Porta de Cadeia Cap. 22


 



Senhor Djalma tentava rememorar, ocasião que tivera que ir à delegacia de polícia. E por qual motivo tivera que estar lá. Lembrou, a primeira vez. Foi barra pesada!  Ocorreu ainda na infância. Tivera que levar a refeição de um irmão, que se encontrava detido, por envolver-se em uma briga, em via pública. A briga, teria o corrido entre o irmão e seu pai. Se iniciou dentro de casa, teve continuidade na rua, e terminou com a detenção. Por uma semana, teve que ir a cadeia, levar a principal refeição. O almoço, que não era fornecido pela instituição. Lembrava nitidamente de cada detalhe. Do zelo, com que sua mãe preparava a marmita, sempre colocava alguma fruta. Como era dos mais velhos, entre os irmãos em casa, cabia-lhe ter que levar. O percurso era pequeno, por diversas vezes o fez. A caminho, pensara: quando crescesse, a profissão que queria ter era de carcereiro. Por que? Pra poder soltar todos os presos.

E como desejou, que chegasse logo, o dia da soltura do irmão. Cadeia, passaria a ser considerado ambiente hostil, pesado! Terrível portal!  Tudo ficara tão fortemente marcante. Negativamente, marcante. Tudo,  eternamente, na mente marcado. Os rostos, de poucos amigos dos policiais. O rosto de pura revolta, dos detentos. O semblante de angústia dos familiares, e visitantes, ali. A cara fechada de um policial, dali por diante, entenderia como sendo premissa pra função. Policial tinha que ser carrancudo. O olhar diferenciado, para com os que não eram militar. Discriminação nada velada. Com um familiar qualquer, de um detento: o julgamento, insinuações. A humilhação durante a revista. Gestos, e comandos autoritários. Tudo para deixar bem claro quem mandava, e quem era mandado, ali. Ao entrar num presídio, era preciso entender que o mundo real, ficara lá fora. A realidade ali, era outra. Mais cruel que lá fora.  Ali, se anulava a igualdade de direitos. Ao entrar na cadeia, qualquer um deixa imediatamente a condição de um ser comum. Passa, ainda que não queira, a condição de suspeito, culpado de alguma coisa, delinquente em potencial. Forte candidato a meliante. Até que se provasse o contrário, passa-se a um ser potencialmente nocivo a sociedade, para os que faziam a cadeia. Pretenso reeducando. Se apenas parente de um daqueles, ainda que não se considerasse assim, passaria a ser qualificado, e merecedor, dos mesmos tratos daqueles. Além da famigerada hierarquia militar, que impunha suas regras próprias.   

O roubo de um relógio de pulso, um par de sapatos e uma calça social. Esses pertences foram subtraídos do irmão do senhor Djalma. Teria sido esse, o segundo motivo que  o levou, também ainda infante, a ir novamente a delegacia. O pai o levou, no dia que foi registrar o boletim de ocorrência. E depôs nestes termos: “Aproveitando a calada da noite, sábado passado. O ladrão escalou o muro do quintal da minha vizinha. Subindo na cisterna alcançou a portinhola que dava acesso ao tanque d’água, do banheiro da minha casa. Andando por cima das paredes, passou até a sala de visita, onde meu filho estava dormindo no sofá. Desceu da parede. Roubou os pertences. E saiu fazendo o percurso inverso. Quero dizer que, eu tenho uma pessoa como suspeito do crime. Trata-se do caseiro do meu vizinho. Mora duas casas adiante, pelo lado esquerdo da mesma rua. A minha desconfiança recai sobre o caseiro do promotor de justiça. Digo isso porque não é a primeira vez, que se apropria de coisas dos outros. Basta olharem a ficha dele, vão ver nos arquivos, que é verdade o que digo. Por conta própria, busquei as evidências que levou-me a tal desconfiança. Fiz a reconstituição do percurso que ele teria feito. E encontrei uma camisa, um chaveiro e uma caneta, abandonados pelo ladrão, no fundo do quintal. Objetos que teria ele, descartado. Cabe agora a vocês intimá-lo, interrogá-lo, pra confirmar minhas suspeitas.”  

Senhor Saulo de Sales, criava uma ovelha no quintal. Cevava-a para o natal, que se aproximava. Jamais imaginaria que um dia seria roubada. Infelizmente foi o que ocorreu. Bela manhã de sábado. O sol, com seus magníficos raios, dando e vendendo no meio da feira. Esquentando as empanadas, avivando as cores das toldas coloridas. Senhor Sales, a esposa, e os dois filhos pequenos. Tranquilamente, misturados no meio do povo, faziam a feira do sábado. Alguns dias antes, Andrezinho um dos filhos de Saulo, de apenas nove anos, observava e achava bonito o bicho comendo. Sem limites, despejou meio saco de caroço de algodão pra ovelha. A coitada, ficou empanzinada! Tiveram que levá-la ao veterinário. Uma lavagem estomacal, e, tudo ficaria bem. Algo pior, no entanto, estava pra acontecer naquele sábado, o roubo da ovelha.

Ao detento recém integrado numa penitenciária, procedimentos bastante curiosos, ocorrem. O exame de corpo de delito. As fotografias da perícia técnica. Foto de corpo inteiro, de frente, de perfil, de costa, de busto. Fotos das particularidades, caso hajam. Tais como: tatuagens, cicatrizes, mutilações, anomalias genéticas, tudo que seja digno de registro. A arcada dentária, a impressão digital. Descrição: da cor dos olhos, cabelo, pele. A tabuleta pendurada ao peito indicará: data de nascimento, e data da prisão. Os pertences do detento, ficarão guardados, só serão devolvidos por ocasião de sua saída, se vivo. E entregues aos familiares se não vivo. No prontuário a descrição de comportamento, psíquico social do preso; e em que eventos se envolveu que o levou a prisão. Ganhará um número que o identificará.  A humilhante expurgação, passará por uma desinfecção, pra eliminar parasitas. A vestimenta de cores berrante, pra facilitar a localização, em caso de fuga. Se a vítima precisar identificar. É melhor que o faça protegido por espelho, para evitar constrangimentos, e futuras represálias por parte dos envolvidos. De tudo, o mais estranho: ter que raspar a cabeça.

Lá estava, a delegacia de polícia. Imenso bloco amarelado, de argamassa, tijolos esquadrinhado, esqueleto de vigas de ferro. Cerca de arame. Edificação solta, isolada, quadrada. Feito um gigantesco dado de jogos de azar. E que azar! Pra quem tinha que estar lá. Pra quem tinha que entrar lá dentro. Jamais se volta o mesmo.  Terrível portal! As poucas janelas, faziam a vez dos pontos negros do dado. Guarnecidas de barras de ferro, as do pavimento inferior. Com folhas de madeiras de lei, as do pavimento superior. Escassos detalhes chamavam a atenção na edificação: no frontispício o mastro com a bandeira brasileira hasteada; a escadaria de acesso a porta principal, o imponente letreiro anunciando: “Cadeia Pública”. Especial descrição, merece este último ponto. Devido ao modo como se apresentava: em letras pretas, gordas, que contrastavam com o fundo amarelo. O anúncio, por si só, impunha o devido respeito, ao prédio secular.

A mãe, do senhor Djalma. Em pé, encostada no umbral da porta de casa, soluçava baixinho. Um choro contido, no peito. Enquanto, via os longos cabelos do filho, cortado a faca peixeira, levado pelo vento. Os meninos da praça, brincavam com os cabelos do seu filho. O irmão do senhor Djalma, noutra briga se envolvera. Desta vez com um colega de ginásio. A polícia foi chamada. O cassetete cantou. Teve a cabeça raspada, no meio da rua mesmo. Igual ovelha tosquiada. Chutes de coturno nas costelas, pontapés no rosto, socos na boca. Algemas, uma corrente nos pés pra não correr. Jogado violentamente no lastro do camuflado Jeep, do exército brasileiro. A mãe, nada entendia. Por que tanta humilhação? O sangue ficou lá, ferindo o calçamento, até a chuva sangrar. Chuva, choro de Deus, se unindo ao choro de mãe.

17 de Outubro de 2020.  

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