O ônibus avançava na intensa
avenida, sobre o asfalto molhado. Chovia. Cair de tarde de dezembro. Os prédios
de apartamento, molhados, revigorados nas cores. Antes vivo do que mortos. Os
faróis pelos pingos ofuscados. Os luminosos de propagandas acendiam o
entardecer úmido. A cidade decorada, pro natal. Outro ponto de parada. A
freada. O balão de ar esvaziando. A porta se abrindo. O rapaz, dum salto entrou.
Alívio, depois de ansiosa espera. Buscou um acento, com o monobloco em
movimento. Sentou-se numa poltrona do corredor. O cansaço de um dia corrido
cobrava-lhe um cochilo. O corpo pedia. A mente, com tudo, não obedecia. A mente,
ia revirando tudo o que havia feito naquele dia. Pensar, o impedia de relaxar.
O sono reparador tão necessário, que não viria. Sabia, não viria, não conseguia
dormir viajando. Olhos fechados, ao menos isso. Resolveu brincar de imaginar,
onde, estaria passando a cada momento. Tentaria adivinhar. A cada tentativa
abria um olho. Um declive, e o corpo era empurrado pra trás. Uma lombada, e o
pulo no acento. Nas curvas, e a cabeça pendia pro lado. Onde será que já
estaria?
O ônibus parou. Pensou, mais um
passageiro. Silêncio. Continuava de olhos fechados. De repente, sentiu algo duro,
metálico empurrando-lhe o ombro com força. E uma voz grave ordenando: Documentos!
Identifique-se! Abriu os olhos. O que viu? Um enorme olho negro, do cano de uma
espingarda calibre doze, a poucos centímetros do seu rosto. A imagem seguinte
era o rosto lívido de um homem. Era um homem pardo, barba cerrada, olhar de
poucos amigos. De colete preto. Segurava firme a arma. E repetiu a ordem:
Documentos! Identifique-se! Instintivamente buscou a carteira no bolso.
A pergunta que fazia a si mesmo
era, como podia alguém estar triste diante do mar? Véspera de natal? Ele
estava. Ficar triste não resolvia nada. Não naquele instante. O mar realmente
não revelava todo seu esplendor. Chovia. Apenas isso não era o suficiente para
se estar triste. As ondas molhadas de chuva quebravam na praia. Ininterruptas,
como se dissesse é sempre assim. O vento frio, talvez gélidos, os ossos
expostos dos lastros, das empanadas enroladas das jangadas, na areia. É triste
uma jangada parada na praia. O livro, pra não desmanchar teve que ir parar
debaixo da camisa. Os escritos virariam nada se resolvesse enfrentar a
tempestade de peito aberto. A alma encolhida dentro do peito. Amornada pela
tristeza.
A casa de Seu Joaquim, tão rude. Casa
de afagar tristeza. Não tinha um pingo de medo da chuva, do mar também não. Uma
pena, pois devia ter. Pra montanha chuvosa olhava com olhar de desdém. Pro céu
olhava como quem olha pra Deus. Com respeito, sem medo. Apenas perguntando por
quê? O farol semelhante a um Cristo, de pé, o olhar no horizonte, um monte de
esperança dentro dos olhos. Os filhos que ainda conseguia abrigar no seu seio
aguentavam trancos e barrancos. Os que um dia foram embora, um dia qualquer
voltariam. Geralmente a cada fim de ano. E fariam festa junto aos que ficaram.
Quando se foram pra cidade grande. Se arranjar na vida, lembravam-se tanto
dali. Lembrava dos que ficaram, da escola primária, dos amigos de infância. Da
areia do mar, da pesca, da chuva muito parecida com aquela. Perdera a conta das
vezes que molhara de saudade e soluços os travesseiros. Não precisavam dizer,
todos sabiam. As cartas chegavam com o papel roto, algumas palavras borradas de
lágrimas enxugadas com a barriga do braço.
Soluçava e não era gripe. A
mulher deu-lhe um unguento pra passar no peito, no nariz. Sabia aquilo jamais
resolveria. Não resolveria porque não era nada físico. Era soluço da alma. Não
existia remédio pra curar soluços da alma. Nem noite de chuva, nem raios e
trovões que acabavam causando queda de energia elétrica. Se já era triste com
energia imagine sem. Se triste era a tempestade na praia quanto mais na alma. Se
ficasse o dia, ou melhor, a noite inteira ali não teria a menor importância.
Aposentada a alma, de férias o espírito. Melhor pensar no que nunca fizera.
Pensar em como a vida as vezes pregava-nos algumas peças.
Eram seis assaltantes. O sol
presenciara tudo, sem no entanto ter participação no crime. Chegaram gritando e
atirando. Renderam o guarda logo que entraram. Tomaram uma senhora e mais
outras pessoas como reféns. Trancou todo mundo no banheiro. Detonaram os caixas
eletrônicos. A ação toda não durou mais que quinze minutos. Tempo suficiente pra chegada da polícia. A rua logo foi interditada. O trânsito
virou um caos. Carros manobrando e voando pela contramão. Logo juntou gente nas
calçadas. Muitos que iam chegando pensavam tratar-se de uma filmagem. Mas os
tiros pareciam tão reais? E eram. Um policial protegido por alguns carros
estacionados tentou chegar mais perto. Uma rajada de uma automática o fez
recuar. Um projétil passou de raspão na sua cabeça.
O natal, não era pra ser uma
festa triste. As lembranças, dos que não mais estaria entre nós. Ano passado ele,
estava tão alegre, entre nós. Lembrou do menino que nasceu naquela gruta. Tinha
um pai, uma mãe. Uma fogueira para o aquecer, o pai era catador de lixo. Vivia
de juntar recicláveis, ferros-velho. A mãe lavava roupa de ganho. O quinto
filho, acabara de nascer, naquele dezembro. Nascera no dia de natal. O pipocar
dos fogos, tão distante. Tão distante, parecia não ser logo ali no outro
bairro.
O menino perguntou ao pai, o que
o papai Noel estava fazendo deitado no meio da rua? O pai disse-lhe que estava
morto. Era um dos assaltantes ao banco. Nossa, Pai! O papai Noel virou
bandido?! Aquele sim filho. Tentou amenizar. Na verdade, ele roubou as vestes
do bom velhinho. Então, não vai ter papai Noel na noite de natal esse ano?
O quarto parecia que estava
encolhendo. Na verdade, era ele que estava crescendo. Aquela noite em especial
o quarto pareceu distorcido. As paredes, feito velas acesas, espantavam o frio,
da noite, noite feliz. Triste noite de céu chuvoso. O gato dormia. Deu um forte
vento. A sala escureceu, as velas apagaram. Teria que achar a caixa de fósforos.
Tatearia até encontrar, no escuro. E o povo? Pra onde foi todo mundo? Um vazio,
um silêncio. Ia passando alguém na rua, conversavam animadamente. Vinham duma
festa.
De onde estava dava pra ouvir o
mar. A viatura da polícia continuava parada a margem da rodovia. Já se passara
um tempão. Um eternidade, tido e detido, dentro do veículo. Ainda mais
algemado. Tempo suficiente pra pensar que perderia a noite de natal, estava
preso. Tempo pra perder a esperança de voltar logo pra casa. Tempo pra pensar
na burrada que dera. Viajar sem documentos. O ônibus àquela altura já chegara
ao destino. A polícia continuava seu trabalho. A chuva não dava trégua. Todos
os carros eram parados. Como fora esquecer os documentos em casa. Um policial
se aproximou. Acendeu um cigarro. Tentou se proteger da chuva se encostando na
lateral da viatura. Perguntou seu nome. Disse-lhe. Pela décima vez, perguntou
por que estava sem documentos. Esquecera, simplesmente. Disse que acreditava no
que dizia. Só não podia soltá-lo. Teria que levá-lo pra o distrito. Averiguar.
Registrar o ocorrido.
Parecia que nada havia que
pudesse aplacar aquela dor. Angústia. Dor que não doía. Dor que não passava. Um
aperto dentro do peito. A esmagar-lhe o coração. Demoradamente, sem pressa de
acabar. No distrito perguntaram se era “171”? “X9”? ou “Maria da Penha”?.
Pediu que não o colocasse na sela. De nada adiantou, era procedimento padrão. Por
que nem sempre acreditam no que dizemos? Mesmo que o que digamos seja a
expressão da verdade. A única
verdade. Jesus menino nascera. Uma véspera de natal preso. Uma certeza tinha.
No revellion daquele ano uma história pra lá de maluca teria pra contar.
Fabio Campos, 14 de Dezembro de
2018.
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