
Kira estava ali, além da cancela, da chácara do senhor Pero Di Carriglio. Na verdade seu pai, Seu Teoton, desertor das tropas federais. Fugira pra muito longe, mudara de nome nas novas terras, de além deserto da ilha de Ishikawa. Kira lá fora, além da cerca, preso ao corpo de um cão faminto, que inutilmente insistia seguir um homem. O pai não reconheceu o filho. Não era de se admirar, foram tantos anos distante um do outro. Além do que Kira não estava em seu próprio corpo, e sim no cão que ficara lá fora. Os olhos, eles são que nos identificam. A idade vai chegando, no entanto os olhos não mudam, em essência. Kira mesmo dizia, se quisermos reconhecer alguém olhe-a nos olhos. Jamais mudamos os olhos. Seu Teoton mudara muito em aparência e atitudes. Os bens, as posses adquiridas nas minas de ouro, deixaram-no soberbo. Olhava pras pessoas com certo desprezo. Sequer olhava nos olhos. Só via o exterior, a aparência, as posses era o que para ele contava. E aquele homem a sua frente não passava de um mendigo, digno de pena. Nem lembrava mais que um dia fora pobre, que tivera com de dona Morgana, sua antiga esposa treze filhos. Kira ficara encantado com a moça que viu no pomar da chácara. Seria sua irmã?
Senhor Carriglio ofereceu
aposentos ao estrangeiro, que devolvera seu alforje, cheio de dinheiro. Levou o
moço pra conhecer a chácara. Era uma bela propriedade rural. No entorno da casa
em estilo colonial havia muitos pés de frutas. À medida que iam se afastando os
verdes prados, às campinas que se estendiam até o pé da serra. Um cercado com
um rebanho de ovelhas de lã branquinha. Um imenso paiol, aberto. Um potente
trator e outras máquinas agrícolas. Ao fundo um estoque considerável de sacas
de adubos e fertilizantes. Ao fundo da casa grande, muitos pés de fruteiras,
algumas máquinas colhedeiras. Sacas cheias de laranjas. Aguardavam prontas para
seguir pro mercado. Num pequeno declive ficava o estábulo, onde descansavam
magníficos cavalos, puro-sangue. Senhor Carriglio deu ordem ao tratador para
colocar arreios em dois animais. O dono
da chácara queria que o estrangeiro conhecesse sua chácara, era questão de
honra. Fazia isso com todos que o visitavam. Tinha orgulho do que possuía.
Sabia valorizar tudo que conquistara, com tanta dedicação e trabalho. Mas
também ao custo de muito sangue e suor de trabalhadores explorados, maus
remunerados alguns até mesmo escravizados. Em qualquer parte do mundo, será
sempre assim. Onde grandes fortunas, grandes impérios foram erguidos, houve a
exploração, o sacrifício de muitos para o deleite, para proveito de alguns
poucos. E foram, a cavalo, passar pelos
vales e campinas da magnífica propriedade. A cada local que passavam havia trabalhadores
exercendo suas funções agropastoris. Trabalhadores braçais, suando a camisa na
lida com a tosquia das ovelhas. Um grupo de homens e mulheres na colheita de
frutas, em vestes que lhes cobria todo o corpo, braços e pernas, com imensos
chapéus de palha. Deixava a mostra apenas o rosto.
Kira, da cancela, com seus
latidos que mais parecia um lamento, um choro, conseguira chamar atenção da
moça, que teve dó do cão. Imaginou-o esquecido pelo dono que podia ser o
estrangeiro visitante da chácara. Resolveu dar-lhe atenção. Trouxe-o para
dentro, dedicou-lhe cuidados. Deu banho, alimentou-o. A moça muito delicada
dedicou seu carinho e atenção ao pobre cão. Conversou até com ele, como se
fosse uma pessoa. E era. Perguntava onde
andara aquele tempo todo. E como teve pena, do estado em que se encontrava. Cuidou
de pequenos ferimentos, cortou-lhes as unhas, observou se estava parasitado de
pulgas. Verificou orelhas, olhos, dentes, sexo e patas. Dava pra ver, das duas
uma, ou a moça já possuíra um cão. Ou tinha formação, pois cuidava do bicho com
conhecimento de causa. Aguardou o retorno do pai e do visitante pra dizer o que
fizera.
Soberba
A soberba era um grade urso polar, de corpo transparente, todo de cristal, como em estado de plasma. O monstro do gelo, e de gelo,
mostrou os dentes. Os pequenos olhos de pura empáfia. Onde pisava o solo congelava.
Encheu o ar do cheiro de óleo de essências aromáticas de cemitério. Sem abrir a
boca falou pra Kira. Dando-lhe um verdadeiro abraço de urso. Seus rins sentiram
a pressão, e reclamaram. A soberba não tem pena de ninguém. Só que mostra a
força que possui de si mesma. Não gostava, odiava os seres que considerava inferior,
só respeita quem era mais poderosa que ela. A falsidade habitava seu coração.
Kira, pensou, desta vez vou morrer. O abraço pressionava suas narinas contra os
pelos de gelo do urso. Os rins a ponto de explodir. A bile queimando os
intestinos. A pressão não o permitia respirar. Ia vomitar. Ora não tinha sequer
o que expelir. Entrando no seu pensamento a Soberba conversou com ele. Na verdade
não era bem uma conversa, e sim um monólogo. Kira não tinha forças, nem
disposição pra perguntar nada, pra questionar o que quer que fosse. Não tinha
mesmo o que dizer. Kira desfalecia. Tenho pena de você. Você não merece minha piedade.
O que sinto por você é puro desprezo. Seres inferiores, feito você, por certo
existem para que possamos exercer nosso soberano prazer de soberbo. O que seria
de nós se não fosse seres insignificantes feitos vocês? É preciso que pessoas
como você existam para dar sentido ao nosso existir enquanto soberbo. Nosso
propósito mais nobre de dizer o quanto suas insignificâncias nos realizam. Uma
vez que você existe, eu rei da soberbia, bem como meus súditos nos realizamos.
Só por isso, não vou liquidar com você, Pois seria um ignóbil a menos para
nossa realização. Deixá-lo viver e continuar seguindo seu desprezível destino,
para deleite dos soberbos que deliciosamente cruzarem seu caminho.
10 de junho de 2019.
POESIA: NA FEIRA
NA FEIRA TEM GENTE
COMO FORMIGA NO FORMIGUEIRO
UNS COM INTUÍTO DE GASTAR
OUTROS DE GANHAR DINHEIRO
MENINO QUE CHORA
É MÃE QUE ACALANTA
O CEGO A ESMOLAR
E A HORA DA JANTA
DINHEIRO NO BOLSO
GORJETA PRA SANTA
CHAPÉU DE PALHA
VELHA CACHIMBEIRA
CORDA E ARAME
NO MEIO DA FEIRA
REMÉDIO BARATO
CURANDEIRO SABIDO
REMÉDIO EFICAZ
PRA MATUTO ILUDIDO
CANTADOR DE VIOLA
BÊBADO E CONVERSA MOLE
MATEU E REIZADO
TAMBÉM É FOLCLORE
FOTÓGRAFO LAMBE-LAMBE
AS FOTOS SAEM BOAS
NÃO HÁ QUEM RECLAME
TEM COISA NA FEIRA
QUE DIVERTE A VIDA
COMIDA BARATA
QUE ENCHE A BARRIGA
BATATA E INHAME
JACA E MAMÃO
BOLO E CANJICA
DINHEIRO NA MÃO
COMPRANDO NA FEIRA
FARINHA E FEIJÃO
CHEGANDO EM QUALQUER LUGAR
SEM NENHUM VINTÉM
VÁ LOGO PRA FEIRA
QUE VOCÊ SE DÁ BEM
COMO ADIVINHO
OU POETA VAQUEIRO
CHARLATÃO E AMBULANTE
TUDO DÁ DINHEIRO
SÓ NÃO VÁ DAR UMA DE LADRÃO
POIS SE FOR PEGO
VAI PARAR NA PRISÃO!
Poesia de 40 anos de feita, exatamente em: 21 de Junho de 1978.
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