Absinto Cap 6




O copo sobre a mesa tinha uma bebida azul. A porta semiaberta deixava entrar uma brisa fria, azulada. Duas esporas deveriam estar penduradas no armador. Assim como estava, a imagem pareceria menos equilibrada. A outra espora estava no chão, deitada, como se descansasse de dias fatigantes. Fedia a bosta de boi, tinha lama ressecada. O bacamarte tão velho, de dentro do cano saía cheiro de pólvora queimada. O boi, venceu a contenção do vaqueiro, fugindo da marcação a ferro. Seria sacrificado. Ali não se admitia insubordinações, nem de gente, nem de bichos. 

A menina escapara ilesa. O tiro passou raspando entre as pernas. Fugiu pra casa da irmã, Ali se abrigaria por longos dias. Tia Maria, tinha câncer de pele. Acabaria morrendo. Muito sofreu antes de partir. A pele branca foi criando feridas rosadas, com alguns pontos escuros. Tia Maria mal se protegia do sol quente. Ia pro milharal, ia pra lavagem de roupas na cacimba. Um chapéu de palha na cabeça. Daí criaram-se bolhas nos braços que virava feridas horríveis, fétidas. Aquilo doía muito. Só havia uma coisa a dizer: “-Tenha paciência tia...” Não havia algo tão cúmplice quanto fotos velhas. Não havia coisas mais reveladoras que fotos do passado. Senhor Djalma aparecia entre amigos, segurava um copo de bebida, 

Não havia coisa mais cúmplice que barcos parados, na areia da praia. Choravam a estafa de cada dia, choravam o abandono de ficar, calado, no chão, sem mar. O céu acinzentado colocava ainda mais tristeza à tarde. O barco, como se morresse afogado, vendo o mar bem ali a frente. E assim ficaria, o quanto fosse necessário. 

Achou que teria um surto, isso ia depender da situação, o surto até pareceria algo normal. Deixaria a casa, abandonaria tudo. Uma vez na vila, esperaria que logo ali, na próxima esquina algo lhe acontecesse. Quem sabe, encontraria um ser imaginário que lhe reconhecesse. Quem sabe o gato com o qual sonhava toda noite poderia aparecer-lhe. E conversariam de suas angústias, numa boa. 

Um copo com absinto, muito tinha de azul. Uma taberna, num dia de inverno, e algo de azul. Um homem que queria reencontrar a família, tinha um pouco de azul. Não havia a busca de um tesouro em sua vida. Nunca houve. Sua mente prodigiosa era que criava tal situação. Vivia dizendo a si mesmo, e ao mundo, que gostaria muito de ter uma vida diferente da que até então tinha vivido. Diferente das que as pessoas normais viviam. Queria viver intensamente, vida de personagem de contos fabulosos, que só existe em livros velhos. Repleto de aventura reais. Aventuras incomuns, de gente comum.

De repente, lá estava o rio. Rio, tão seu conhecido. Tantas, várias vezes fora ali, desde a juventude ia. Tomar banho com os amigos. Agora parecia tão estranho, diferente. Indiferente a ele. Como se não o conhecesse. Mais uma vez inundara todo o vale. Passou causando estragos, arrastou casas, cercas, pocilgas, destruiu galinheiros, matou porcos e cavalos. Seguiu seu caminho, deixando para trás um cenário de guerra. Tudo virado um imenso lamaçal. Andar ali era algo extremamente perigoso. Cair num lodaçal poderia significar o fim. Senhor Djalma, conseguiu chegar ao barranco do rio. Olhou lá para baixo. O que viu? Várias cabeça de gado, afogado. Bois afogados, os olhos esbugalhados a boca aberta. Um a um, iam boiando, duma água escura vinham à tona. Os olhos imensamente abertos, como se tivessem entrado em pânico, ao pressentirem a morte. Bois amarguradamente mortos, em pânico.

Fabio Campos, 30 de junho de 2020.

ARMA BRANCA Cap. 5






Toda vez que pegava numa faca era assim. Sentia imediatamente o poder que ela exercia sobre ele. Talvez aquilo fosse trauma de infância. Vinha-lhe cheiro de sangue nas ventas. O calor do sangue se derramando, quente lavando suas mãos. Via claramente o sangue descendo pelas mãos pingando no chão. Jamais teve problema em ver cadáver, nunca sentiu medo de fantasmas, ou alma de gente morta isso nunca. Mas adagas impunham-lhe certo medo. Especialmente facas. A lâmina cor de prata , o cabo preto. Verdadeiro fascínio.

Era perto de meio dia. Mas como era inverno não dava pra sentir o dia. Parecia que ia anoitecer. O dia cheirava a roupa mofada precisando de sol que não via a vários dias. Se o silêncio conseguisse superar o barulho vindo da rua, daria pra ouvir grunhidos de ratos no porão. Havia uma mesa, um homem de cabelos grisalhos longa barba, de cara trancada. Comia como se estivesse com raiva. E bebia uma bebida, que derramava pelos cantos da boca empapando a roupa no peito. Berrava se queria algo. E seus pedidos tinham que serem prontamente atendidos. 

Um esturro soou como um pedido de água. Uma menina que estava o tempo todo sentada num canto calada,  olhou-o com ar de desprezo. Meio que descabelada, pele latina, franzina, suja. Calmamente ela disse: “O pote com água está logo ao seu lado...É só estender a mão.” Um murro estrondou sobre a mesa, e tudo que havia ali subiu quase um palmo. Um urro de ódio, dizia que o homem ficara irritado com a ousadia da menina. E claro dizia assim que não importava o quanto a água estivesse perto dele, queria ser servido. A menina continuou passiva, lívida. Olhando o homem como um animal selvagem em atitude de defesa. 

O homem empunhou uma faca. Com um golpe enfiou-a sobre o lastro da mesa. A faca ficou balançando pregada na madeira. O homem levantou-se da cadeira num salto. Dirigiu-se em direção a menina. De olhos bem abertos fixo no homem ela continuava passiva. Ele cambaleou até ela sob o peso do corpo e do álcool ingerido. Alcançou-a em dois passos. Segurou-a elevando-a do chão com apenas uma das mãos, com a outra ia desferir um murro que de tão poderoso de certo daria cabo da fedelha. 

A menina estava armada com um canivete, com ele desfechou um golpe certeiro sobre a mão do homem obrigando-o a soltá-la. Urrando de dor o brutamontes largou-a, e uma vez no chão a garota tratou de escapar. O homem foi até uma parede onde pegou um bacamarte, a menina alcançou a porta da rua. A arma foi  apontada, o tiro encheu o ambiente de fumaça fedida a pólvora.

22 de junho de 2020.




A MULHER Cap 4




Naquele dia na praça, ele, não a reconheceu. Algo nos olhos, ou entorno deles, deixaram-na diferente. A cobra cascavel, segundo sua mãe contara, quando tinha, já, mais de vinte anos, fora morta por seu tio Aldo, que chegou a tempo de acertá-la na cabeça, com um tiro de espingarda. As tardes no sítio tinha cheiro de passarinho. Cheiro que só quem viveu conhece. A água doce do riacho, vindo mansa, preguiçosa, traiçoeira, dando adeus aos barrancos que as limitava. Partiam saudosas, melancólicas, pra se encontrar com o mar. Liberdade e transmutação. 

Uma adrenalina boa, entrando por dentro das algas, das baronesas, dos peixes. Coisas que os pais já haviam alertado desde de pequeno: "Água do mar tem sal..." Esqueciam mas quando sentia nos olhos, nas escamas, no paladar era tarde demais. Senhor Djalma gostava de pássaros. Aliás de aves, de qual espécie fosse. As pessoas acabam ficando parecidas com os animais que gostam. O cabelo assentado, brilhoso, o pescoço vermelho, dava-lhe aparência de um galo de briga. As gaiolas penduradas no varal, a disputarem espaço com as samambaias e avencas, da Senhora Maria Augusta. A máquina de costura na maior paciência, sabia que senhora Maria só teria tempo pra ela, depois da cesta vespertina. 

O homem nu, continuava pela rua. O sonho recorrente. Ninguém ligava pra sua nudez, afinal era carnaval. O corpo lambuzado de tinta, de várias cores, que os colegas do bloco haviam jogado nele. O que ajudava a disfarçar. O álcool ingerido, não conseguira arrancar o pudor totalmente. Um resto de uma vergonha se entretinha com o vai e vem frenético de gente. A maioria em sumaríssimos trajes de banho. Blocos de bêbados, que a tarde empurrava pro mar. Os sexos à mostra. O homem tentou cobrir suas vergonhas com um pedaço de papelão que improvisou como uma saia. Segurava com força, temendo que alguém arrancasse dele, tal veste improvisada. Era tanta sutileza, que quase não acreditava que estivesse vivendo tudo aquilo. No entanto estava. Apesar de ter uma vaga ideia, gostava de acreditar que não tinha noção de como ia terminar aquele dia. Mas, o previsível final de dia de carnaval, seria como em tantos outros dias de folia. Acordaria tarde da noite com muita sede, num lugar ermo. 

A mulher estava sentada na areia. Olhava pro alto mar tingido de negro da noite. Um barco de pesca, a empanada emudecida pelas cordas. Uma barraca de pescador calada de tanta solidão. Sentou-se a alguns metros à trás dela. A reconheceu pelo cabelo, a cascata negra ao vento se juntando a escuridão da noite. Joelma "morena", um colar de conchas no pescoço. Senhor Djalma aproximou-se. Sentou-se ao lado da moça. Ela o olhou de soslaio. Mascava um chiclete, uma saia colorida deixando a mostra as coxas. A blusa estampada, minúscula, cobria-lhe os seios. Os braços estendidos sobre os joelhos. As mãos vez outra, acudia o cabelo. Talvez não houvesse necessidade de conversarem. Por isso nada perguntaram um ao outro. Senhor Djalma beijou-a no pescoço. Donde lhe veio um cheiro de manga, com sal. Em poucos segundos, também ela estava nua.

Fabio Campos 15 de junho de 2020.

O Bebê Cap 3





O bebê. Todos eles se parecem, uns com os outros. Braços e pernas, com recheios de almofadas, a pele lisinha. Uma pelagem fina na cabeça, bochechas salientes. Quase sem pescoço, sem dentes. Mas todos eles, possuem uma característica que poucos sabem. Um sentido que apenas eles entendem. Suas ações repetitivas, o primordial modo de descobrir o mundo através da boca. A mulher se estava na varanda, admirando o sol que avançava pra cima da casa, sapecando as telhas de brasa. Queimando o lastro de madeira do alpendre rangedor. A mulher vestia um vestido longo, de mangas e gola. Um fio de suor na testa ameaçando a maquiagem. Na cabeça uma touca com aba de rendinha de filó. Levantou-se da cadeira, o bebê ao colo. Olhou pro céu como se olha pra um inimigo. O sol e a serra esperando um do outro uma cumplicidade. O pequeno parecia tranquilo. Para tanto só precisava estar alimentado, limpo, e livre de qualquer incômodo, tal qual calor que fazia. A alta luminosidade fazia com que mulher e menino quase serrassem os olhos. Não havendo sede, nem a necessidade da troca de fraldas, tudo estava tranquilo. O bebê aproveitava a calmaria, o som dos pássaros pra gesticular, como se batesse palmas. E levava as mãos à cabeça, às vezes. Os cílios longos quase que escondiam a íris castanha, entre as bochechas rosadas e a testa lisinha. As mãozinhas do bebê praticamente se escondiam dentro das mãos de longos dedos da mulher, esguia. 

De repente, a mulher despencou num desmaio. O bebê foi ao chão junto com ela. O bebê rolou alguns palmos pelo lastro de madeira. A mulher desmaiada. O bebê pôs-se a chorar. Choro de bebê, tem intensidade e volume, de acordo com a necessidade, como já dissemos. A necessidade naquele momento era sair do lastro de madeira quente. O tombo em si, nenhum trauma provocou nem na criança, nem na mulher. Uma cobra cascavel que estava o tempo inteiro ali escondida no capinzal do pomar, atraída pelo choro, veio vindo pelo meio das canas. E lentamente pôs-se a escalar os degraus de madeira da varanda. O bebê continuava chorando, sentado, enquanto a mãe permanecia estendida desmaiada. A cobra foi se aproximando, cada vez mais. Só alguns metros separava o ofídio de sua presa, o bebê. 

Antes de ser atingido pela machadada fatal. Senhor Djalma teve um momento de transe. Imperceptível, para os demais seres vivos, habitantes da terra. Senhor Djalma viveu, uma espécie de flash back de sua vida. Nos sessenta segundos que antecederam a morte. Em um minuto, toda sua vida passou diante dele, como num filme. O primeiro segundo, reviveu exatamente o dia que escapou da morte pela primeira vez. Escapou da peçonha de uma cascavel.

Fabio Campos, 08 de junho de 2020.