Outro Mundo... Cap. 24


 



Continuavam as lembranças, que se plasmavam. O sol à pino. Todas as coisas tinham, todas as coisas estavam, à séculos de luz, vermelho alaranjado. O que não estava assim estava puxando pra amarelo, literalmente. O que não era assim, ia pra era do fogo, de sol. E tudo o que restara era estrada. Estrada de barro, cercada de sol. E de arame farpado, de um lado e do outro. Só a frente, e o que ficou pra trás, livre estava. Pra quem quisesse, ir e vir. Não correndo, claro. Pois ninguém era doido sair correndo debaixo dum sol quente, daqueles! As estacas tortas, secas, desprezadamente secas! Cansadas, de ficarem debaixo daquele calorão! E ficavam, sem reclamar tantinho assim! Tristemente cumpriam o papel de cerca, resignadamente cerca, seca. As casas, teve delas que simplesmente morreram. Outras, foram embora. Permanecer ali, não era pra qualquer um não.  Aguentar o que aguentavam. As que conseguiram fugir, fugiram.  Negar um copo d’água a um cristão, isso não... Se alguém pedisse mostrar-lhe-ia o caminho do açude. O açude coitado, a muito que também morrera. Foi minguando, minguando. Até ficar esturricado. Sua pele, suas mãos, viraram esqueleto. Carcaça de açude. Açude de água leitosa. Água salobra, água que a “orelha de burro” inutilmente tentou esconder.

Uma menina. Ó que visão tão bela! Aquela cena para sempre ficaria, flutuando dentro de sua mente. Toda vez quando ia dormir a via. E permitia que voasse por dentro dos seus pensamentos. Tão à vontade, feito inquilino folgado. Pra lá, e pra cá. Pediu a Deus que a livrasse, do seu mau olhado. Pediu que a livrasse do pensamento pecaminoso. Pediu que a mantivesse pura. Permanecesse, e que sempre a visse naquele estado de inefável contentamento. E assim seria, todas as vezes que lembrava da menina. Estava vestida num vestido de renda estampado, que ia até perto do joelho. Escondia as pernas, bem torneadas, da menina morena. Na estrada, logo atrás, andando de bicicleta, vinha-lhe o anjo da guarda. Pedalou um pouco mais, e passou adiante. Na verdade, transpassou por dentro da menina, que sequer o sentiu. O anjo tinha cara de Junior. Cara de menino levado, travesso. De bermuda, chinela de dedo, camiseta regata. A menina com seu cabelão negro, escorrido. Preso por duas presilhas, por trás das orelhas. Os olhos castanho escuro sofriam de tanta luz. Combinava com a cor de sua pele. Os lábios de menina, que se já não fosse, logo, logo, seria, moça.

Havia um dinossauro lá. Se fosse qualquer um que contasse essa história, dificilmente alguém acreditaria. Só acreditava mesmo pois estava, com os próprios olhos, vendo o que via. Uma menina muito bela, com aquelas características, que por si só já era uma visão fantástica! Vê-la se dirigindo a um vale onde havia um dinossauro, algo simplesmente inverossímil! Havia um parque de escavações de fósseis pré-histórico, encravado ali. A menina tinha uma sombrinha, cujas cores combinavam com o vestido. E ia, tranquila, debaixo do sol causticante. Tranquila até demais. Andava como quem desfilava numa passarela. A sensação era de quarenta e poucos graus centígrados. A sombrinha, a dar-lhe ainda mais graça e beleza. A realçar as cores do tecido, da sua pele, e do cabelo. Os braços longos e graciosos. Um, estava dobrado até o colo, e segurava a haste da sombrinha, o outro estendido ao longo do corpo, segurava um pequena valise. O senhor Djalma reconheceu aquela valise, como sendo parecida com uma de sua mãe. Daquelas cujo trinco, se constitui de duas bolinhas de ferro que ao se cruzarem fecham a bolsa. Para abrir era só forçar as bolinhas no sentido contrário. Um súbito pensamento lhe veio, mas imediatamente descartou. Não, não poderia ser! Àquela menina jamais seria sua mãe.

O menino pareceu ser o anjo da guarda da menina, mas não era. Primeiro, porque anjos da guarda, dificilmente teriam problemas com espinhas, no rosto. E nos seios da face, daquele ali, se lhes criaram umas saliências, que o tornava ainda mais sapeca. Aparentava ter seus dez anos de idade. O menino, que não era o anjo, disse bem assim: “Hoje, eu vou pra casa do meu pai!” Essa frase, lhe saiu assim leve, brincalhona, de lá dentro do seu coração, andador de bicicleta. A menina não o ouvia, estavam em dimensões distintas. Acendia o garoto, o que já estava aceso, um sentimento de afeição muito forte, pelo pai. Deu pra sentir, ao ouvi-lo falar! Deu pra sentir quanta emoção havia, naquela frase dita! A euforia brincando dentro de sua alma. Pra entender o que se passava na mente daquele menino, de dez anos. Era preciso compreender que o amava muito. E que não via o pai, a meses. Haviam motivos vário, morava com a mãe, em outra cidade, distante. A separação, ocorrera de forma brusca, abrupta, dolorida, inesperada. O menino tinha só quatro anos. Foi uma barra! Ninguém perguntou, o que achava? Se queria que fosse assim? Ninguém, pra perguntar se não tinha outra maneira de resolver aquela situação!  Simplesmente aconteceu, e pronto. Engolir em seco, aceitar. Era a lei do: “Fazer o que? É assim, e pronto!” Se o pai, soubesse o quanto o amava. Talvez o amasse com mais amor. Se entendessem que quando a velhice chegasse, talvez fosse àquele que iria cuidar dele. Amaria com muito mais amor.  

O que aquela casa estaria fazendo ali, perdida no meio do deserto? Resolveu ir até lá. Não parecia abandonada, dava pra sentir que havia almas de pessoas vivas por perto. Ao se aproximar do alpendre, a saudação: Ô de casa? E de lá dentro: Ô de fora! Era voz de uma senhora. Continuou: Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo! E logo veio a resposta: Para sempre seja louvado! Uma idosa, veio vindo lentamente, feito felino quando vai a caça. Trajava um vestido longo, de estampa verde com flores vermelhas, um lenço amarrado na cabeça. Rosto sofrido, queimando do sol, enrrugado. O moço Djalma fez-lhe um pedido: A senhora, poderia me dá um copo d’água?  A mulher desapareceu, engolida pelo escuro do interior da casa. Voltou com uma quartinha cheia. A água fria, dava ao barro, cor de molhado! A água que verteu pro caneco de alumínio, água Leitosa, mas fria! De barreiro, mas fria! Barrenta, mas fria! Caneco na mão, e mais uma pergunta: A senhora conhece aquela menina? Conheço...

30 de outubro de 2020.

Foto de ilustração, a cantora Paula Toller, da Banda Kid Abelha. Menina, mulher.


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