Capítulo 8 Orgulho Da Saga de Kira

     





Kira acordou. Percebeu-se deitado no chão duro, frio. Abriu os olhos. Do seu campo de visão, tudo parecia tão gigante. De tantas experiências como aquela, a muito, acabara criando um conceito: Pra quem está no chão, literalmente, o mundo parecia bem maior do que era. Sentiu-se mais peludo que o normal. Algo estranho estava lhe acontecendo. Tentou levantar-se. Percebeu que ao invés de braços e mãos tinha patas. Patas? Sim. E de cachorro! Isso mesmo. Olhou pra si mesmo. E só então entendeu. Como podia? Havia se transformado num cão. Odioso cão sarnento. Quase desmaiou, novamente. Ao perceber seu corpo, ele próprio. Logo ali à frente, de pé. Pior, foi descobrir que o humano que antes fora, sequer fazia conta do ocorrido! Sua alma, seu espírito, seu estado de consciência, subconsciência e ciência. Passara ao corpo dum cachorro? Pra completar Kira, percebeu que havia incorporado o cão pulguento que a vida inteira o seguiu. Perguntou-se: o contrário também não teria acontecido? O espírito do cão teria passado pro seu corpo? Teve impulsos de avançar em direção a ele mesmo. No entanto o homem cujo corpo um dia lhe pertencera, agora possuído pelo cão, o rejeitou! Sim, simplesmente foi enxotado! Ameaça de chutes, enxurrada de imprecações, foi desprezado! Do mesmo jeito que ele próprio fazia com o cão. Pensou: Mas, quanta audácia do homem-cachorro! Ou seria cachorro-homem? Quem sabe não seria revanche. Provou o gosto amargo da vingança. Sentiu na pele. Quer dizer, nos pelos, o que sempre fizera com o maldito cão. O mesmo, que o seguira pela vida inteira.

Orgulho ferido. Como doía agora. Concluiu que nada podia fazer. Era, dali pra frente aprender a lidar com a situação. Precisaria aprender algumas coisas que um cão de rua precisava saber. Não seria de todo difícil, afinal um vagabundo carrega consigo experiências úteis não importando em que corpo o espírito estivesse. Teria que lidar com habilidades que todo cães possuíam, porém não tinha ideia da dimensão. Por exemplo, o faro muito mais apurado. O cheiro de comida, vindo importunar, com muita ênfase, os apetites de um cão faminto. O mau-cheiro das latas de lixo, dos esgotos tão próximos das narinas causava-lhes náuseas. E se tivesse sede? E estava. Disse pra si mesmo que jamais beberia água da sarjeta. Ficaria sem beber. Só mataria a sede se encontrasse, ao menos, uma poça d’água da chuva, ou quiçá uma torneira de jardim aberta. Outra coisa que, enquanto fosse cachorro, não faria, ao encontrar outro cão jamais cheiraria o traseiro ou seu sexo. Nem aceitaria que cheirassem o seu. Não exatamente dele, na verdade, do cão que ora seu espírito habitava. Precisava treinar, se apropriar dos mecanismos de defesa. Os dentes, as garras, a capacidade do salto, da carreira, da fuga, o rosnado, os tipos de latido pra cada situação.  Onde e como fazer as necessidades. Nada fácil ser cão. A capacidade de perceber o feromônio de uma cadela no cio a quilômetros de distância. Os sons inaudíveis pelos humanos. A visão monocromática. O cheiro de urina de outros cães que marcavam territórios.  A cada rua uma ameaça contra a vida. A habilidade de escapar de morrer atropelado. Pisoteado pelas charretes, pelos cavalos, pelas carroças, perigo constante. Além das investidas dos açougueiros, dos donos de restaurante, de outros cães mais ferozes.

O orgulho se lhes apareceu. Era um cão enorme, todo de prata. Brilhava tanto que ofuscava. Pura prata o corpo todo, em estado líquido, que não derretia. Prata em movimento, sem diluir-se. Sem derreter-se. Indo e vindo, pra dentro de si mesmo. Um feroz cão da raça Pitibull. O cão de pura prata tinha uma cabeça enorme. As patas dianteiras, duas colunas rijas de músculos. O tronco brutalmente incomum ia afunilando à medida que se aproximava das patas traseiras. Uma coleira em torno do pescoço, ornada de pontiagudos ferrões. Serviam para delimitar o corpo da cabeça. Os dentes ameaçadores espetavam as fuças gelatinosamente prateada do monstro. Os olhos como os de um ciborg, pareciam duas balas de matar vampiro. Projetavam-se pra fora. A aparência era de um ser destituído de qualquer sentimento. Um fio de baba prateada balançava desde os dentes, até abaixo do queixo proeminente.   A sua frente, como se não houvesse nada, digno de qualquer valor. Ali mais importante, o que havia, só ele próprio. O Orgulho personificado, vivo, de pura empáfia. O Orgulho fitava Kira, agora virado num cachorro de rua. Fitava-o como se enxergasse além dele. Como se visse sua alma, que parecia estar para além de seu corpo. E realmente estava. Desnudava-o, a ponto de causar-lhe calafrios. Olhava-o com desprezo. Merecedor desse desprezo, o era. Por vários motivos. Não passava naquele instante de um cão, literalmente. Dignidade nenhuma. Chegou a sentir pena de si mesmo. Como conseguira se abaixar, a tanto.


03 de junho de 2019.




img20190729_21110330.jpg





                   CONCEPÇÃO

O MUNDO NÃO SE TRANSFORMA
MAS O HOMEM TRANSFORMA O MUNDO
O MUNDO NÃO É INANIMADO
MAS O HOMEM DESANIMA O MUNDO
O MUNDO NÃO É POLUÍDO
MAS O HOMEM POLUI O MUNDO
O MUNDO NÃO É MALVADO
MAS O HOMEM É MALVADO COM O MUNDO
O MUNDO NÃO FAZ GUERRAS
MAS O HOMEM FAZ GUERRAS NO MUNDO
O MUNDO NÃO VAI ACABAR
MAS O HOMEM (CADA VEZ MAIS) ACABA COM O MUNDO
É BOM: PROCURAR SEMPRE VER:
SE ESTAMOS ERRADO
(SE ESTIVER)
RETIFICAR OS ERROS
ALERTAR-SE PARA NÃO ERRAR MAIS

POESIA DE 40 ANOS ATRÁS, COMPOSTA EM: 19 DE JUNHO 1978.

Nenhum comentário:

Postar um comentário