Melancolia 4º Episódio da Série Delliru's




O menino triste. Não falava. Não conseguia falar. O menino morava na ribanceira do rio. A mãe, os irmãos pequenos, o rio. Lá embaixo, chorando baixinho. O rio nada podia fazer. Medo, não tinha, de morrer. A serra olhava com tristeza. A casa de taipa, coberta de palha, solidão. E o menino que não falava, via. Melhor dormir, o dia todo. Dormir pra enganar a fome. Brincar, dava uma fome danada. Melhor dormir. A escola, tinha gosto de comida. Os outros meninos. Encrencavam o menino que não falava. Uma preguiça. Fazer atividades. O cheiro de merenda ia lá pras salas de aula. O recreio, tão aguardado. A irmã, magra. A cabeça cheia, de nada. Cabelo ruim. O vestido roto, pequenos seios. O apelido que odiava, de longe, eles gritavam. Ah se estivesse perto... Briga, seria na certa.
  
REFLEXOS...
Finalmente, a mãe saiu da cama. Finalmente. Motivo de alegria, vê-la de pé. Indo até a cozinha, devagarinho, caminhando. Só por isso. O dia ficou diferente dos outros. Diferente de todos os outros. O passarinho urbano. Um feio, bonito. O menino que não falava. Não era triste. Nunca fora. Triste era o que o julgava triste. Assim o via, assim ficava o dia. A tristeza, olhava pra piscina. Abandonada, piscina. Tristemente sozinha piscina. Um pato amarelo, brinquedo, boiando. Outros, ao fundo melancolicamente. Moça. A revista. Outra vez, mentia. A moça, a pele molhada. A moça, poesia.

O desenho, amassado ia pro lixo. O rádio, radiando. A janela, janelando, a estrada. A estrada indo. O carro que nunca dava problemas. Pensamento, problemas. As letras quase não obedeciam. O ano acabando, A esperança acabando. O livro acabando. O caderno acabando. O dia acabando. As nuvens acabando, a água acabando. O dinheiro acabara fazia tempo. O calendário do coração de Jesus, esmagado, a parede. Um fogo só. As folhas em branco, tão duras. As folhas secas, da goiabeira, vagabundas. O pé de manga testiculando seus frutos. O céu ficou. Um céu maior. O céu pássaros, céu músicas, melancolia céu, de tantas nuvens. Almas de tantos céus. Uma para cada.

PEDAÇOS...
Se ao menos fosse setembro. De que adiantaria querer que voltasse. De nada adiantava lamentar. De nada adiantaria querer. O que jamais poderia voltar. O carro sempre vai pra frente, o dia vai pra frente, as horas iam pra frente. A praça logo ali, em frente. O banco esquelético. Cadavéricos pensamentos. Perguntar-lhe-ia fosse o que fosse. Desistira. Sobre músicas, nada tinha a discutir, aceitaria opinião. Ninguém tinha.  

As casas, quarando, o natal. As casas, paradas, meticulosamente paradas. Tão. Estúpidas em suas posturas gélidas. Maquiadas pra festa. Impávidas de nunca oportunidade. A rua desenhada, de graça. A rua apressada interrupta, abrupta findando. A rua, descaradamente, estúpida de céu, de nuvens novas. As crianças sonhavam. Brinquedos novos, brinquedos qualquer, só que novos. Os pensamentos teimavam, no velho modo de pensar. O velho a pensar. Parados, enrugados. Enrugando horas, fermentando dias. Bolorentos, lentos séculos.

Nos últimos dois mil anos, nunca Deus dissera nem um a. No entanto falava-nos todo dia. Todos os dias criando um mundo novo. A cada manhã criava. E cria. Em cada amanhecer. Nem precisaria de calendário novo. Pra quê? Se todos já sabiam o que fazer. O que iria acontecer. Aconteceria. Abruptamente, impreterivelmente. Inexplicavelmente. Chovesse ou fizesse sal. Fizesse sol. O homem do campo iria pra roça. O barbeiro pra barbearia. O menino pra escola. O carroceiro a tanger o burro. Os juízes, os seus crimes. E todos, indo pros seus afazeres como se fossem viver eternamente. Ledo engano, cedo engano. Medo, engano...

CAMINHOS...
Motivos, pra mudar de vida. Queria. Motivo pra viver. Teria. Prometeria parar de beber. Tinha que parar. Tentaria parar de fumar. Tinha que parar. Jamais fumara, por si só. Sabia, não conseguiria. Sabia, ao menos tentaria. Faria uma promessa. Algo que exigisse algum sacrifício, algo físico, que doesse. Andaria mais de trinta quilômetros. Talvez. Como naquele ano. Quem sabe a última vez, que iria até a pedra do Padre Cícero. Acenderia, outra vez, uma vela. E se o calendário acabasse, e tudo virasse pó? E cinzas. Começaria tudo de novo, do começo. Uma dieta. Faria um regime. Correria até cansar. Mesmo que no outro dia não conseguisse nem sair da cama. Precisava pra sentir o corpo. Sacudir a poeira das horas, a gordura dos dias. O mofo do tempo. O cansaço, a incerteza, a certeza. A exaustão. Cansado de certezas. Precisava cansar de incertezas. E se morresse por isso? Não poria a culpa nos médicos, nem no tênis que fez bolhas nos pés. Se morresse poria a culpa na morte, que escolheu seus melhores momentos para vir buscá-lo. Barganharia.

A HORA...
Bom dia moço. Bom dia. Quem é a senhora? A morte. E o que quer? O que acha que quero? Veio buscar-me? Isso mesmo. Mas, já? Nem vivi direito. Pois é. Tempo foi o que não lhe faltou. Pra quem tem esse nome, e carrega consigo tão infame desígnio, até que a senhora é bonita. Guarde seus elogios, meu caro. Sei muito bem quem sou. Sou tudo o que ninguém quer. Ninguém me deseja. Não, em sã consciência. Detestável, execrável. Chego trazendo a paz. Paz que ninguém deseja. “A pior vida, é melhor que a morte.” Pra me prejudicar, o diabo inventou esta frase.

DELÍRIOS...
Começaria tudo de novo, do começo. Chovesse ou fizesse sal. Ou fizesse sol. Sobre músicas, nada tinha a discutir, aceitaria o que quisesse. A moça na piscina era a professora. Tão bonita de biquíni. Pele alva, bronzeando. Os cremes cheirosos. Os protetores caros. O chapéu, a toalha colorida. Lembrou do dia que viu a irmã nua. No rio. Desceu pra tomar banho. A irmã já estava lá. Sozinha. Ao vê-lo. Com uma das mãos cobriu um dos pequenos seios. O antebraço dessa mão cobria a auréola do outro seio. A outra mão docemente sobre a púbis, quase sem pelos. Ficou agachada, quase de joelhos. A margem d’água. Falava-lhe como se estivessem no casebre.  Despiu-se, mergulhou, bem fundo.

Na noite de natal foi à casa de uns amigos. Os ânimos exaltados. As músicas natalinas afagando corações. Incentivado pelos colegas tomou um copo de vinho. Até então jamais havia provado bebida alguma. O peito se aqueceu. A cabeça leve, levou-o as alturas. Sinos soavam tão longe. As estrelas pisca-piscavam. Os piscas-piscas estrelando. A noite lilás-rubro-lilás. Os faróis dos carros lançavam jatos de cor, todas, sobre o asfalto. A pista um arco-íris cintilante. Saíra sem ninguém perceber. Andou, andou até se cansar. Entrou no mato. Apesar de conhecer o caminho, várias vezes, tropeçou. Caiu na ribanceira, desacordou. 

O menino triste que não falava, porém em vingança pensava. O menino, a ribanceira do rio. A mãe, os irmãos pequenos. Chorava. Chovia baixinho. Balbuciou, o rio, nada poderia fazer. Medo da morte, já não tinha. Alguém ia ter que pagar. A casa de taipa, coberta de palha, e pronto. Chovia, o coração do menino. Por que faziam isso comigo? Melhor dormir. Dormir e sonhar com um mundo limpo de apelidos. Melhor dormir. Os colegas do menino precisavam duma lição.  A irmã, magra, o pichaim preso num laço. Os pequenos seios. O apelido que tanto odiava. Se perto estivesse de um deles enfiaria a faca no bucho. Disse isso, a si mesmo, com tanta força que cortou o próprio pulso. Sangue, sala de aula. Sangue...

Fabio Campos, 21 de dezembro de 2018.

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