Cap. 16 O Sonho. Da Saga de KIRA (Love is many-splendored thing - Frank Sinatra)




Cap. 16 O Sonho                              Da Saga de KIRA

(Love is a Many-Splendored Thing.   Frank Sinatra)

Era visão tenebrosa. O céu púrpura soprava vapores de fumaça violácea debaixo de trevas. A irmã de Kira apareceu. Sentada no sofá de sua infância. Enorme sofá, gordo, cor de madeira. O cheiro de naftalina e urina de gato disputavam, sem haver vencido ou vencedor. Bela Morgana, tão serena, em trajes de festa. Vestia vestido branco, de muitas anáguas e babados, laços rosáceos. Lembrava um quadro de Rembrandt. Sabia, era só um sonho. Mas quão bonita, a via. Que idade teria agora? Onde estaria? Aquele sonho seria um mal presságio? Um aviso que morria? Jamais a teria visto vestida assim.  

As mãos, o que havia com suas mãos? Não conseguia dobrar os dedos. Delicados e finos, sentia-os duro de pedra. Não conseguiria sustentar um cálice. Nódulos que acompanharam-na, parte da vida, necrosaram. Cicatrizes que ela nem lembrava mais como adquirira. No dedo mínimo, uma estrela, no indicador, um ressecamento na dobra da falange. As pernas de bailarina levemente dobradas.

Deus, a fase de cachorro? Teria passado? Estaria passando? Não entendia muito o que estava acontecendo. Certas coisas,  melhor não entender, apenas viver. Não sendo algo real, aceitá-la-ias do jeito que estavam vindo. Kira estava ferido. Gravemente ferido.  Precisava sair dali, urgente. Aquele tipo de situação, não tanto inusitada, tirava-o do sério. Uma taxa extra de adrenalina, a aumentar-lhe os batimentos cardíacos, alterando a respiração. Pupilas dilatadas, sudorese, pelos eriçados, taquicardia. Tudo muito parecido com o clímax de prazerosa relação sexual. No entanto, não dava pra sentir sentir prazer em morrer. Kira estava morrendo.

Cavaleiros  sobrevoavam a planície do campo de batalha. Cavalos alados cavalgavam as nuvens de fumaça. Navegavam o vale das sombras. Não dava pra   ver seus rostos, traziam elmos na cabeça. Mas dava pra ver seus olhos de ódio. A morte dava pra ver nas veias dilatadas, em suas frontes escondidas. As espadas desciam com raiva, e subiam projetando no céu jatos de sangue e cabeças decapitadas dos corpos. A guerra dos mundos inferiores  começara. O pior era que Kira conseguia, sem que isso dependesse de sua vontade, estar nos piores momentos pelos quais a humanidade passava. Naquele exato momento estava na batalha do apocalipse, da era cibernética.

No meio daquele inferno, Kira teve outra visagem. Estava à mesa com  os irmãos, todos transformados em cães. Uma cena capaz de motivá-lo a decidir pela vida. Ele à mesa, com os irmãos, o pai e a mãe. O alimento simples sendo servido. Arroz, carne  de galinha de capoeira, cuscuz de fubá de milho,  macaxeira cozida, ovos mexidos. Ovos caipira, saudáveis. Pena, não era mais, como antigamente. Tinham corpos de humanos, mas as cabeças era de cães. Deu um grito horrendo. Seguiu-se estrondosa gargalhada sinistra, vinda do além. Algo de causar pavor em hiena.

A soberba, bem figurada numa cadela muito luxuosa. Mulher dama. Deleitava-se de todos prazeres que as regalias que uma madame podia conceber. Tomava banho em banheira de mármore. Velas acesas, incenso. Água de sabão, espuma. Uma luz tênue, providencialmente direcionada. Shampoos de essências especiais, condicionadores importados da Índia, leite de cabra pra dar mais maciez a pele, óleos de pelo de lhamas das cordilheiras, para tornar os cabelos mais sedosos. Uma música de fundo. Trazida da década de sessenta. Nat king Cole, ou Frank Sinatra?  Falava de como o amor era algo esplendoroso, algo assim como “as rosas da primavera no mês de abril.”

“Love is a many splendored thing/ It’s the April rose that only grows in the early Spring/ Love is nature’s way of giving a reason to be living/ The Golden crown that makes a man a king.”

Um cálice com vinho de dezoito anos. Uma taça com água dura, dos profundos poços do vale do cariri nordestino. Serviria somente pra lavar o rosto, Dar um toque de mistério, de aurora fina, tudo se insinuando. Um beijo desprendido numa rosa, com tanto amor, mas tanto amor, cuja boca se despetalou. Arrepio de lóbulo da orelha. Abraço, de carência, de carinho, olhar lânguido. A pele, os poros respirava o cenário. As unhas cintiladas, feito pétalas de olhar. Olhar caçador desses que acordam cada manhã, toda manhã. O banho matutino de cumplicidade, de irmãos. Não, não era a irmã que vinha avisar que morria. Ele próprio que morria.  E quando pessoas muito próximas vão partir suas almas se aproximam. Morgana, te amo muito. Adeus.

Kira estava morrendo. A mesma ansiedade que invade um ser que está pra nascer invadia-o naquele momento. Quantos anos vivia um cachorro? Ponderou que isso dependia de vários fatores. Levando a vida que levava, cheia de necessidades, a passar fome, dormir ao relento, se expondo a doenças. Vivendo em ambientes inóspitos, convivendo com gente hostil, sob constantes cenários de guerras não era nada fácil.

O homem, de quem recuperara a carteira, o acolheu, tornaram-se amigos. Numa outra dimensão, era  cavaleiro do apocalipse. No meio do combate uma explosão ensurdecedora. Foram os dois atirados longe. O amigo morreu. Kira agonizava. Não era de se estranhar que, mesmo tendo pouco mais de quatro anos de vida, morria.

Fabio Campos, 28 de outubro de 2019

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