ele. Acabara de chegar àquele lugar, em que não sabia onde estava. Apenas parecia familiar. Nem conhecia as pessoas. Tinha que fazer de conta que sempre estivera ali. Para os que lá estavam, era como se ele sempre estivesse.

Vivia uma viagem infinita, interminável, de lugar em lugar. E ficava se perguntando, como fora parar ali? Um dia entenderia. Estaria revivendo os momentos todos de sua vida, nos segundos que antecediam a sua morte. Alguns daqueles momentos não lembrava. Era um emaranhado de episódios que se sucediam, e que parecia não ter ligação alguma entre eles. O início disso tudo ele lembrava, começou lá na na taberna, quando levou a machadada. Estaria morrendo.  Embora não parecesse. Tudo parecia tão real. E era.

19 de Julho de 2020.

Nenhum comentário:

Postar um comentário