Havia uma multidão, de gente. Animação
esfuziante a encher o paço, enfeitado e colorido. Postes cravados de panfletos,
lambuzados de uma cola de goma fresca, feita de farinha e água. Faixas de
tecido branco, esticadas com barbante, cheias de nomes berrantes, e números
extravagantes. O palanque, lastro de caminhão. A boca de autofalante, entre voz
e zumbidos, apregoando inflamados discursos dos personagens públicas. Ovacionados
a cada palavra, a discorrerem sobre as riquezas daquela terra. A bravura e a
coragem daquele povo. A proclamarem em prosa e verso. O pescador, o tirador de
coco que estavam lá. O coqueiral, de lá do alto, por trás das singelas
choupanas apenas observava. Mudo, porém atento. Protegido pela escuridão,
atentamente escutava. Tristemente sabia que tudo aquilo, não passava de falsa
falação. Palavras engomadinhas, rodeadas de rendinha de filó. E que o vento
levaria, pra bem longe dali. No alto-mar, ia se afogar, quem sabe, pra nunca
mais voltar. Enquanto isso lá no alto! Bem alto, muito a cima das cabeças, dos
pensamentos, da poeira levantada dos pés. O fantasma de breu, com seu lençol estampado
de estrelas, com um olho espreitava os homens, o outro acudia o vale. As mãos negras, uma afagava o mar, a outra
sacudia o burburinho pra bem longe. E as falas saiam voando, viravam ecos, e
iam voando, até morrer pregada, lá na cruz do farol. Três décadas haviam se
passado, desde que o senhor Djalma, ainda moço, conseguira escapar de uma surra.
Não uma surra qualquer, mas um linchamento, do qual poderia sair morto, e
somente em espírito aqui viria, nos contar.
Havia comparsas, espalhados pra todos os lados.
Misturados no meio do povaréu. O comício se desdobrava. Acirravam-se os ânimos, muita balbúrdia. Ninguém se enganasse, o estopim estava no ponto. Pronto pra
incendiar. Aguardava alguém louco o suficiente, pra acender o fósforo. Palavras
de comando, provocações, insinuações vinham da turba. Gritos de ordem pra
qualquer um dos candidatos que dissesse um A. Pregação entupida de adjetivos de
encher ouvidos. Inflamados corações, decididos estavam. Enquanto os não
simpatizantes, a rangerem os dentes. Esbugalhavam de insatisfação os olhos. Resmungos
saiam de suas bocas. Entre dentes, um impropério escapou. E foi cair desgraçadamente
nos ouvidos de um, muito atento, adversário. Teria ouvido muito bem, quando o
jovem Djalma comentou com um colega, que aquilo tudo não passava de uma
tremenda palhaçada! Ao que se chamava de palhaçada, para os fiéis seguidores
era afronta! Jamais aceitariam, levar pra casa, tamanho desaforo! A charanga
emudeceu. As vozes das cuícas e tamborins silenciaram. Alguém ia ter que pagar,
por tão grave ofensa aos candidatos! Só podia ser intriga da oposição. O litro
de cachaça, como em câmara lenta, foi passando de mão em mão.
A falta de cafeína causava-lhe ânsia de
vômito. Sentia tontura, e todos os ossos do corpo doíam. As articulações
parecia que iam todas saltar para fora do lugar, tanta era a dor. Precisava de
um gole de café. Era questão de vida ou morte. O ar fugia dos pulmões. Morria
por asfixia? Para onde fora o ar? Dentro da cela, delirava. Tomaria um pouco de
sua própria urina, como se fosse café. Talvez conseguisse aliviar a pressão, a
garganta. Pensou na casa da avó, a chaleira fervendo no fogão à lenha. Dava até
pra sentir no rosto, o calor do fogo. Estava era queimando de febre. A escuridão
da cela ajudava, dando ainda mais imaginação às suas asas. O cheiro forte de
urina, e do mofo das paredes, a náusea.
A força da imaginação, alucinações, convertia os maus odores, em suave
aroma de café de caco com rapadura, de sua avó. O fantástico poder da mente. Era
só querer, e ele queria. Os olhos fechados. Pôs o nariz dentro de um velho
livro. E logo ali, na sua frente, uma cesta, cheia de pães, coberto com raspas
de coco. Lá fora, um frio Enquanto ali, um pouco de neve, caindo devagar nas
costas da mão. Suavemente cheirando tão bom, um pouco de doce. Um pouco de
noite, servindo de cobertor a escuridão. Suavemente foi apagando, apagando.
Um dos irmãos mais velho, do senhor Djalma,
gostava muito de animais, em especial os de estimação, mais precisamente de
cães. A irmã da cunhada, ia mudar-se naquela semana. Ponderou que sua cadela de
seis meses de idade chamada Lili, não poderia levá-la. Tinha que deixar com
alguém. O irmão do cunhado, que era o moço Djalma, de muito bom grado, aceitou
ficar com a cadela. Enjeitada por motivo de mudança. A viagem longa e cansativa,
não dava outra opção. Não tinha como a levar, de jeito nenhum. Com o coração
partido, a cunhada partiria, deixando a fiel amiga. Temia que não suportasse e
morresse no caminho. Optou por doar. Desde que o novo dono, tomasse muito
cuidado com ela. E teve ele que fazer, pela primeira vez, uma promessa de
verdade. Prometeu, cuidaria do animal mais do que dele próprio. Lili teve que
aprender a dormir no quintal. Foi sofrimento, pra tirar o costume de dormir
dentro de casa. E mais novo dono, novo nome lhe deu: Amora.
O fio de suor gelado, descia pelo canto do
rosto. Imponentemente ia cumprindo sua missão, de lavar a alma. Imitando a
lágrima, no gosto, na cor. Tudo escuro. Ainda havia esperança de sair dali,
vivo. Os ratos, andavam, e andavam num grunhido de dar nos nervos! E vinham até
seus pés. As orelhas em pé, cheirando tudo, cheiravam seus pés. A repulsa fazia-o
contrair ao máximo que podia os dedos, doídos. Forças não tinha pra sair do
lugar. A alma ia, e ficava sozinho. A carne. colada ao encardido paredão, da
cela. Riscos, riscos, o que queriam dizer? Fosse lá o que fosse, nada lhe
diziam. Jamais os lera. Quem se importava com eles? Ele, Leviatã. Tinha pressa,
avidamente aguardava suas condenadas almas saírem deles. Sebosas almas.
Já havia se passado, mais de quarenta anos,
desde o roubo da primeira cadela do irmão do senhor Djalma. O pequeno pet, ele
ganhara de presente, do filho do dono da sorveteria Central. Uma cadela, da
raça pastor alemão. Tinha só seis meses quando foi dada de presente. Junto com a
maturidade dela, viria também a necessidade de sair pra namorar, ter parceiros
sexuais. Quando estava no cio, sujava as roupas no varal, rasgava o saco de
ração, corria atrás dos gatos e passarinhos. Era o maior alvoroço. Toda tarde
tinha a obrigação de levá-la pra passear. Num desses passeios, precisou deixá-la,
por alguns instantes na casa da sua mãe. Prendeu-a pela corrente num pé de crote,
no jardim. Ao voltar pra pegá-la, havia desaparecido. Desde então, nunca mais soube
o paradeiro de Samanta.
O moço Djalma, estava a ponto de levar uma
surra! Uma surra que se caso escapasse, nunca, jamais esqueceria! Na verdade
seria um linchamento. O bate-boca saturou o ar atmosférico de álcool etílico. Das
entranhas lançado no ar, faltando pouco pra explodir! Faltava alguém que acendesse
um palito de fósforo. O indicador balançava freneticamente apontado para seu
rosto: “Eu ouvi! Você disse! Você disse, que o candidato era um palhaço!” Negou
que tivesse dito. Na verdade, dissera, só que de outra forma, que aquele
comício era uma tremenda palhaçada. Na tradução do ódio, ficava o dito, pelo
não dito.
O primeiro soco, projetado, continuava no
punho cerrado. As palavras parada no ar, prontas para calar. O argumento mais
forte, e também mais contundente prontíssimo para entrar em ação. O primeiro
murro. O filho do senhor Belo, de lá longe observava tudo. Viu todo o desenrolar
da contenda. Aproximou-se, com a autoridade que a farda, e a patente militar o
revestia, interveio. Pegou o moço Djalma pela gola da camisa. E deu-lhe voz de
prisão, por provocar arruaça em plena via pública. A ponto de causar revolta,
entre os simpatizantes de um grupo político. Na condição de detido teve que acompanhar
o policial. Naquele momento revoltou-se. Oh! Que pena, não soube avaliar. Foi
preciso trinta anos, para descobrir. Dentre os que fazem a legião de Gabriel,
um interferiu. Para que naquele pedaço de noite, um esboço de gente não
morresse, espancado.
24 de outubro, de 2020.
Ilustração: Mais uma foto, da capa do disco de vinil da Banda Kid Abelha[1985]...
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