Uma casa em ruínas. Senhor Djalma se
encontrava lá. A porta, as paredes, tudo em situação deplorável. Percebeu que ao
longo do tempo, aquela casa passara pelas mãos de muitos donos. Em diversos
ambientes se transformara, nesse ínterim. Muitas vidas teriam vivido, ali. Além
de casa de morada, fora estábulo, intendência, escritório contábil, casa de
jogo, agência de viagem, quitanda, restaurante, bar, lanchonete, açougue e mercearia.
Para cada tipo de vivência, uma gama de personagens a viu. Um rol de episódios, via
descortinar entre aquelas paredes. Alguns dos eventos ali ocorridos, foram tão
impactante, tão forte, que imprimira no ambiente um certo ar, pesado. Lúgubre, Sorumbático.
Os espíritos das coisas ruins que lá ocorreram, lá permaneceram.
Viu uma cama saindo do chão, sem que ninguém
a erguesse. Sem que ninguém com corpo, carne, ossos, músculos, e outras coisas
que só os viventes possuem, a içasse. A cama subia, lentamente, tendo sobre
si, uma velhinha, que tranquilamente dormia. O leito da idosa, subia, e subia,
bem devagar. Subiu alguns centímetros do piso do quarto, e parou. O urinol, as
chinelas, o pequeno tapete de por os pés. Essas coisas continuaram no chão.
Enquanto que a cama, simplesmente subira. Com a velhinha bastante idosa, que
dormia. De repente, a cama começou a dar solavancos, sacudidas um tanto
violentas. Isso fez a pobre senhora acordar atônita! Sem saber o que estava
acontecendo. Um grito horripilante ecoou, na madrugada assustadora. Um forte
baque, e a cama retornou ao solo. E tudo silenciou. A pobre senhora, desmaiou.
Foi parar no hospital.
Senhor Djalma por um instante se deteve no
hall, avançou para uma sala de visitas. Imensas cortinas em tons verdes,
carregadas de babados e franjas brancas, impediam a entrada de luz pelas
janelas laterais. Tantos eram os objetos de louças, que tinha medo de esbarrar e
quebrar um deles. Elefantes, tigres de bengala, cães e gatos, ninfas, e um
negro com uma cânfora ao ombro. Chegou a uma sala ampla guarnecida de uma espécie
de dispensa e mezanino. Um negro com um lenço amarrado na cabeça pelada, de lá
de cima no parapeito, olhava-o, pondo cuidado aos movimentos do intruso.
Uma senhora muito velha, se estava, sentada
numa poltrona. O cabelo todo branquinho. A pele do rosto, dos braços, enrugada.
Colocaram-na a um canto, de modo a permitir livremente a passagem de quem ali
circulasse, ou se quisesse passar para outros cômodos. Sobre um mesinha redonda
alguns objetos, xícara de porcelana, um crucifixo de aço, a estatueta de uma
santa sentada, com um chapéu de caubói na cabeça. Tudo iluminado por um abajur
cor de carne. A senhorinha conversava sozinha, com certa dificuldade pela falta
de dentes incisivos. E mesmo da prótese dentária, que jazia num pires, enrolada
numa lenço branco. Falava sozinha, a respeito da hora da janta que não vinha.
Acontece que já jantara, mas não lembrava. Falava do horário dos remédios, que
teria que tomar após o jantar. Também os remédio já tomara. Da canseira nas
pernas por estar a muito tempo na mesma posição. Insistentemente chamava por
uma moça chamada Gedalva. Talvez fosse a governanta, que simplesmente ignorava
os chamados da pobre idosa. Senhor Djalma caminhava feito um gato, sem fazer o
menor barulho. Ao passar pela velhinha, percebeu que a mesma era cega.
Senhor Osvaldo Brito era conhecido de todos.
Conhecido vereador de mandato, na vila do Porto. Sua fama ia longe. Até a
capital. Fama de muitas coisas. De coisas ruins, viu? Dentre outras, de encrenqueiro,
dos que não levava desaforo pra casa. Raparigueiro, paquerador, inclusive de
mulheres alheias. Trambiqueiro, mau pagador. E de matador de gente. Só andava
armado. Nunca a polícia, mesmo sabendo, o desarmara. Nas abordagens, quando era
revistado, sempre tinha uma conversa. Conversa de pé de ouvido. E ficava tudo
resolvido. O vereador tinha um escritório de consultoria, na rua principal do
vilarejo. Como orgulho exibia na parede, um diploma de Técnico contábil. Na
parte dos fundos, mantinha uma oficina de conserto de máquinas de datilografia.
Dentre os rapazes que estavam sempre por lá. Três eram seus empregados. Entre
outros afazeres, consertavam máquinas de datilografia. Senhor Brito vereador, mantinha
um acordo com o prefeito. Era amigo do gestor, de modo que nunca faltava
serviços de consertos de máquinas de escrever, em sua oficina. Em época de
eleição o escritório-oficina virava comitê eleitoral. E ficava, ainda mais,
cheio de cabos eleitorais, bajuladores, puxas-sacos, jogadores de dominó e
baralho. Em ano de campanha, o conserto das máquinas, andava a passo de
tartaruga. Foi justamente num ano de eleição municipal, um crime abalou a vila
do Porto.
A rua do açougue pela primeira vez ficou
iluminada. Uma gambiarra de lâmpadas incandescentes foi improvisada. Um
caminhão virou palanque, enfeitado de bandeirolas coloridas, com as cores e os
números do partido. Um banner gigante exibia a foto do candidato, que era todo
sorriso. Metido no seu tradicional paletó. O serviço de som foi testado, e o
povo foi convocado. A praça ficou repleta de gente. Todos queriam ouvir as
propostas dos candidatos. Preencher a noite barulhenta com balela de políticos
mentirosos, programa de índio. Fogos explodiam no ar, a cada instante. Alguns
daqueles estouros, não eram tiros de revólver? Eram sim! Tiros de revólver! Teriam vindo da rua do
matadouro...
Enquanto prefeito e vereadores discursavam,
um carro preto passou devagar pela rua da cadeia. Foi andando bem devagarzinho,
até sumir na escuridão da estrada. Instantes antes, os faróis estavam apagados.
Lá no final da rua do matadouro. Um homem amparado pela escuridão, seguiu até a
casa de Zequinha da Força. Devagar bateu na porta. Com o rosto quase encostado
na folha da porta, chamou pelo moço da companhia de luz, que já havia se
recolhido. Embora não havia ainda agarrado no sono, por conta do barulho do
comício. Acendeu a luz. Ao abrir, recebeu três tiros, a queima roupa. Morreu na
hora.
Na vida, um homem terá a oportunidade de
transpor vários portais. Muitos sucumbirão diante de alguns. Três deles, o fará
tremer nas bases. O primeiro, o da verdade: O portão do cemitério. Pouco
importa se vivo, ou morto. Rico ou pobre. Ali, as diferenças se anulam. Ali,
todos se igualam. Ali, onde ninguém, é
melhor que ninguém.
Fabio Campos, 03 de Outubro de 2020.
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