Senhor Djalma tentava rememorar, ocasião que
tivera que ir à delegacia de polícia. E por qual motivo tivera que estar lá.
Lembrou, a primeira vez. Foi barra pesada! Ocorreu ainda na infância. Tivera que levar a
refeição de um irmão, que se encontrava detido, por envolver-se em uma briga,
em via pública. A briga, teria o corrido entre o irmão e seu pai. Se iniciou
dentro de casa, teve continuidade na rua, e terminou com a detenção. Por uma
semana, teve que ir a cadeia, levar a principal refeição. O almoço, que não era
fornecido pela instituição. Lembrava nitidamente de cada detalhe. Do zelo, com
que sua mãe preparava a marmita, sempre colocava alguma fruta. Como era dos
mais velhos, entre os irmãos em casa, cabia-lhe ter que levar. O
percurso era pequeno, por diversas vezes o fez. A caminho, pensara: quando
crescesse, a profissão que queria ter era de carcereiro. Por que? Pra poder
soltar todos os presos.
E como desejou, que chegasse logo, o dia da
soltura do irmão. Cadeia, passaria a ser considerado ambiente hostil, pesado! Terrível
portal! Tudo ficara tão fortemente
marcante. Negativamente, marcante. Tudo, eternamente, na mente marcado. Os rostos, de
poucos amigos dos policiais. O rosto de pura revolta, dos detentos. O semblante
de angústia dos familiares, e visitantes, ali. A cara fechada de um policial, dali
por diante, entenderia como sendo premissa pra função. Policial tinha que ser
carrancudo. O olhar diferenciado, para com os que não eram militar.
Discriminação nada velada. Com um familiar qualquer, de um detento: o julgamento,
insinuações. A humilhação durante a revista. Gestos, e comandos autoritários.
Tudo para deixar bem claro quem mandava, e quem era mandado, ali. Ao entrar num
presídio, era preciso entender que o mundo real, ficara lá fora. A realidade
ali, era outra. Mais cruel que lá fora. Ali, se anulava a igualdade de direitos. Ao
entrar na cadeia, qualquer um deixa imediatamente a condição de um ser comum. Passa,
ainda que não queira, a condição de suspeito, culpado de alguma coisa, delinquente
em potencial. Forte candidato a meliante. Até que se provasse o contrário, passa-se
a um ser potencialmente nocivo a sociedade, para os que faziam a cadeia.
Pretenso reeducando. Se apenas parente de um daqueles, ainda que não se
considerasse assim, passaria a ser qualificado, e merecedor, dos mesmos tratos
daqueles. Além da famigerada hierarquia militar, que impunha suas regras
próprias.
O roubo de um relógio de pulso, um par de
sapatos e uma calça social. Esses pertences foram subtraídos do irmão do senhor
Djalma. Teria sido esse, o segundo motivo que o levou, também ainda
infante, a ir novamente a delegacia. O pai o levou, no dia que foi registrar o
boletim de ocorrência. E depôs nestes termos: “Aproveitando a calada da noite,
sábado passado. O ladrão escalou o muro do quintal da minha vizinha. Subindo na
cisterna alcançou a portinhola que dava acesso ao tanque d’água, do banheiro da
minha casa. Andando por cima das paredes, passou até a sala de visita, onde meu
filho estava dormindo no sofá. Desceu da parede. Roubou os pertences. E saiu fazendo o percurso inverso. Quero dizer que, eu tenho uma pessoa
como suspeito do crime. Trata-se do caseiro do meu vizinho. Mora duas casas
adiante, pelo lado esquerdo da mesma rua. A minha desconfiança recai sobre o caseiro
do promotor de justiça. Digo isso porque não é a primeira vez,
que se apropria de coisas dos outros. Basta olharem a ficha dele, vão ver nos
arquivos, que é verdade o que digo. Por conta própria, busquei as evidências
que levou-me a tal desconfiança. Fiz a reconstituição do percurso que ele teria
feito. E encontrei uma camisa, um chaveiro e uma caneta, abandonados pelo
ladrão, no fundo do quintal. Objetos que teria ele, descartado.
Cabe agora a vocês intimá-lo, interrogá-lo, pra confirmar minhas suspeitas.”
Senhor Saulo de Sales, criava uma ovelha no
quintal. Cevava-a para o natal, que se aproximava. Jamais imaginaria que um dia
seria roubada. Infelizmente foi o que ocorreu. Bela manhã de sábado. O sol, com
seus magníficos raios, dando e vendendo no meio da feira. Esquentando as
empanadas, avivando as cores das toldas coloridas. Senhor Sales, a esposa, e os
dois filhos pequenos. Tranquilamente, misturados no meio do povo, faziam a
feira do sábado. Alguns dias antes, Andrezinho um dos filhos de Saulo, de
apenas nove anos, observava e achava bonito o bicho comendo. Sem limites, despejou
meio saco de caroço de algodão pra ovelha. A coitada, ficou empanzinada!
Tiveram que levá-la ao veterinário. Uma lavagem estomacal, e, tudo ficaria bem.
Algo pior, no entanto, estava pra acontecer naquele sábado, o roubo da ovelha.
Ao detento recém integrado numa penitenciária,
procedimentos bastante curiosos, ocorrem. O exame de corpo de delito. As
fotografias da perícia técnica. Foto de corpo inteiro, de frente, de perfil, de
costa, de busto. Fotos das particularidades, caso hajam. Tais como: tatuagens,
cicatrizes, mutilações, anomalias genéticas, tudo que seja digno de registro. A
arcada dentária, a impressão digital. Descrição: da cor dos olhos, cabelo, pele.
A tabuleta pendurada ao peito indicará: data de nascimento, e data da prisão.
Os pertences do detento, ficarão guardados, só serão devolvidos por ocasião de
sua saída, se vivo. E entregues aos familiares se não vivo. No prontuário a
descrição de comportamento, psíquico social do preso; e em que eventos se
envolveu que o levou a prisão. Ganhará um número que o identificará. A humilhante expurgação, passará por uma
desinfecção, pra eliminar parasitas. A vestimenta de cores berrante, pra facilitar a localização, em caso de fuga. Se a vítima precisar identificar. É melhor que o faça protegido por espelho, para evitar constrangimentos, e futuras
represálias por parte dos envolvidos. De tudo, o mais estranho: ter que raspar
a cabeça.
Lá estava, a delegacia de polícia. Imenso
bloco amarelado, de argamassa, tijolos esquadrinhado, esqueleto de vigas de
ferro. Cerca de arame. Edificação solta, isolada, quadrada. Feito um gigantesco
dado de jogos de azar. E que azar! Pra quem tinha que estar lá. Pra quem tinha
que entrar lá dentro. Jamais se volta o mesmo.
Terrível portal! As poucas janelas, faziam a vez dos pontos negros do
dado. Guarnecidas de barras de ferro, as do pavimento inferior. Com folhas de
madeiras de lei, as do pavimento superior. Escassos detalhes chamavam a atenção
na edificação: no frontispício o mastro com a bandeira brasileira hasteada; a
escadaria de acesso a porta principal, o imponente letreiro anunciando: “Cadeia
Pública”. Especial descrição, merece este último ponto. Devido ao modo como se
apresentava: em letras pretas, gordas, que contrastavam com o fundo amarelo. O
anúncio, por si só, impunha o devido respeito, ao prédio secular.
A mãe, do senhor Djalma. Em pé, encostada no
umbral da porta de casa, soluçava baixinho. Um choro contido, no peito. Enquanto, via os
longos cabelos do filho, cortado a faca peixeira, levado pelo vento. Os meninos
da praça, brincavam com os cabelos do seu filho. O irmão do senhor Djalma, noutra
briga se envolvera. Desta vez com um colega de ginásio. A polícia foi chamada.
O cassetete cantou. Teve a cabeça raspada, no meio da rua mesmo. Igual ovelha tosquiada.
Chutes de coturno nas costelas, pontapés no rosto, socos na boca. Algemas, uma
corrente nos pés pra não correr. Jogado violentamente no lastro do camuflado Jeep,
do exército brasileiro. A mãe, nada entendia. Por que tanta humilhação? O
sangue ficou lá, ferindo o calçamento, até a chuva sangrar. Chuva, choro de
Deus, se unindo ao choro de mãe.
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