Capítulo 10 VAIDADE Saga de KIRA














A pior coisa que poderia acontecer. Creio que, o pior castigo, para um ser humano, perder a alma. Se isso acontecesse. Surgiria uma questão, tentaria descobrir: Pra onde teria ido a alma?  Se acaso tivesse ido habitar o corpo de um animal, daria pra considerar que era o fim. Não haveria coisa pior que estar com a alma e o espírito aprisionado ao corpo de um animal, irracional. E Kira estava. Só faltava uma coisa, perder a consciência. Quer saber? Preferia que acontecesse isso. Pelo menos inconsciente não sofreria tanto. Lembrou que na vida já encontrara tantos animais que achava tão familiar. Pior, achava parecido fisicamente, e mesmo espiritualmente com um amigo que não via a muito tempo. Quem sabe aquele amigo nem existisse mais nesse plano. Isso acontecia, toda vez que estava na pia, a lavrar os pratos. Fausto e Verônica,  apareciam. Primeiro vinha um, depois o outro, surgiam parados e ficavam olhando pra Kira, através da vidraça da janela. Sérios, calados. Parecia um daqueles quadros antigos que se mandava fazer do casal, marido e mulher, na parede da sala das casas. E ficavam calados, apenas olhando. Lá vinha Samuel, com sua morenidade adquirida do mar. Aparecia no meio da rua, vinha e vinha. Trazia algo na mão que a claridão do sol, não dava pra definir bem o que era. Arriscaria dizer que era um fruto do mar. Se encostava na parede do oitão de casa, uma das pernas, a esquerda, dobrava, e encostava a planta do pé no muro, passava um tempão assim.  Não tão sério quanto Fausto, mas também fitava o rosto de Kira.

Amanhecera com saudade do rio de sua infância. Quão bom lembrar, das águas salubres, cor de vinagre no tempo da seca, o azinhavre nas pedras fazendo marca, dia a dia, uma linha na pedra. O rio ficando tão magro que dava dó. Parecia que ia desaparecer. Perdia um braço aqui, uma perna ali, mesmo assim sobreviveria. A pedra da caveira, o nome tatuado se perderia no tempo. Água mole em pedra dura tanto bate até que nunca mais. Apenas apagava na pedra, não na memória. Os amigos de Kira escalavam montanhas, fugiam de nativos selvagens que caçavam na floresta. Livravam-se de ataques de tigres de sabre, de serpentes gigantes, de abutres que se sentiam ameaçados pelas suas aproximações. Do ataque de crocodilos, e outros dragões aquáticos. Safaram-se de tantos e sérios apuros. E hoje como riam de suas aventuras. A maioria deles partira pra longe. Talvez habitassem o templo de Ishikawa. Para além do deserto do diabo. Fazia tanto tempo que talvez se voltassem a se ver, velhos amigos, não se reconheceriam mais. 

O tempo muda tudo. Os cabelos perderam o vigor, a vitalidade. O negrume que tinha. De prata, prateando-se até adquirir a alvura da neve. A pele perdendo elasticidade, adquirindo marcas que mudavam suas fisionomias antes tão jovem. A boca arqueando, adquirindo dois profundos sulcos, nascidos ao lado do nariz, como se colocasse a boca entre parenteses. E todas as coisas que Kira dissesse dali pra frente seriam frases dentro de parenteses. E seriam coisas de outros tempos, o que acabava deixando tudo envolta tão triste. Os olhos, somente eles permaneciam inalterados. Com algumas rugas era fato, algumas camadas de pele a mais, porém na opacidade bem escondida do mundo a vivacidade de outros tempos permanecia neles.

A ponte continuava lá. Solitária, nostálgica. Tristemente acenando. Ainda a mesma de meio século atrás. A música com seu poder imensurável de trazer tempos passados. Outro mistério, músicas que vinham pros ouvidos de muito tempo passado, sem que tivesse sendo executada. Estava lá, dentro da cabeça. Dava para ouvir perfeitamente. Talvez fossem as únicas coisas que dariam pra trazer do passado: A ponte, a música. As nuvens, aquelas jamais seriam as mesmas. Kira vagava em pensamentos, velhos. E mesmo pensou que poderia reconstituir alguns momentos, que a muito se foram. Vestiria uma roupa daquele tempo. Uma calça de fio escócia, como as dos cavaleiros medievais, que colavam no corpo enaltecendo o sexo. Tudo faria pra dar mais autenticidade a cena. As armas, os inimigos selvagens. Tudo pareceria como antes. Algumas coisas porém, jamais poderiam ser reconstituídas. Umas sim, outras não.

Jamais saberia explicar o que aquele lugar tinha de especial que tanto lhe atraia, exercendo poder mágico sobre ele. O mais interessante era, que não tinha consciência disso. Não quando  estava lá. Somente quando estava longe, noutro lugar, era que percebia. Jamais no momento que lá se encontrava. Tantas vez passara ali, e sentira. Mas não sabia o que era. Dali por diante, tentaria entender porque ao chegar ali, sentia o que sentia. 

As corredeiras de água inexistente. Dava, no entanto, pra ouvir o chuá-chuá batendo contra as pedras. Parecendo uma mulher cantando, seu canto lamento, quase choro, de lavadeira. Talvez quem sabe talvez estivesse tendo múltiplos orgasmos. As fissuras nas pedras lembrando sensual vagina, aqui uma, outra ali. Centenas delas, urinando com seu ruído característico. Lembrou de um dia, em que se despiu e entrou no lago. Um corpo em êxtase. Se entregando a natureza. Aceitando ser por ela amado. Tantos orgasmos. Amor transcendental numa tão bela tarde dominical. A brisa tocando-lhe, lambendo seu corpo em partes que se tivesse vestido jamais sentiria. Um deus grego, se entregando aos prazeres do cosmo, do universo. E pedindo perdão ao universo por tão grandiosa pretensão, de fazer amor com ele. Sublime encontro de semi divindade com o cosmo, com a natureza. As ninfas iam, aos poucos, chegando, sobrevoando, feito vaga-lumes pairavam no ar, observavam o fausto, e riam de sua ingenuidade.

A menina disse: odeio. Não sabia, mas era pura vaidade. Odiava, vaidava, considerou a todos um bando de hipócritas. Se soubesse também odiar-se-ia. Melhor não saber. Discutiu com o universo. Não tinha papo pra gente, por mais normal que parecesse. A irmã de Kira que sequer sabia que era. Achou-se agressivo, terrivelmente violento. Chato, ser o que se era. Dali por diante rompidos estariam todos laços afetivos. Todas as relações desmanchadas. Um cão que não consegue demonstrar seus sentimentos, age com a única coisa que lhes resta, a agressividade: e mordeu forte. Alianças rompidas, pactos desfeitos. Nada parecia ter mais sentido, dali pra frente. Somente o lago, parecia de verdade. Talvez as montanhas, também. Em duas tonalidades, as mais perto verdes, as mais longínquas azuis. Aquele seu azul enganoso céu. Faria questão de não acreditar, nunca mais, nele. Traiçoeiro, sempre. Foi a praça, mas sabia quanta decepção ali habitava. Escuridão de gente, escuridão de crianças, escuridão, vindo de dentro de si mesmo.  


A vaidade era uma linda moça. Em estado natural. Nua, verdadeira, real. Rainha vaidade. Não sabia se teria condições de descrevê-la. A cútis finíssima, o cheiro de talco, de criança de colo. O morno de seu sexo ainda em penugem pueril. Os seios vistosos e voluptuosos como se feitos de pura liberdade, falsa liberdade que inventara pra si mesma. Como a inocência de um menino, que portava uma pistola municiada, e apontava a esmo. Pra onde apontava as pessoas se esquivavam, deitavam instintivamente no chão, colocando a todos em pânico. Noção nenhuma, tinha o menino, do mal que poderia causar a si mesmo, a um ente querido. Aquele corpo tão belo. Tão desejado. Talvez passasse a acreditar que existia, se conseguisse tocar. Sentir a maciez daquela pele, o perfume. Quanto mais ia atrás, mais embriagava-se. Quanto mais parecia que ia alcançar mais fugia. Melhor não encará-la. Isso poderia custar uma vida. 

17 de Agosto de 2019.  


POESIA:          PRAÇA

                                    I
É NA PRAÇA ONDE VELHOS FICAM
SENTADOS A RECORDAR O PASSADO
ONDE PÁSSAROS PODEM CANTAR
APAIXONADOS ESTÃO A NAMORAR
     

                                 II
NA PRAÇA AS FESTAS 
SÃO MAIS ANIMADAS
FICA TODA ORNAMENTADA
EM HOMENAGENS
REÚNE A RAPAZIADA


                          III
É ONDE ESTÁ O CAMELÔ
O SAPATEIRO, O ENGRAXATE, 
UM DISCURSO POLÍTICO
O GAZETEIRO, UM CICERONE
O PIPOQUEIRO

                         IV
UMA PAISAGEM PRA 
TIRAR UMAS FOTOS
ONDE ESTÁ A ESTÁTUA 
DUM VULTO HISTÓRICO
MELHOR LOCAL PRA MEDITAR


                         V
PRAÇA, PONTO VERDE
ÉS UM OÁSIS NESSE DESERTO
DE CONCRETO E CIMENTO ARMADO


Fabio Campos, POESIA DE QUARENTA ANOS DE FEITA: 22 de junho de 1978.







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