CAPITULO 6 ÓDIO Da Saga de Kira






O cachorro continuava seguindo Kira, que detestava sua companhia. Ambos detestavam-se. Parecia sua própria consciência, ali, o tempo todo acusando. Cobrando atitudes, omissões, negações, afirmações, desvarios.  Jamais esqueceria o que acontecera, entre os dois. Tinha certeza que o cão o entendia. Pior, achava que lia seus pensamentos. Como podia ser irracional possuir tal poder? Mas isso ficava muito evidente, na forma de agir de olhar. Como se entendesse quando estava feliz, quando triste, e na maioria das vezes estava. E mesmo sob a euforia do uso do álcool. Quando dividiam brincadeiras, raramente, mas ocorriam. Jogava algum objeto pra que fosse apanhar. A mordida, no entanto, jamais esquecera. Perguntava-se por que já não dera fim a ele? Oportunidade de pegá-lo de surpresa tivera, mais de uma vez. Nas noites frias, em que se achegava mais perto, angariando um pouco de calor. Tinha pena de matá-lo, ainda mais por traição. A solidão, o frio, a fome aproximava, um ao outro. A vida igual, cães de rua. Os sofrimentos compartilhados. O cão fitava-o. Como quem dizia: Eu sei o que você está pensando. Das suas angústias, conheço seu passado. O quanto o odiava. O quanto odiava, a si mesmo, por odiar um cão. Sabia exatamente o que estava pensando naquele exato momento. Talvez que noutra vida um fosse o outro. Quem sabe fossem um único. Reflexo um do outro. Talvez um deles nem existisse. O cão negro que o seguia não existiria? Nunca levara uma mordida. Claro que levara a cicatriz estava ali pra não deixar dúvida. Kira era fruto da imaginação de um cão.

No vale tenebroso dos sentimentos, tudo seria revelado. Entender por que tanto ódio no coração. Odiava o cão. Odiava o pai. E os irmãos, que sentimento nutria por eles? Amava-os? Talvez tivesse esse sentimento para com eles. Buscaria incessantemente encontrá-los. Talvez não tivesse motivo para odiá-los. Porém a recíproca podia não ser verdadeira. Talvez nem fizesse conta de sua existência. De repente a irmã de Kira apareceu-lhe. Lá estava na sua frente. Formosa, a pele alva resplandecendo como neve. Aquela pele. Seria natural aquela névoa ? Não seria um holograma? Uma aura emanava de seu corpo. Como envolta de luz, diáfana. Os cabelos ruivos. Os pelos do braço alvos, quase que eriçados. Seu colo, magnífico. As auréolas de seus seios deveriam ser róseos. Bem como os lábios vaginais. Suas nádegas, na certa seria coberta por uma penugem fina de seda. Vestia um vestido branco, leve, vaporoso. Imaginou-a nua, sentada numa cama de realeza. Tudo revestido de sedas finas, caríssimas. Sua irmã vivera vida de princesa?

O ódio era uma carruagem de fogo. Cavalos de labaredas, carroça flamejante. Ventas de fúrias, patas dianteiras empinadas. Sobre a carruagem repousava um guerreiro da cabeça de touro, olhos de fogo. Uma argola vazava as duas narinas. Portava um cetro de ouro incandescente encimada por uma tocha acesa, cujo fogo tinha a consistência de larva. Cumprimentou Kira com reverência e iniciou a inquisição. Disse: vejo sua alma. Nela há manchas que me pertencem. Você terá agora a oportunidade de devolver-me o que é meu. Do contrário tomar mais do que tenho e deixar-se seduzir-se totalmente. E pertencer-me para sempre. 
Comecemos pelo cão que lhe acompanha. É um discípulo meu. Enviei-o para admoestá-lo e ver como reagia. Você não o odeia, detesta-o. A diferença é que, como você se identifica muito com ele, cria essa aversão. Uma negação de si mesmo. Vamos juntos ver outros momentos em que estive presente na sua vida. Todas as brigas, contendas e discussões acirradas seu coração evocou-me. Lembra que você bateu no seu irmão caçula, Por algo tão insignificante. Só porque a criança mexeu nos seus pertences mais queridos. Também quando brigou com outro irmão. Briga de verdade. Porque ele disse-lhe algo que feriu seus brios. Ninguém gosta de ser chamado de covarde. Talvez ele não tivesse razão. Mas você poderia optar em manter o controle emocional, não o fez. Poderia ter havido morte. Mas o seu anjo da guarda interferiu em seu favor. Nas vezes que matou em combate, esses casos não vou levar em consideração. Faz parte da vida, fui usado pela sobrevivência. A famosa legítima defesa. Quero ater-me as vezes que requisitou meus préstimos de modo arbitrário, para algo mal contra alguém de forma covarde, quando poderia evitar. A seu favor tem a premissa de nunca ter se enfurecido contra seus pais. Sempre os respeitou. A história de que o homem é um momento, é de fato uma grande verdade. Mas justo no limiar da raiva, irmã do ódio. É o momento que se tem o poder de se decidir pela calma, irmã da serenidade. O livre arbítrio foi dado ao homem para ele o exercer. O ideal é optar pela serenidade, e agir com justeza. Ou caso contrário perde-se a razão e o controle, opta-se por deixar-se seduzir mim. O ódio recolheu-se para avaliar as atitudes de Kira. Quando voltasse seria pra dar o veredicto.

Fabio Campos, 20 de Julho de 2019.


POESIA:       MADRUGADA

JÁ É NOITE ALTA
CONVERSAS, ALGAZARRAS E FARRAS
VÃO SE INDO...
SERESTA, SERESTEIRO E CANSAÇO...
VÃO DORMIR
TODOS DORMEM
A RUA DORME, A NOITE DORME
CIDADE NO SILÊNCIO DA NOITE...
NAS PRAÇAS, NOS BECOS ESCUROS
DE BAIXO DO POSTE MAL ILUMINADO
QUIETUDE SEPULCRAL
SOB O LUAR, O LOBO UIVA PARA O ALÉM
ALÉM DAS MONTANHAS
GROTESCAS SOMBRAS
SOB A LUZ FROUXA DO LUAR
DESFILAM NESSE LUAR
SINISTRO CORTEJO DE MORCEGOS
DEBAIXO DO SERENO DA MADRUGADA
VAI DORMINDO NOITE A FORA
A PAZ, A DESILUSÃO, O SILÊNCIO
SILÊNCIO QUEBRADO, CORTADO
APENAS PELO ESTRIDENTE MAU AGOURO
DA CORUJA
NA IMENSIDÃO DA NOITE
IMPACIENTE DO GALO
A RECLAMAR O AMANHECER
QUE NÃO VEM...
TUDO DORME...
EM ALGUM LUGAR A ERMO, A ESMO.
CÁ ESTOU...
A MERCÊ DO DESTINO
DESTINO INANIMADO ADMIRÁVEL!
DA MADRUGADA 
SOLIDÃO.

Fabio Campos, poesia concebida em: 16 de junho de 1978


    

Nenhum comentário:

Postar um comentário