O copo sobre a mesa tinha uma bebida azul. A porta semiaberta deixava entrar uma brisa fria, azulada. Duas esporas deveriam estar penduradas no armador. Assim como estava, a imagem pareceria menos equilibrada. A outra espora estava no chão, deitada, como se descansasse de dias fatigantes. Fedia a bosta de boi, tinha lama ressecada. O bacamarte tão velho, de dentro do cano saía cheiro de pólvora queimada. O boi, venceu a contenção do vaqueiro, fugindo da marcação a ferro. Seria sacrificado. Ali não se admitia insubordinações, nem de gente, nem de bichos.
A menina escapara ilesa. O tiro passou raspando entre as pernas. Fugiu pra casa da irmã, Ali se abrigaria por longos dias. Tia Maria, tinha câncer de pele. Acabaria morrendo. Muito sofreu antes de partir. A pele branca foi criando feridas rosadas, com alguns pontos escuros. Tia Maria mal se protegia do sol quente. Ia pro milharal, ia pra lavagem de roupas na cacimba. Um chapéu de palha na cabeça. Daí criaram-se bolhas nos braços que virava feridas horríveis, fétidas. Aquilo doía muito. Só havia uma coisa a dizer: “-Tenha paciência tia...” Não havia algo tão cúmplice quanto fotos velhas. Não havia coisas mais reveladoras que fotos do passado. Senhor Djalma aparecia entre amigos, segurava um copo de bebida,
Não havia coisa mais cúmplice que barcos parados, na areia da praia. Choravam a estafa de cada dia, choravam o abandono de ficar, calado, no chão, sem mar. O céu acinzentado colocava ainda mais tristeza à tarde. O barco, como se morresse afogado, vendo o mar bem ali a frente. E assim ficaria, o quanto fosse necessário.
Achou que teria um surto, isso ia depender da situação, o surto até pareceria algo normal. Deixaria a casa, abandonaria tudo. Uma vez na vila, esperaria que logo ali, na próxima esquina algo lhe acontecesse. Quem sabe, encontraria um ser imaginário que lhe reconhecesse. Quem sabe o gato com o qual sonhava toda noite poderia aparecer-lhe. E conversariam de suas angústias, numa boa.
Um copo com absinto, muito tinha de azul. Uma taberna, num dia de inverno, e algo de azul. Um homem que queria reencontrar a família, tinha um pouco de azul. Não havia a busca de um tesouro em sua vida. Nunca houve. Sua mente prodigiosa era que criava tal situação. Vivia dizendo a si mesmo, e ao mundo, que gostaria muito de ter uma vida diferente da que até então tinha vivido. Diferente das que as pessoas normais viviam. Queria viver intensamente, vida de personagem de contos fabulosos, que só existe em livros velhos. Repleto de aventura reais. Aventuras incomuns, de gente comum.
De repente, lá estava o rio. Rio, tão seu conhecido. Tantas, várias vezes fora ali, desde a juventude ia. Tomar banho com os amigos. Agora parecia tão estranho, diferente. Indiferente a ele. Como se não o conhecesse. Mais uma vez inundara todo o vale. Passou causando estragos, arrastou casas, cercas, pocilgas, destruiu galinheiros, matou porcos e cavalos. Seguiu seu caminho, deixando para trás um cenário de guerra. Tudo virado um imenso lamaçal. Andar ali era algo extremamente perigoso. Cair num lodaçal poderia significar o fim. Senhor Djalma, conseguiu chegar ao barranco do rio. Olhou lá para baixo. O que viu? Várias cabeça de gado, afogado. Bois afogados, os olhos esbugalhados a boca aberta. Um a um, iam boiando, duma água escura vinham à tona. Os olhos imensamente abertos, como se tivessem entrado em pânico, ao pressentirem a morte. Bois amarguradamente mortos, em pânico.
Fabio Campos, 30 de junho de 2020.