Angústia 3º Episódio da Série Delliriu's




O ônibus avançava na intensa avenida, sobre o asfalto molhado. Chovia. Cair de tarde de dezembro. Os prédios de apartamento, molhados, revigorados nas cores. Antes vivo do que mortos. Os faróis pelos pingos ofuscados. Os luminosos de propagandas acendiam o entardecer úmido. A cidade decorada, pro natal. Outro ponto de parada. A freada. O balão de ar esvaziando. A porta se abrindo. O rapaz, dum salto entrou. Alívio, depois de ansiosa espera. Buscou um acento, com o monobloco em movimento. Sentou-se numa poltrona do corredor. O cansaço de um dia corrido cobrava-lhe um cochilo. O corpo pedia. A mente, com tudo, não obedecia. A mente, ia revirando tudo o que havia feito naquele dia. Pensar, o impedia de relaxar. O sono reparador tão necessário, que não viria. Sabia, não viria, não conseguia dormir viajando. Olhos fechados, ao menos isso. Resolveu brincar de imaginar, onde, estaria passando a cada momento. Tentaria adivinhar. A cada tentativa abria um olho. Um declive, e o corpo era empurrado pra trás. Uma lombada, e o pulo no acento. Nas curvas, e a cabeça pendia pro lado. Onde será que já estaria? 

O ônibus parou. Pensou, mais um passageiro. Silêncio. Continuava de olhos fechados. De repente, sentiu algo duro, metálico empurrando-lhe o ombro com força. E uma voz grave ordenando: Documentos! Identifique-se! Abriu os olhos. O que viu? Um enorme olho negro, do cano de uma espingarda calibre doze, a poucos centímetros do seu rosto. A imagem seguinte era o rosto lívido de um homem. Era um homem pardo, barba cerrada, olhar de poucos amigos. De colete preto. Segurava firme a arma. E repetiu a ordem: Documentos! Identifique-se! Instintivamente buscou a carteira no bolso.

A pergunta que fazia a si mesmo era, como podia alguém estar triste diante do mar? Véspera de natal? Ele estava. Ficar triste não resolvia nada. Não naquele instante. O mar realmente não revelava todo seu esplendor. Chovia. Apenas isso não era o suficiente para se estar triste. As ondas molhadas de chuva quebravam na praia. Ininterruptas, como se dissesse é sempre assim. O vento frio, talvez gélidos, os ossos expostos dos lastros, das empanadas enroladas das jangadas, na areia. É triste uma jangada parada na praia. O livro, pra não desmanchar teve que ir parar debaixo da camisa. Os escritos virariam nada se resolvesse enfrentar a tempestade de peito aberto. A alma encolhida dentro do peito. Amornada pela tristeza.

A casa de Seu Joaquim, tão rude. Casa de afagar tristeza. Não tinha um pingo de medo da chuva, do mar também não. Uma pena, pois devia ter. Pra montanha chuvosa olhava com olhar de desdém. Pro céu olhava como quem olha pra Deus. Com respeito, sem medo. Apenas perguntando por quê? O farol semelhante a um Cristo, de pé, o olhar no horizonte, um monte de esperança dentro dos olhos. Os filhos que ainda conseguia abrigar no seu seio aguentavam trancos e barrancos. Os que um dia foram embora, um dia qualquer voltariam. Geralmente a cada fim de ano. E fariam festa junto aos que ficaram. Quando se foram pra cidade grande. Se arranjar na vida, lembravam-se tanto dali. Lembrava dos que ficaram, da escola primária, dos amigos de infância. Da areia do mar, da pesca, da chuva muito parecida com aquela. Perdera a conta das vezes que molhara de saudade e soluços os travesseiros. Não precisavam dizer, todos sabiam. As cartas chegavam com o papel roto, algumas palavras borradas de lágrimas enxugadas com a barriga do braço.

Soluçava e não era gripe. A mulher deu-lhe um unguento pra passar no peito, no nariz. Sabia aquilo jamais resolveria. Não resolveria porque não era nada físico. Era soluço da alma. Não existia remédio pra curar soluços da alma. Nem noite de chuva, nem raios e trovões que acabavam causando queda de energia elétrica. Se já era triste com energia imagine sem. Se triste era a tempestade na praia quanto mais na alma. Se ficasse o dia, ou melhor, a noite inteira ali não teria a menor importância. Aposentada a alma, de férias o espírito. Melhor pensar no que nunca fizera. Pensar em como a vida as vezes pregava-nos algumas peças.

Eram seis assaltantes. O sol presenciara tudo, sem no entanto ter participação no crime. Chegaram gritando e atirando. Renderam o guarda logo que entraram. Tomaram uma senhora e mais outras pessoas como reféns. Trancou todo mundo no banheiro. Detonaram os caixas eletrônicos. A ação toda não durou mais que quinze minutos. Tempo suficiente pra chegada da polícia. A rua logo foi interditada. O trânsito virou um caos. Carros manobrando e voando pela contramão. Logo juntou gente nas calçadas. Muitos que iam chegando pensavam tratar-se de uma filmagem. Mas os tiros pareciam tão reais? E eram. Um policial protegido por alguns carros estacionados tentou chegar mais perto. Uma rajada de uma automática o fez recuar. Um projétil passou de raspão na sua cabeça.

O natal, não era pra ser uma festa triste. As lembranças, dos que não mais estaria entre nós. Ano passado ele, estava tão alegre, entre nós. Lembrou do menino que nasceu naquela gruta. Tinha um pai, uma mãe. Uma fogueira para o aquecer, o pai era catador de lixo. Vivia de juntar recicláveis, ferros-velho. A mãe lavava roupa de ganho. O quinto filho, acabara de nascer, naquele dezembro. Nascera no dia de natal. O pipocar dos fogos, tão distante. Tão distante, parecia não ser logo ali no outro bairro.

O menino perguntou ao pai, o que o papai Noel estava fazendo deitado no meio da rua? O pai disse-lhe que estava morto. Era um dos assaltantes ao banco. Nossa, Pai! O papai Noel virou bandido?! Aquele sim filho. Tentou amenizar. Na verdade, ele roubou as vestes do bom velhinho. Então, não vai ter papai Noel na noite de natal esse ano?

O quarto parecia que estava encolhendo. Na verdade, era ele que estava crescendo. Aquela noite em especial o quarto pareceu distorcido. As paredes, feito velas acesas, espantavam o frio, da noite, noite feliz. Triste noite de céu chuvoso. O gato dormia. Deu um forte vento. A sala escureceu, as velas apagaram. Teria que achar a caixa de fósforos. Tatearia até encontrar, no escuro. E o povo? Pra onde foi todo mundo? Um vazio, um silêncio. Ia passando alguém na rua, conversavam animadamente. Vinham duma festa.

De onde estava dava pra ouvir o mar. A viatura da polícia continuava parada a margem da rodovia. Já se passara um tempão. Um eternidade, tido e detido, dentro do veículo. Ainda mais algemado. Tempo suficiente pra pensar que perderia a noite de natal, estava preso. Tempo pra perder a esperança de voltar logo pra casa. Tempo pra pensar na burrada que dera. Viajar sem documentos. O ônibus àquela altura já chegara ao destino. A polícia continuava seu trabalho. A chuva não dava trégua. Todos os carros eram parados. Como fora esquecer os documentos em casa. Um policial se aproximou. Acendeu um cigarro. Tentou se proteger da chuva se encostando na lateral da viatura. Perguntou seu nome. Disse-lhe. Pela décima vez, perguntou por que estava sem documentos. Esquecera, simplesmente. Disse que acreditava no que dizia. Só não podia soltá-lo. Teria que levá-lo pra o distrito. Averiguar. Registrar o ocorrido.

Parecia que nada havia que pudesse aplacar aquela dor. Angústia. Dor que não doía. Dor que não passava. Um aperto dentro do peito. A esmagar-lhe o coração. Demoradamente, sem pressa de acabar. No distrito perguntaram se era “171”? “X9”? ou “Maria da Penha”?. Pediu que não o colocasse na sela. De nada adiantou, era procedimento padrão. Por que nem sempre acreditam no que dizemos? Mesmo que o que digamos seja a expressão da verdade.  A única verdade. Jesus menino nascera. Uma véspera de natal preso. Uma certeza tinha. No revellion daquele ano uma história pra lá de maluca teria pra contar.

Fabio Campos, 14 de Dezembro de 2018.

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