Senhor Belo Cap 19




O cemitério velho, abandonado, ficava em cima de um penhasco, de onde dava pra ver o mar. A visão era um esplendor. Qualquer um, desejaria ser sepultado ali. Pros lados, um mar de coqueiral, a se perder de vista. As palmas a acenarem, ora pro céu, ora a abraçar a brisa de sabor marino. A visão deslumbrante que se descortinava a frente, raptava aos olhos, levando-os longe, tão longe. Até onde pudesse cegá-los de sal e solidão. Senhor Djalma ponderou que talvez seu corpo, estivesse sepultado ali. Procurou, a esmo, a própria sepultura. Tentou se reconhecer, entre os muitos rostos nas louças, das lápides.  Encontrou pessoas, que assim como ele, vagavam. Se eram viventes ou espíritos, era complicado saber. Tentar tocar não adiantava, o espírito não encontrava resistência e transpassava os corpos. A única saída era cumprimentar, puxar conversa. Se fosse correspondido, teria encontrado outro nas mesmas condições.

Algo o fez lembrar de Joelma. O canteiro com um buquê de flores amarelas. Joelma, uma mulata com quem tivera um namoro. Joelma negra, esguia, carnuda da cintura para as pernas. Joelma, uma mulher que sorria. Lembraria dela sempre, como uma pessoa que sorria. Sorria com os olhos, mesmo quando falava algo sério, ou corriqueiro. Sorria, com seus dentes alvos. Sorria, as vezes, espalhafatosa, como se anjos fizessem cócegas a sua alma. Sorria ainda mais, se o interlocutor a julgasse, inconsequente, sarcástica. Sorria com seus lábios sensuais. Sorria meiga, a provocar fantasias nos desejos sexuais de certos homens. E gargalhava, espetaculosamente! E como Joelma gargalhava! Sua gargalhada, se morta estivesse, deveria virar patrimônio cultural da humanidade. E ria de qualquer coisa. Mesmo que, o motivo da risada, nem fosse algo assim tão engraçado. Ria, se seu riso viesse a causar estranheza, a quem via, ou a ouvia rindo. Ria, a causar irritação num rabugento de plantão, de levar aos resmungos e impropérios. Ria a causar inveja a Irene de Caetano.  Joelma ria porque ria. Joelma, era mulher feliz.  

“Eu quero ir minha gente eu não sou daqui/ Eu não tenho nada, nada/ Quero ver Irene ri/ Quero ver Irene ri/ Quero ver Irene dar sua risada. Caetano Veloso”

Joelma domara o mundo. E avaliava os homens, pelo formato das sobrancelhas. Dizia: As sobrancelhas exageradamente cheias, definiam homens rudes, brutos no trato com as mulheres. As sinuosas, de homens delicados demasiadamente. Sobrancelhas falhadas, de homens indecisos. As que se uniam no cenho, pelo contrário, eram homens decididos, determinados na hora de agir. Bem como eram do tipo, pavio curto. Sobrancelhas finas, pertenciam a homens ciumentos, inseguros, as vezes violentos. Homens quase sem sobrancelhas, ou arqueadas demais, pertenciam a homens loucos, psicopatas. Pra ela, senhor Djalma era desses.

O mar se estava. Em toda sua exuberância, se exibia. Mar feito calda de pavão. Ao modo de dizer do matuto: se amostrava. Os que vinham da roça, pela estrada vermelha, e passava no portão do cemitério, ao chegarem naquele ponto, paravam pra admirar o mar. Sentavam numa pedra, acendiam um cigarro, feito de fumo de corda e seda. E o cheiro ia bater nas ventas dos fiéis defuntos, dos que dormiam, também dos que estavam acordados, sentados nas catacumbas apreciando a paisagem. Deu pra ouvir as gargalhadas de Joelma, lá para além do muro do cemitério. Talvez fosse ela mesma, voltando de uma festa no sítio. Estaria por trás do muro, flertando com um matuto. Mulata faceira. Mulher da vida. Das que ficam com um homem só por prazer.

“Se acaso me quiseres sou dessas mulheres que só dizem sim/ Por uma coisa a toa, uma noitada boa, um cinema um botequim... Chico Buarque”

Senhor Djalma lembrou de uma vez, que foi pro sítio mais uma turma de amigos. Impelido pela euforia do álcool, se inventou de roubar uns cocos. Escolheu um coqueiro que julgou baixo. Se enganou. Não era tão baixo, só percebeu isso no meio da subida. Mesmo assim subiu, e subiu. A despeito das picadas de mutucas, conseguiu derrubar os cocos. O problema ficou por conta da descida. Afrouxou um pouco os pés, e pronto, rapidamente chegou ao chão. Só que metade do couro da barriga, ficou no tronco malvado. Lavou com cachaça o ferimento, e estaria tudo resolvido. Se os amigos, pelo resto do dia, não se divertissem às custas dele.

A desavença de Silvio, com o homem que o atacou no bar, tinha a ver com traição. O homem chamava-se Amilton, ficara sabendo que Silvio, que um dia fora amigo, andara baixando as asas pro lado de sua quenga. Também o atacou por causa de política. No passado senhor Amilton fora vereador de mandato, e perdeu a última eleição porque, segundo ele, pessoas como Silvio andara falando besteira a seu respeito. Teriam dito aos eleitores que não votassem mais nele. E o chamaRA de irresponsável. Foi o suficiente pra atacá-lo com intensão de tirar-lhe a vida.

Um jovem, estava, sentado sobre uma grande catacumba, de tijolos antigos. Encostado a uma imensa cruz negra. Tinha os olhos no horizonte marinho. Uma placa desgastada, dizia o nome dos que ali jaziam, com data de nascimento e morredoiro. Aproximou-se. Caramba! Reconheceu-o, era o belo mancebo que noutro dia o viu lanchando num bar. Seria ele, o pequeno Absalon? Senhor Djalma tivera com Nara, uma filha, uma menina chamada Rana. E com Joelma tivera Absalon que morrera, com apenas dois anos de idade. E sequer foi batizado, não vingou. Absalon estava enterrado ali. O filho que ele mesmo sepultara. Se vivo estivesse, estaria exatamente com vinte e cinco anos. Idade que o belo rapaz aparentava. Aproximando-se cumprimentou-o. Ao jovem parecia que já o conhecia a muito.  O rapaz como se lesse seus pensamentos, disse-lhe que não era seu filho. Seu filho Absalon estaria num outro nível, mais elevado que aquele. E que não crescera em estatura, permanecera, em tamanho, como saíra deste mundo. Se quisesse poderia levá-lo até onde ele estava. E foram. Caminharam por uma vereda além do muro do cemitério, que levava a um jardim. Envolvidos estavam numa neblina densa. O local remetia-os a um estado de muita graça, de muita paz. Senhor Djalma não pode aproximar-se muito, mas deu pra ver seu filho que dormia, embalado ao colo de uma mulher negra de rosto rechonchudo. Estava rodeada de várias de criança, de idade infantil, e brincavam em uma algazarra deliciosa. O vento que vinha do mar, tornava a tarde magnífica.

A bodega do senhor Belo, ficava na esquina da ladeira do chafariz. Era uma construção velha. Datada de 1686. Lá no alto do frontispício, assim informava. Construção tão rude, tão feia, datava-se porque era moda. Casas tinham eira, beira e brasões. Isso era sinônimo de prosperidade do dono, na época. Agora, porém nem a sombra do que um dia fora. Afinal, mais de trezentos anos se passaram. Tantas demãos de cal tinham as paredes a dar a impressão de gordas, de flácidas. Dois degraus mais elevado, separava o pavimento interno da casa comercial com relação ao terreno da rua. Entrava-se por uma das duas portas, e ia se encontrar num único vão de alguns poucos metros, seis por quatro metros, talvez. O piso era coberto de tijolos  achatados, quadrados. Não havia sortimento, nem variedade de mercadoria. Quase nada nas prateleiras. Os caibros do telhado retorcidos, enegrecidos, resignados na sua tristeza de velhos. O cheiro, uma briga entre o charque e o querosene. Nada havia lá que não estivesse desbotado. Como se as cores das coisas tivessem fugido. Foram todas pra lá fora. A bodega do senhor Belo. Os séculos não passaram para aquele ambiente. O relógio com algarismos romano, parado, às seis e dez horas. As baratas, os únicos insetos que sobreviveram, trezentos anos de história. No alto, pelo lado de fora, no canto direito, uma placa azul com letras brancas, indicava o nome da rua que começava naquela esquina: Rua Vigario Bello. E que nada tinha a ver com o dono da taverna.

Senhor Belo continuava sentado na sua velha cadeira de balanço, na calçada. Ao ver senhor Djalma sorriu. Sorriu com seu sorriso peculiar. Os olhos quase serrados, as sobrancelhas brancas arqueadas, a barba cerrada. E os lábios. Ali, era onde retinha o segredo do seu sorriso. A boca um pouco trêmula. Deixava ver parte dos incisivos amarelados, num rosto quase nipônico. Senhor Djalma, sabia por conta dele era que sorria, aproximou-se. Senhor Belo, continuava olhando-o, e disse: Você lembra? Um dia, bem aqui, sentado nesta cadeira como estou agora, eu disse, que tudo isso ia lhe acontecer. Lembra?   

28 de setembro de 2020. 

 

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