Havia uma serra, muito alta, lá no fundo do
vale. Naquela magnífica paisagem, a elevação rochosa era segundo plano. Porém
não menos importante que todos os outros planos, ao redor. Tão longe, estava
que chegava a ficar azulada. O céu, no entanto, com ela não queria conversa. Empavonado
com seu azul muito mais celestial! Ainda mais esplêndido! Desses que os simples
mortais contemplavam com êxtase! Admirando muitíssimo! E depois de se enamorar,
espreitava. De outro jeito, olhava. Arriscava encontrar uma brechinha, por onde
pudesse ver Deus. Quem sabe, no jardim, conversando com o filho. Ou sentado à
pérgola da piscina, conversando coisas sérias, com a mãe dele. Pena, que não
dava! Não havia como. A cortina era bem feita, inteira, sem nenhum defeito.
Cá embaixo, pra onde se olhasse, era terra
seca. Uma forragem de mato seco, aqui acolá, algumas arbustivas. E muita
desolação. Verde mesmo, daqueles bem verdinho, que dava gosto de se vê, quase
não havia. Se amostrava uma catingueira por aqui, um pé de mandacaru pra acolá.
Um calango espichado no lajedo quente. Na hora da misericórdia, o ar
atmosférico se mudava, dum jeito que nem toda criatura percebia. Também graça
nenhuma teria se todos conseguissem alcançar a mudança. O outono, o outubro. Se
entranhando feito labirinto. O pé de pau, de flores amarelas se desdobrava em
bela roupagem. Se vestia, com sua saia longa, deitada no chão preparando o
dance pro bailado das garças. O vento assobiava, no oco da ingazeira, como um
lamento, uma cantiga antiga, que dava vontade de chorar. E a brisa mestra,
secaria as lágrimas vertida no rosto, envernizando o entardecer com sal,
tristeza, solidão.
Maria Guadalupe do Amaral Ferreira. A velha
senhora que dera água, a senhor Djalma. Através dela, ficou sabendo o nome da menina. Nome
de santa, devido a data de nascimento, doze de dezembro. O sobrenome, era comum
a todos habitantes daquela seara. Uma só estirpe estendida por um vale inteiro.
Pai, mãe, irmãos, tios, sobrinhos avós, todos carregavam o mesmo sobrenome. E
mesmo pra morte os levavam. As casas atrepadas nas encostas, até o sopé da
grande serra, escondiam segredos de família.
A menina-moça, Guadalupe, dentro de casa, se
olhava no espelho. De lá fora, dava pra vê-la. Olhava pra imagem, dela mesma refletida,
quase não se reconhecendo. Pra ter certeza que era ela mesma que via, perguntava
qualquer coisa a mãe, lá na cozinha. Involuntariamente fazia aquilo, pra se
perceber realmente ela, ali no espelho. Ouvir a própria voz, talvez a fizesse
se sentir viva, presente ali. Pois haviam momentos que pensava não mais existir,
pra esse mundo. Pegava o longo cabelo, trazia
todo pra o colo. E com as mãos alisava, alisava.
O menino, tinha um açude, achava que era só
dele. Pegou a bicicleta e foi pra lá. Tinha na ideia que se não desaparecesse, com
certeza logo apareceria o que fazer, na roça. Mesmo que não fosse muita à
vontade, tinha que ir. Senhor Djalma o imaginou entrando num bosque de árvores,
totalmente diferentes das que tinha visto em toda vida, até então. Árvores que
produziam luzes fluorescentes, emitiam raios fosforescentes que produziam sons.
Zumbidos que eram como músicas que continha um código de comunicação, não
explicitamente revelado.
Maria Guadalupe temia, estar grávida. Contou
a sua mãe dos seus medos, das suas angústias. A mãe, estava curvada cuidando de
uma coivara. E como se tivesse levado uma lapada de urtiga, se aprumou. A
encarou, retesando os músculos faciais. A respiração ofegante. E desatou um
impropério tão cabeludo que feriu a paisagem. O grito ecoou, e foi morrer lá
nos confins do Judas. Três vezes se benzeu, e disparou pra cuidar de outra
coisa, que fosse bem longe dali. O segredo de família, guardado a sete chaves!
Caso a gravidez se confirmasse, poderia vir a ser revelado. Só tinha um jeito,
Guadalupe tinha que ir pra bem longe, ter esse filho. Caso estivesse, estaria
grávida do próprio pai. A menina Guadalupe era, desde os seis anos de idade,
violentada pelo pai.
O menino estava nu, aprumado em cima do
paredão do açude. Parecia um peixe molhado, uma enguia. O sol dando-lhe
plasticidade. Fazia dele, um menino de luz. O cabelo molhado colado a cabeça,
na testa. O corpo magro, dando a contar as costelas. As perninhas finas, como
uma rã, sem pele. O sexo, parecia uma chupeta de bebê. Circundado dos primeiros
finos pêlos pubianos. Preparava-se pra dar mais um pulo dentro do açude. A água
espirrou foi bater nos sapatos de Guadalupe, que estava sentada numa pedra, ali
próximo. A menina, olhava pro céu, como quem contemplava o rosto de Deus. E todas
as coisas se rendiam àquele momento. Dava pra sentir a presença, a beleza do
criador. Ela nada tinha pra perguntar a ele. Como também ele, nada tivesse pra
dizer a ela. Queriam só entender, por que tinha que ser assim?
No décimo ano que se passou depois daquele, Maria
Guadalupe se encontrava à porta da
pensão das Meninas Melindrosas. Final da rua do sol, cidade grande, muito
distante do velho sertão onde nascera, e se criara. Mulher feita, bonita, desejada, uma
ninfa! Agora, vendia o corpo pra sobreviver. Nunca, porém esquecera a vida no
sertão. O amanhecer, tão belo. A alvorada, o canto dos pássaros, as árvores, as
nuvens de algodão. A chuva batendo no telhado. Bom tempo, de sua inocência,
roubada, perdida, dentro de casa. Queria muito entender os homens. A maldade
que havia dentro dos seus olhos, ainda menina conheceu. A mulher, na vida
mundana que levava, resolveu que queria ser artista. Levou adiante seu projeto.
Tornou-se uma atriz pornô. Foi protagonista de um filme pornográfico de sucesso.
E eis que esse filme, um dia, chegaria lá no interior, no singelo vilarejo onde
Maria Guadalupe viveu sua infância, estudou, foi a igreja. O prefeito, as
ex-professoras, todos queriam assistir o filme. Os ex-coleguinhas de escolas,
eram todos homens feitos agora. Com ansiedade aguardaram o dia da grande
bilheteria! Grande era a expectativa, todos queriam ver, o tão desejado corpo
de mulher. Àquela que um dia, menina inocente vivera entre eles. Agora, despudoradamente,
se entregaria a volúpia, ao prazer carnal, para todos verem! E a vila quedou
incrédula! Um disparo de arma de fogo se ouviu! Acenderam-se as luzes! O velho
pai, de Guadalupe, em plena sala de projeção, cometera o suicídio.
07 de novembro de 2020.
Ilustração, by google.com.br capa do LP de Zé Ramalho "A Terceira Lâmina - 1981"
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