Capítulo 1: Mordida
de Cachorro Doido
O dia amanheceu, vermelho nos
olhos, por uma noite em claro. Azul nos lábios, de frio. O homem de rosto
largo, tez pálida, cabelos revoltos. Andava como quem mancava. Como se o vento o desequilibrasse. Um cão
negro, de rua, na calçada. Seguia-o de
longe. Quer saber, seus espíritos não se
agradavam um do outro. Cada um, do seu jeito. Os pés do homem doíam, mas era
apenas dor na mente. O que sentia não era só na carne. Era consciência. Cada passo
uma tentativa de não afundar num solo movediço imaginável, de lava vulcânica
inimaginável. A pele debaixo dos pés como se soltasse sangrando. De longe viu.
Uma casa velha, de dois
pavimentos. Sustinha-se pelas casas vizinhas. A pintura pastel, bem gasta,
bolorenta. Tudo tão inóspito, de cidade feia, como se desabitada,
fantasmagórica. As vidas escondiam-se do frio. No andar de cima morava uma
moça. Uma pequena cactácea num vaso de
cerâmica no batente. Desnecessitada de água, ainda mais no inverno. Todos os
dias conversavam. Toda tristeza que tinham compartilhavam. Se entristeciam
juntas. Desenverdeava-se devagar. Tinha um gato branco chamado Brown, e Júlia
de seis anos. Se ao menos o teto não tivesse tão estragado. Apostava que não
suportaria mais um inverno. O céu diluído numa trilha sonora muda, grito
interrompido. Velha película de faroeste mexicano de tão gasta estremecia as
coisas. Ameaçava fechar a plena escuridão. Como se tudo fosse se acabar num
segundo. O que existia era um ódio, alimentado pelos irmãos. Muitas coisas precisavam ser
esclarecidas. Ódio puro era insano. Ódio por vingança seria racional.
Quem quisesse se enganar se enganasse.
O mundo que o homem construíra e carregava consigo era estranho. Olhava com
olhos de chumbo. Nada queria ver de outra cor. Se quisesse poderia se pensar
que era normal. Também o ódio que tinha estava no cachorro. Ódio por ter vindo
ao mundo como cão de rua, vagante, sem dono, faminto. Porque todos o desprezavam.
Quando queria, ficava estátua, imóvel. As
patas pareciam normais. Apenas pareciam.
Escondiam garras capazes de destroçar um braço humano com a violência que
guardava no coração, se atacasse. E teve o dia que atacou, pegou-o
desprevenido. Traiçoeiro que era. Abocanhou-lhe a perna estraçalhando parte da
panturrilha. As marcas dos dentes fizeram feridas profundas. Dilacerou alguns
vasos. O que daria da parte dele ainda mais ódio aos caninos. Ódio de homem
para com um cão. Mais ainda do cão para
com o homem. Nunca mais, nem o cão nem o homem seriam o mesmo. O caminhar não seria
o mesmo. E não mais se livraram um do outro. Naquele dia ao deitar-se teve
alucinações, sentiu febre calafrios, ânsia de vômito, dor de cabeça. Sonhou
sonho de cachorro doido. O manto negro da noite sustentava uma lua enorme. Tudo
aquilo devia ter uma explicação. Ninguém era obrigado a entender as coisas
assim de primeira. Puras, do jeito que se apresentavam. Era preciso dar tempo
ao tempo.
Kira parou no lado oposto da
esquina, também o cão negro. Frio, a soltarem fumaça pela respiração. O focinho
gelado. Congelando, azulando. As mãos dentro do casaco aveludado tocavam o maço
de cigarros, a caixa de fósforos. Acariciava-os como a um rosto de mulher. O
céu desenhado de cinza, borrado. Sujo de pensamentos, de fumaça de cigarro.
Tão, a ponto de botar mofo na alma. Alguém precisava explicar o que significava
aquele corpo, debaixo da escada, que dava pro andar de cima. Era corpo de
mulher, vestida numa saia xadrez, vermelho e preto. Um casaco amarelo abóbora. Cachecol e gorro. Dormia ou estava morta de
frio? Loredana tivera uma infância conturbada, filha de pais separados. Só
restara a rua para sobreviver. Sozinha feito cão sem dono. Ser sozinha, viver sozinha, decisão que não se
tomava só. Não achava oportuno, mas os pensamentos vinham. O povo de Ishikawa
caminhando sobre o lago gelado. Partiram pra nunca mais. Não sabiam, que nunca
mais voltariam. Aquilo ficara marcado na alma. Jamais esqueceria. Fugir, fugir,
até quando? O tempo era o melhor aliado. Pensar em um dia ensolarado, uma bela
amanhã, mesmo quando tudo se fazia sombrio, não tinha certeza, mas parecia que ajudava.
Se não quebrassem com tanta
violência às ondas no cais. Pensamentos tristes, com cheiro de maresia e muita
vontade de não estar lá. Queria saber por que a beira do mar no inverno ficava
tão triste. Tudo estupidamente molhado. Dentro e fora do mar. Molhados os olhos
de sal, e tristeza. Estivadores no cais do porto empilhavam caixotes com raiva.
Temporal embota as almas. Policiais no quarteirão a diante interpelavam
motoristas. Se os pássaros soubessem quão importante era voar. As chaminés das
casas fumavam, preguiçosamente. Marinheiros indo pro bar, à porta ambulantes, com
seus carrinhos e campainhas. Debaixo de sombrinhas descoloridamente gastas,
congelavam. Na praça arbustos sem saber, escondiam esquilos que jamais apareceriam
na tela que os pintores fariam quando fosse verão. Os barcos enfileirados
pareciam soldados inexoravelmente quietos, aguardando a ordem pra avançar.
Quantos deles partiram, sem saber que jamais voltariam.
Belion o grego, jamais teve
vontade de possuir um cão. O que o incomodava neles era os pelos, o focinho
frio, a saliva, o olhar, o pensar inquisidor, a cobrança de atenção, a
dependência. O tempo de vida exíguo em relação à gente. Talvez nesse último quesito
estivesse enganado. Tudo enfim, neles e deles, incomodava-o. Molina, sua filha que
nem tempo era pra se dizer nada a seu respeito. Não fosse o fato de
ter lábios, unhas e a íris dos olhos de pura prata. Rosto ossudo, um quê de rebeldia
nos traços. Uma revolta antiga que lhe embotava o falar, desconcertava as
sobrancelhas, apunhalava qualquer voz. A pele de urso no casaco do qual nunca
se separava, chovesse ou fizesse sol, dava-lhe ar selvagem, indomável. Ainda
mais no inverno. Tudo que Bel fizera nos últimos seis anos fora em função da
única filha.
Agabeon descia pela ladeira da
rua do mercado, fatalmente passaria na mercearia do Alemão. Tomaria uma cerveja
ainda que criasse gelo na caneca. Sherman o irlandês, como sempre o provocaria. O dia
anterior devia fixar-se com tudo o que acontecera, mas nem todos são éticos com
relação a isso. Tudo assim muito parado, significava exatamente que algo muito
grave estava pra acontecer. O falcão alçou vôo. Isso talvez explicasse alguma coisa.
O combate foi inevitável. Começou
assim, o homem com cara de cachorro, se apossou de um machado do taberneiro e
partiu com tudo contra o gigante que tinha características de criança. Uma
espécie de menino gigante. Tinha a cabeça ligeiramente desproporcional ao
corpo. A pele destituída de pelos, musculatura com pregas nas articulações.
Apesar da aparência infante era bravo, muito violento. Isso ficou evidente ao
se chocarem. O homem da cabeça de cachorro deu uma mordida no ombro do gigante menino,
que reagiu atirando-o contra a casa da esquina, abrindo um imenso buraco. A
briga dos titãs estava só começando. Prometia causar muito estrago. O machado
girou no ar, sem conseguir, no entanto, atingir o seu intento que era abrir o
menino ao meio. Foi bater no corrimão da escada que dava acesso ao pavimento
superior destruindo-o. Num salto ágil o bebezão com cara de mau alcançou o teto
da construção quase destruída. O cara de cachorro foi em seu encalço. Um
princípio de incêndio se fez dentro dos cômodos. Fogo e fumaça eram o que
faltava. Pronto, a catástrofe estava completa.
Fabio Campos, 16 de junho de 2019.
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