ILUSÃO DE PEDRA CONTO da Série PAN-PÁSC -2021


 

Outra vez, o barulho da máquina retroescavadeira o acordou. Potência de motor, sinal de alerta na marcha ré. Trovão das pedras caindo da pá enchedeira. De fato, o céu acusava que a noite passada fora de tempestade. Os muros amanheceram molhados. A goiabeira, a mangueira, o pé de crote, todos sorriam, eram todos sorriso de orvalho. As pedras feitos mulheres nuas, com seus sexos expostos, a apreciação pública. Pudor, de mãos que não tinham, para cobrir suas vergonhas. Fissura no granito, imensa genitália, molhada. Imensos glúteos. Talvez, o desejo sexual, reprimido pela doença, fizesse ver coisas onde não existiam. As casas entumecidas, em rosáceos de flores desabrochantes. Se doando, em lânguidos beijos.

Aproveitou a noite fria, pra ir até a casa do amigo, o mesmo que reencontrara na rua. E que a tanto tempo não via. Cumpria a promessa. Viera se abrigar justo na rua, que tem umas casas altas, do lado que o sol bate nas fachadas, quando está perto de se por. Aquela escadaria, tão familiar, lembrava de um tempo morara naquela mesma rua. Também ocupara uma daquelas casas alta. A luz tênue. Um velho sofá, de braços flácidos e gordos, de morno e terno abraço. O telhado de pé direito alto, de duas águas. E lá estavam, um de frente para o outro. Por instantes apenas se olharam. O anfitrião quebrou o silêncio. Disse que, se o amigo não o tivesse reconhecido, jamais ele o reconheceria.

Lembranças, que sequer compartilhara com o amigo, vieram na volta pra casa. De um tempo, na juventude, que namorou uma menina que morava naquela vizinhança. De como ficavam os dois numa sala de varanda, conversavam até de madrugada. O pai da garota, um beberrão, enchia o saco dos dois, com suas conversas, nada a ver. Sobre futebol, de como fora seu dia, nada interessante, de motorista no departamento de obras. Mas, não demorava, e o bêbado, se recolhia. Então dava pra admirar o céu negro, ou a noite de estrelas, conversar conversa boba, de dois namorados, de flertes cheios de malícias. Nada que desse pra se preocupar, o futuro, pouco interessava. Não passavam de dois jovens, que só pensavam em curtir, um ao outro. Ela, até que era bonita, porém ordinária. Só pensavam, um ao outro, em satisfação pessoal.

Não saberia dizer para onde estava indo. Precisava despistar o homem que achava estar seguindo-o. Andaria, pelas ruas a esmo. Até que desistisse, até que se cansasse. Entrou no mercado de cereais. Saiu por uma porta lateral, furtivamente, pensando o tempo todo em despistar um suposto perseguidor. Alguém que talvez só ele via, só ele pressentia. Alguém que talvez só existisse em sua mente, esquizofrênica, e a mania de perseguição. Entrou numa igreja, que ficava no final da rua. Era uma capela feia, pintura gasta, desbotada, de reboco estragado, de portas velhas, tijolo simples, de algumas poucas bancadas. No altar um santo magro, com cara de cansado, cara de sofredor, cara de choro, de angustiado. Como se nada tivesse a oferecer, a alguém que precisasse dele. Numa sala contígua ex-votos.  

A pele alva, o cabelo preto, o corpo magro, o moço a admirava. Desejava-a. Embora tivesse vontade de tocá-la não podia, não devia. Nutria um ódio, um ciúme, uma raiva pelo pouco caso que fazia dele. Infundados sentimentos, mas senti-os com toda força. Entendia que era descartado, desprezado. Não fazia questão de sua presença. O pior sentimento, aquele que fere a alma, o desprezo. Prometeu vingar-se. Meteu a mão no bolso, sacou um maço de cédulas, tantas que quase deixou cair. Abaixou-se, pôs-se a contar de cócoras, sem tanto interesse pelo quantia que tinha ali. Apenas desejo de posse, e de poder, prevalecia. Trocou de bolso, o dinheiro. Isso talvez desse-lhe um pouco mais de segurança. Temia ser observado, tinha a impressão de estar sendo observado. Talvez fosse só impressão, talvez fosse a mania de perseguição que tinha. Toda vez que estava com dinheiro ficava assim, obsessivo. Todos pareciam conspirar, todos queriam o que ele tinha. Uma mania de perseguição. Resquício da esquizofrenia.

Àquele homem da esquina, vestido no sobretudo negro, de chapéu, olhava-o com desconfiança, podia ser um inimigo disfarçado. A qualquer momento poderia atacá-lo. Melhor sair dali, o mais rápido possível. A cabeça doía. Os olhos doíam, o abdômen doía. Mandaria o fazedor de ex-votos fazer um par de olhos de madeira, já que padecia de doença nos olhos. Mandaria fazer um coração de pau, pois padecia de um mal naquele órgão também. Sorriu por dentro, ao pensar num ex-votos do próprio pênis. Precisava pra ficar bom, de infecção crônica no canal uretral. Quem sabe um boneco de madeira de corpo inteiro, e a promessa faria curar todas as mazelas.

Era um rapaz, de família. Era do bem, acabou virando um ladrão. Começou praticando pequenos furtos pela vizinhança. A mãe, ficou sabendo, dava conselhos, não adiantava. De repente, não queria mais estudar, só jogar bola no campinho. Dormir até tarde. Acordava e ia pro aparelho de telefonia móvel. As amizades, eram de dar arrepios. Os moleques que sacavam de drogas. Ilusão de pedra, e pó branco, um pouco de fumo, ilícito. Repassavam, curtiam, revendiam. Os dias, passavam no bar da sinuca, nos quintais de rinha de galo, cuidavam de cavalos de amigos, em troca de um passeio, só pra se mostrar pras meninas, na porta da barbearia, nos vídeos games, lan houses.

Até que teve aquele dia. Ele pulou o muro da vizinha, encontrou-a lavando roupas no tanque, apontou-lhe um revólver. Obrigou-a a tirar a roupa, fez sexo com ela, ali mesmo em cima da lavanderia, a calça abaixada, o revólver encostado no pescoço. A mulher, uma senhora, mãe de família, que humilhação. Jamais contaria aquilo pro marido, morreria com tal segredo. Ninguém podia saber. O rapaz pulou outro muro, outro, e mais outro. A polícia, acionada foi em seu encalço. Conseguiu alcançá-lo. Em plena rua. Deu-lhe voz de prisão. Reagiu, atirando. A polícia revidou. O rapaz caiu, no meio da rua. O policial apontava-lhe a arma ainda. Curiosos, em frente a porta de casa. O policial aproximou-se, o rapaz caído, uma criança a porta de casa, imensos olhos, olhando. O policial de pé, os óculos rayban refletiram o corpo caído, guardou sua arma, girou nos calcanhares, se foi. O sangue vermelho, o granito da rua. 

Fabio Campos, 17 de Abril de 2021.


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