Já dizia o filósofo Paulo R. V. : “É melhor morrer, do que perder a vida. Pois, se perde... Dá um trabalho danado pra achar!” E não raro haviam aqueles, que, desnecessariamente, acabavam perdendo. A vida, pode ser que se perca, e vire fumaça dentro do céu, ninguém sabe até quando. Quem sabe, gastar o resto da vida procurando, no oco do mundo maltrapilho, magro de meninos, obeso de gente. “Viver é melhor que sonhar” já dizia Belchior, fosse no peso-pesado matinal, ou na marina calmaria da tarde. Arfada, corria rente a sarjeta. Por onde vão os homens-vida, ranzinza de paz. Aboletada, dos aperreios. O pai do senhor Djalma aconselhava: “Ter mais de uma profissão era um trunfo, para quando vier os tempos difíceis.” Quando ainda portava sobre o corpo seus cinquenta e poucos anos, disse bem assim: “Ser açougueiro, ser padeiro, são ocupações dignas, capazes de dar o sustento de um pai de família.” Um banqueiro de jogos de azar, apesar dos riscos, podia ser um bom ganha pão. O avô de senhor Djalma fora barbeiro, mascate, revendedor de carvão vegetal, negociador de saca de feijão. Teve delas que as exerceu concomitantemente.
Senhor Firmino, foi barbeiro por muito tempo.
Ao longo dos anos, mudara de ponto várias vezes. Senhor Djalma ainda era menino,
mas lembrava muito bem, a barbearia ficava num quartinho anexo a casa. Ao lado
da marcenaria de senhor Lourival, na ladeira que dava pro mercado da carne. O
menino Djalma quando ia cortar o cabelo, ficava observando atentamente o
trabalho do fígaro. Algumas coisas achava interessante. A exemplo, de um pedaço
de couro semelhante um cinto, em que o barbeiro esfregava como se amolasse sua
navalha. Um espelho ostentava o desenho de um chapéu da marca Coty. Qualquer um
que se olhasse naquele espelho, via-se portando um chapéu. Estratégia de
marketing da chapelaria, pra vender.
O paletó naquele tempo, era uma indumentária
que os homens ocidentais adotaram como vestimenta oficial, para estar na
sociedade. Senhor Djalma guardaria com muito nitidez, aquela foto da revista de
notícias internacionais em que o primeiro ministro britânico sorria ao lado do
mahatman Ghandi. O líder indiano coberto com seus mantos e seu cajado na mão. O
inglês metido no paletó e de chapéu. O encontro de dois mundos tão opostos.
Assim se sentia naquele momento.
Um retrato em preto e branco. Senhor Firmino
entrou no banco. Nisso o sol vinha desembestado, rodeando os muros, pulando
dentro dos quintais das casas, espantando as galinhas. Doido, apressado porque
já era perto do meio dia. O sal salgando as nucas e os braços úmidos de suor
dos homens. Dois moleques de rua espreitaram o pobre homem. Na saída do banco,
seguiram-no. Já ia quase perto de casa quando atacaram. Um deles segurou-o
pelos braços, às costas, enquanto o outro rapidamente vasculhou seus bolsos,
até encontrar a carteira. Queriam só o dinheiro. Jogaram seus documentos no
mato. Vida dura.
O mar pode ficar muito seu amigo, se você se
dispuser a ouvi-lo. Os afagos, podem vir em forma de um beijo, salgado, inebriante
perfume marinho, de entardecer reconfortante, serenos cabelos do mar roçando o
rosto daquele que o contempla. O mar, puxava conversa, mas somente com quem o
respeitava, e dispensava-lhe total atenção. O perigo era se apaixonar, morrer
de amor, se entregar, ao mar. Ele o arrebatava todinho. Levantava e levantava
sua saia, suas ondas na praia. Se enamorado num fascínio, num torpor, numa
hipnose, numa embriaguez, Levando ao delírio de drogado. A encher os olhos de
azul, de brilho molhado, de sopro, nos ouvidos. Ouvia-o soluçar baixinho,
dizendo o quanto amava-o. E se abraçavam e brincavam, como antes. Tirando-lhe o
que tinha de mais firme, os pés no solo. Tendo o poder de trocar sonhos, em
suaves pesadelos. E ficava só olhando, ele carregar as nuvens pra bem longe da
terra. Levando as embarcações, pro fim do mundo. Afogando em precipícios, os
desejos mais secretos que alguém pudesse ter. Escondendo tesouros valiosos,
junto ao seu ventre levando monstros gigantes que se deliciavam, submergindo e
emergindo, doidamente. Cavernas, precipícios, prados, cânions, cemitérios de
gente e monstros. Tudo, tudo, lá no fundo do mar. Vales tenebrosos que alma
humana alguma jamais imaginou existir. Nunca senhor Djalma imaginou conhecer
tanto dele. Mas sempre o respeitou. Sempre o temeu.
A velha Celina não queria ficar velha. Era
uma negra dos seus setenta e tantos anos. Esguia, nos seus metro e setenta e
pouco. Aqueles olhinhos fundos de pouca inteligência, mas sorrateira que só! Escondia
como podia, sua carapinha nagô, em baixo dum lenço estampado. Talvez tivesse vergonha
da descendência negra. Do rosto pros braços a diferença gritava. Enchia a
careta de pó de arroz. Nos braços e no colo o negrume que não dava pra
esconder. Que pena, a pele não podia
esconder. Vergonha pra raça, negra. Um branco e uma negra nus numa cama. Era
como o algodão misturando-se com café. A mão da negra andando por cima da pele
branca, um escravo garimpando no sal. Senhor Djalma era um jovem, mancebo ainda,
viu quando ela saiu do quarto nua, e foi se lavar numa bacia no lado de fora da
cabana. O homem com quem estava era seu pai. Ele não deu ousadia de dizer
palavra. Foi embora.
Senhor Edward tinha um olho cego. O olho cego
era meio branco, meio azulado. Dizia, mesmo sem falar, que alguém podia ser
cego dum olho, e mesmo assim ser feliz. Não o incomodava, o fato de ter um olho
cego. Pelo menos parecia não o incomodar. Só não gostava que ficassem olhando
demasiado pro defeito. Isso tirava-o do sério. Isso poderia ser “uma correspondência
biunívoca” dizia, quando alguém falava algo e citava “um denominador comum”.
Talvez quisesse ser autêntico. Ironizava dizendo: “Eu enxergo melhor com esse
olho [e apontava o cego], do que com o outro!” Só não pedisse pra provar, que
era briga certa. Só vestia camisa de algodão, de gola, de mangas curtas, e a
tradicional carreira de botões descendo no peito. Senhor Edward tinha umas
manias bem esquisitas. As mãos sempre inquietas, a dar petelecos no vento, com
os dedos médio e anular. Como se atirasse, à sua frente, bitucas de cigarro invisíveis.
E coçava a barba rala, debaixo do queixo magro. Pra isso, fazia uma careta que
imitava um sorriso grotesco. E tinha um ajeitado no óculos de grau, como se estivesse
fora do lugar. Era o tempo da República. Não o estado de governo, mas o
albergue, que dividia com outros três colegas. O amigo Edward, a quem o senhor
Djalma resolvera visitar naquele final de semana, gostava de cantarolar
baixinho, uma música religiosa. Trocava, no entanto, algumas palavras por
palavrões. Com ar de ironia dizia: “Sou ateu. Graças a Deus!” Havia pilhas de livros velhos por todo canto.
Pelo chão, na cama, na cozinha, e até no banheiro. Livros comprados no sebo.
Bastava abrir um pra encontrar uma dedicatória, de um ex-dono, que, datava,
assinava e punha endereço. Comprava-os pra estudar. Senhor Edward estava na
universidade. Dizia porém, que não tinha pretensão, nem tão cedo, de terminar o
curso de filosofia. Convidou o senhor Djalma para visitar a cidade
universitária. No domingo estava quase deserta, mas estavam lá assim mesmo. O
campus era para o amigo do senhor Djalma, como o Olimpo. Um lugar onde só os
deuses mereciam estar. E lhe foi
cicerone, pelos jardins das delícias, as fontes da meditação, os campos de
concentração, o parlatório, o coliseu, a piscina das ninfas, o ateneu, a fossa
das lamentações, o palácio dos cachorros. Pra cada edificação, pra cada espaço,
uma denominação própria, dada pelo senhor Edward. Senhor Djalma muito teria o
que aprender, daquele mundo. Coisas da vida, choque de opiniões.
05 de Setembro, de 2020.
A ilustração deste capítulo é detalhe do LP de Raul Seixas "Os Grandes Sucessos de Raul Seixas - 1983"
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