Quarto Número 15 Capítulo 21

 



Senhor Djalma conseguia ver sua mãe, naquela velhinha, deitada num leito de hospital. Fisicamente não parecia, mesmo assim a reconhecia. Todos os dias sonhava com ela. E a via, às vezes, ainda muito jovem. Quando o sonho não vinha naturalmente, ele o forçava. Outro dia a encontrou, numa rua, e estava chovendo, era noite. Ela colocara a mão sobre seu braço, como fazem os casais. Estavam ambos, bem elegantes. Tinha como sendo sua mãe, porque no íntimo a sentia. Embora aquela senhora, não parecesse. Andaram por muitas ruas. A chuva torrencial lhes molhava os pés. A parte de baixo da calça dele encharcada. Os sapatos dela, de salto alto, molhados. Debaixo da chuva, belo casal. Com elegância desfilavam.  

Sabia, tinha que aproveitar. Pois talvez, nunca mais pudesse reviver aquele momento. Ela pediu que a deixasse num bazar. Era provável que fora ali comprar condimentos. Aproveitaria pra fazer uma fezinha no jogo do bicho. Não entendeu porque a deixou. E se corresse algum perigo? Precisava protegê-la. Arrependeu-se de tê-la deixado lá sozinha. Certa vez, contara-lhe que quando menina sua mãe, a avó do senhor Djalma, disse-lhe que sonhara com os tios numa contenda, uma briga feia. E teria dito: Hoje vou jogar no macaco, pois macaco é bicho encrenqueiro. E não é que acertou! A avó ganhou um bom dinheiro! Teria dado a sua mãe, dinheiro para realizar um sonho, tirar um retrato num estúdio, na casa do retratista. A mãe, porém, com vergonha não foi.

Com os condimentos que comprara. Tivera a intenção de fazer um caldo, para ambos tomar. Um dia de chuva, um caldo. Uma sopa revigorante, cairia bem. Lembrou de ocasião semelhante, estavam à mesa. Era noite. A luz da lâmpada amarelava todo o ambiente. Os rostos avermelhados. O fumo quente subindo dos pratos, aquecendo os rostos. Aguçando narinas. Era uma cena magnífica, um casal sentado à mesa, degustando uma prato quente, numa noite fria. Estavam bem agasalhados. Nada tinham pra falar. Nada, pra perguntar um pro outro. Curtiam o momento, e muito prazer sentiam nisso. O prazer de ser companhia, um pro outro.  O dia todo haviam passado juntos. Tudo o que tinham pra conversar conversaram durante o dia. Desde as primeiras horas da manhã. E as falas foram escasseando, ainda mais ao cair da tarde. Do que haviam falado? Logo cedo? Poderiam voltar, com um assunto já comentado. Falaram dos filhos, de como é complicado entender cada filho. Afinal, aquela senhora, fora mãe de vinte e um. Mais de duas dezenas de vezes, vivera a maternidade. E dizia, não existir um filho igual ao outro. Sobre gostar mais de um, do que de outro, era assunto complicado. Tinha plena consciência que era assim que funcionava. Cria que com todas as mães do mundo assim se sucedia. E até aceitava a teoria de que os filhos que davam mais trabalho, os mais encrenqueiros. Eram os que exerciam maior empatia a seu favor. Senhor Djalma tinha um certo trauma, sobre esse tema. Não se sentia muito à vontade pra debatê-lo. Talvez tivesse complexo de Édipo. Visto pelos demais irmãos, como aquele que não dera certo, na vida. O desleixado, o que nem estava nem aí, pra nada. O pé frio da família. Aquele que tudo que fazia, dava errado.

Hospital, ambiente inóspito. Mesmo que o nome tentasse dizer exatamente o contrário. Hospital, terra árida. Duma aridez estranha. O cheiro de formol, remetendo a instituto médico legal. O silêncio reinante, era em respeito aos mortos. Hospital, de corpos inertes, paredes branca, luz artificial, gente artificial, ar artificial. Algodão, injeção, gosto de sangue, palidez, olhos serrados, boca semiaberta, rigidez cadavérica, etiqueta no dedão do pé. Cobertores com logomarca, travesseiro com logomarca. Macas com rodinhas, deslizando, dizendo: flap-flap, a cada tapete de borracha vencido.  Corredores, túneis que traziam, e levavam a um lugar donde não havia ida, nem volta. Transpor o portal dum hospital, o caminhar para um lugar de onde não existe retorno. Lugar onde se entra vivo, e se sai, semi-vivente, ou nunca-mais-vivente.  

Três, são os modos de entrar num hospital. Andando com as próprias pernas. Sendo conduzido, sentado numa cadeira de rodas, ou deitado numa maca. Nestes últimos casos, são duas as opções: consciente, ou inconsciente. Senhor Djalma lembrou da despedida do senhor Jorge. Estava em casa, dormindo, já passava das três da madrugada, quando o compadre Jorge veio avisar, que estava indo embora.  O hospital distava de sua casa, uns 200 quilômetros. Sentiu alguém batendo levemente nas suas costas. Alguém que dizia: Compadre, compadre! Estou indo! Senhor Djalma de um pulo, sentou-se na cama. Se pôs a pensar. O compadre, com quem estava até brigado. Alguns dias antes dele se internar, os dois se desentenderam. E agora ele viera avisar que estava partindo. Achou que aquilo fora uma espécie de pedido de perdão. Teria compadre Jorge, dado uns tabefes na sua filha, por ter arengado com a prima, a filha dele. Pronto a briga estava feita entre os compadres. Infelizmente a doença se agravou, ele foi hospitalizado. Ficara na expectativa, não iria visitá-lo, afinal estavam brigados. Mas assim que recebesse alta. Prometera, iria procurá-lo, pra fazer as pazes. Tal oportunidade, nunca chegaria.

Dona Emerlinda encontrava-se deitada. No quarto número quinze. O tubo de oxigênio ia com dois pontos pra dentro do nariz. Os remédios a deixava sonolenta. O respaldo da cama levantado, a cabeça de cabelos brancos apoiada num imenso travesseiro. A enfermeira fazia seu trabalho, enquanto a escutava pacientemente. Aferiu-lhe a pressão arterial, mediu a glicemia. Perguntava se era hipertensa? Era. Se era diabética? Não era. Se tinha alergia a algum medicamento? Não tinha. O que significava aquelas ferimentos na perna? Foram os ferros de proteção da cama. Numa vez que foi ao banheiro, se feriu neles. Dona Emerlinda queria contar o que lhe ocorrera naquela noite. Um bicho muito feio viera lhe atormentar no seu quarto. Um homem com cabeça de bode, todo verde, como a pele dum camaleão, dentes e língua de serpente. Teria dito, que a sua hora teria chegado. E mandou que fizesse um exame de consciência, pra ver que caminho merecia seguir.  Subir para a luz, ou acompanhá-lo, até o vale das trevas? Mostrou alguns dos seus erros. Lembrou das intrigas de dona Emerlinda.  Intrigas, por problemas tão banais, e que duraram tanto tempo! Décadas! Explicou que aquilo era pecado, o pecado do orgulho! A entidade julgou que ela merecia punição. Perguntou, e se se arrependesse? Ele falou, tempo para arrepender-se ela tivera muito, porém já passara. Mostrou-lhe tantas vezes que fora a igreja, e nem se confessara! Mas, e as coisas boas que fizera? Não contava? Contava, serviu, pra abonar outras iniquidades do passado. Na hora que a cama sacolejou, se sacudiu freneticamente. Era a briga entre Leviatã e o anjo da guarda de dona Emerlinda.

O hospital, e as particularidades incríveis. Aquele monte de gente, indo e vindo. A indústria da doença, o comércio da saúde, a política da morte! Gente nascendo, gente morrendo, gente de carne e ossos, gente que nem mais isso tinha. Uma verdadeira feira, o produto os enfermos  que iam sendo exportados e importados. Uns para a luz, outros para as trevas. Os reciclados, voltando a vida. Um agonizante passou deixando um rastro de sangue pelos corredores. A moça da limpeza disse que outro dia, viu no chão, um rastro de sangue como aquele. Pegou pano e rodo e saiu limpando, seguiu o rastro que foi dar no banheiro. Ao chegar lá, pra sua surpresa todas as paredes do banheiro estavam completamente sujas de sangue! Mãos espalmadas, as palavras “Socorro me salve!” sendo escrita com sangue! Alguém que ela não conseguia ver, escrevia! Largou tudo, e correu a chamar alguém. Ao retornar, nada havia lá. Tudo limpo. Tudo tranquilo.

Naquela noite, a moça da limpeza, ficara sabendo que aquela ala do hospital era mal assombrada. Limpava o quarto quinze. No passado um fazendeiro, possuído por um espírito maligno. Na sua propriedade, armado com uma espingarda calibre doze, matou o filho e a nora. A polícia foi chamada. Deu-lhe voz de prisão. Ameaçou atirar nos policiais. Preferiu tirar a própria vida. Apontou a arma por debaixo do queixo, e detonou. Ficou sem os olhos, e a massa encefálica saiu por cima da cabeça. Lá estava o fazendeiro, no quarto quinze. Fumava um cigarro. Embora os mortos, só eles percebiam. A fumaça do cigarro subia. Mas só os não viventes viam. O sangue coagulado, grudado ao cabelo. A espingarda apoiada ao ombro. Os olhos sem órbitas. Disse: Boa noite, senhora! Teremos um ao outro por companhia. E a noite, está apenas começando.

Fabio Campos, 10 de outubro de 2020.


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