O Gato [Alucinação - 1976] Cap. 15






A mulher não estava morta, dormia apenas. Era a mãe do Senhor Djalma. A reconheceu pelo cabelo. Como teria ido parar naquela casa estranha? Cheia de corredores escuros?  Por que estaria ali, àquela hora da noite? Achou que já era noite. E se haviam quartos, por que estava deitada naquele sofá? Poderia ter ido pra cama. Eram muitas perguntas sem respostas. Esperaria que o tempo lhe respondesse, um dia. As evidências iam surgindo por si só. Havia um porco morto, pelado, desviscerado. Pendurado pela cabeça, por um gancho de ferro preso a queixada. Enquanto o sangue pingava no cimentado. A luz que havia era alaranjada, e vinha duma lâmpada de bulbo leitoso, pendido dos caibros por um fio branco, preto de sujo.

O gato era da raça angorá. Todo desconfiado a um canto, apreciava a cena. Tinha as patas dianteiras unidas, próximas ao peito, numa posição incômoda. O dorso rente ao piso. As orelhas apontavam pra cima, feito a máscara do Batman. Longo rabo fofo. Os olhos abruptos, a cara fechada. A íris tentando se adaptar a pouca luz. Como um embriagado de mau humor. De ressaca, nada é interessante. O que um gato, numa ocasião com aquela, estaria pensando? Claro, tinha certeza que eles pensavam. Se assim não fosse, não teria como explicar as caras e bocas que faziam quando estavam atentos, observando. Um adágio dizia que gatos tinham o poder de ver os espíritos desencarnados. Tanto era verdade que estávamos vendo, um ao outro. Parecia que ninguém ali, pertencia mais ao mundo dos vivos.

Aquele gato o perseguia, desde a infância. Odiava-o. Desde o dia que urinou em sua cama. Não era como seu pai, que gostava de bichanos. Ao contrário, detestava-os. Os gatos urinavam para marcar território, disseram-lhe um dia. Jamais esquecera disso. O cheiro de urina de gato ficaria no colchão pela vida toda que viveu na casa dos pais. Passou a odiar todos os gatos do mundo. Poria na cabeça a ideia de vingar-se. Nítidas lembranças vieram, de vezes em que tentara livrar-se dele. Numa ocasião, à custa de muitos arranhões e mordidas conseguiu colocá-lo num saco de estopa. E levou-o por léguas adiante, no caminho da montanha. Qual não foi sua surpresa ao vê-lo de volta, são e salvo, uma semana depois. Passaram a odiar-se mutuamente. A ideia de dar fim ao gato, viraria obsessão. Um dia o menino Djalma viu o bichano dormindo sobre a tampa do tonel de água da chuva, na quina do oitão de casa. Com cautela aproximou-se, e com um golpe rápido derrubou-o dentro d’água. O felino foi parar no fundo. Todo molhado emergiu, cheio de pavor nadou como pode até as bordas, o seu pelo molhado puxava-o pra morte, a muito custo conseguiu sair.

Poucos dias depois que o pai partira desta vida, abalado pela perda do amigo, o gato também velho e doente, morreu. Coubera ao menino Djalma, a obrigação de se livrar do cadáver do gato. Acometido por um misto de raiva e repulsa, colocou o pobre animal dentro de uma mala velha. E saiu pela rua, se sentindo como um criminoso que acabara de cometer um crime, de matar alguém, e agora ter que dar fim ao corpo. Lá ia o menino, carregando o sinistro numa mala preta, que pesava quase um terço do seu próprio peso. Mal conseguia disfarçar o medo de ser pego pelo guarda municipal, e ser acusado de um crime que não cometera. Como um fugitivo apressou o passo, ao alcançar o caminho que dava pro rio. Apesar de inimigo deu-lhe sepultamento digno. Colocou-o num lugar bonito, próximo a ribanceira do rio. Cobriu a mala com um pouco de terra e pedras.  Muitos anos depois passara naquele local, mas nem vestígio havia da sepultura. Sabia exatamente o local. Nunca saberia se as aves de rapina, ou algum bicho do mato teria aproveitado os restos mortais daquele gato. E lá estava ele, o dito cujo, bem à sua frente.

Seria mesmo aquele gato? Que parecia com ele, parecia! Claro, que era! Reconheceria aonde o visse. E foi o que aconteceu assim que o viu. Tinha certeza, ali estava ele. Evidências começaram a cristalizar em sua mente. Lembrava-se de quando morou na vila da praia, toda vez que ia banhar o rosto no sol matinal. Lá estava ele, o gato que um dia fora do seu pai. E que ele próprio enterrara na ribanceira do rio. Dormia o sono dos justos, bem acomodado entre a calha e as telhas da eira, da casa da senhora Maria Augusta. Ao lado de um vistoso pé de carambola, o ano inteiro carregado de frutos. A lembrança que mais o assustou foi o da vingança do gato. Claro, o gato um dia vingar-se-ia, do ódio que o senhor Djalma denotava a ele.  

Dentro de casa era noite. Lá fora o dia vertia raios de sangue nas nuvens do céu, como se o sol sangrasse de morte. Enquanto urubus fatigados do dia, se arrumavam como podiam pra passar a noite nas palhas de uns coqueiros. Brigavam entre si por um melhor lugar. Estavam sempre por perto, prontos para disputarem os restos dos porcos abatidos, atirados no fundo do quintal. O homem ficou um tempão contemplando aquele findar de dia. Pensativo, atirava algumas pedras para enxotar alguns urubus mais afoitos.

Senhor Djalma, depois de casado, foi morar num chalé perto da ilha das Croas. Quase no encontro do mar e o rio. Era um casebre de taipa, coberto de palha, o piso rústico de barro batido. Fogão à lenha. Senhor Djalma nesta época criava passarinhos. O alpendre era cheio de gaiolas, com papa-capins, sanhaçus, pintassilgos, calopsistas, ararinhas e canários do reino e belgas. Num dia, com cheiro de trágico no ar, o gato, ninja, deslizou pelas frestas do telhado. Aproveitando a madorna da tarde preguiçosa, covardemente atacou, várias gaiolas. Ao ver a macabra cena da carnificina, Senhor Djalma chorou. O inimigo, dali por diante tornar-se-ia, o imortal, arqui-inimigo. E foi pro mar, pensando num velho adágio que dizia: “A vingança é um prato que se deve comer frio.”

Fabio Campos, 29 de Agosto de 2020. 

A ilustração deste capítulo é foto da contra-capa do Long Play de Belchior "Alucinação" de 1976. O cantor era também artista plástico, e produziu a capa deste disco usando pastel e hidrocor sobre papel.                            .  



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário