NAQUELE DOMINGO Cap 28


 

Dona Carmem, quis naquele dia, fazer algo diferente. Decidiu, por uma aula de campo. Os meninos estavam todos eufóricos. Perfilados em frente à escola. Antes de saírem, entoaram, o hino nacional e do estado, solenemente. Tremulava ao mastro o pendão da esperança, içado debaixo do sol matinal. Enfeitado céu azul, de nuvens fortemente varonil! A bandeira hasteada com tamanho respeito. E partiu a expedição, com destino ao lago do Bode. Tão belíssimo lugar, aprazível, afastado da urbe. Para o menino Djalma, a experiência mais incrível que vivera, até a altura dos seus doze anos. O lago, um esplendor! Cenário magnífico! Própria cena de cinema. Teve certeza que um dia, sonhara estar naquele lugar! Estar ali, a concretização de um sonho, premonitório! Se aquele se materializara, beijar dona Carmem, na boca. Um dia também aconteceria.

A menina dos dinossauros, nada dizia. Até porque, fantasma não falam. Não, com os que estavam no mundo dos vivos. Falavam, somente com os capacitados. E nem precisavam dizer nada. Assim ocorria com aquela menina. Contava, ao senhor Djalma, sua história, sem sequer abrir a boca. E que boca! De dentes perfeitos! A menina tivera um namorado, que vinha de uma família, cujos pais não permitia aproximação deles. A briga já se havia de muito longe. Muitas vidas, do antepassado, de ambos, haviam sido ceifadas, por conta de disputas por terras. O casal de namorados não queriam saber de nada daquilo. Davam sempre um jeito de se encontrarem, escondido dos pais.

A porta, dum baque se fechou, às suas costas! O menino Djalma, tentou o trinco, nada! Não conseguia abrir! Deu-se conta que estava preso. As lembranças vinham-lhe, enquanto estava sentado a areia, à beira do lago. Vislumbrando aquela belíssima obra do criador, relembrava de um episódio, ocorrido noutra expedição escolar. Ocasião em que foram ao asilo de idosos São Vicente. Propositadamente afastou-se do grupo. Movido por uma dose extra de adrenalina, distanciou-se dos colegas. Estava cometendo uma indisciplina. A professora, antes havia orientado, que ninguém se afastasse do grupo. A ideia de ser diferente, de descobrir algo novo, também traços de rebeldia, tornava-o intransigente.

Os dinossauros, não tinha ideia de como, e onde se encaixava, naquele contexto. De acordo com a história e a ciências, os humanos jamais conviveram com os répteis gigantes. Os enormes lagartos teriam vivido na era cenozoica da terra. Isso fazia tanto tempo, nem Jesus Cristo tinha nascido ainda.  Tinha deles que se alimentavam de vegetais, e outros que o que viesse, traçava! Os feiosos tamanho família, punham ovos, assim se procriavam. O problema está na questão, como vieram parar nestas plagas? O que dava pra concluir que os rastejadores andavam, e andavam muito. Migraram pelos quatro cantos da terra.

Teve vontade de gritar, mas conteve-se. Dava pra ouvir a algazarra dos colegas, ora distante, ora bem próximo. Sabia, que se gritasse por socorro, os demais colegas iriam gozar de sua cara pro resto da expedição. Na verdade, pro resto da vida. Precisava sair daquela situação, sozinho. Se tivesse de ter ajuda, que não viesse, nem fosse conhecida pelos colegas, e professora. Ficaria com muita vergonha. Seria mal-assombrado aquele velho casarão? Histórias de arrepiar, ouvira falar. Diziam que no passado ali, funcionara um quartel, e muitos presidiários teriam sido torturados, enforcados, esquartejados, queimados vivos! Os olhos do menino, já se haviam acostumando com o escuro. Tateou vendo vultos dos móveis. Conseguiu alcançar um cabide. Ali estavam pendurados os pertences de vários idosos. Roupas, chapéus, bengalas, guarda-chuvas. Era como se fosse uma sala de jogos, recreação. Ao tocar um casaco, percebeu um objeto dentro dum bolso. Introduziu a mão. Era uma prótese dentária! Cheio de asco, retirou a mão rapidamente! Havia uma outra porta ao fundo, percebeu que alguém do outro lado, batia com o nó dos dedos, bem baixinho. Arrepiou-se todo!

O quadro, era o seguinte, um dinossauro da espécie vegetariana, invadira uma pista asfáltica. Havia um carro tombado, abandonado às pressas pelos seus integrantes. Nas ruas e avenidas pessoas perplexas! De onde teria surgido aquele bicho? Era o que todos se perguntavam. Os que admiravam o quadro, também se perguntavam. Os personagens dentro da imagem, de tão real, dava pra ouvir os gritos das pessoas! Dava pra sentir o cheiro da fumaça desprendida do motor do carro, capotado, em chamas! Dava pra sentir, o desespero das pessoas.

Outra reflexão lhe assaltou, como podia uma pessoa escapar três vezes da morte no espaço de um dia. Tudo começou, logo manhã, se encontrava sobre o lastro de um caminhão, que desenvolvia alta velocidade. Se deu conta que pegara carona, juntamente com uma turma de amigos. Vinham de uma caçada noturna. Haviam passado a noite dentro da mata. De repente, numa curva, na estrada de barro, o caminhão colidiu com outro carro, uma caminhonete. Todos foram arremessado com força para o gigante da carroceria. Mas nada de grave ocorreu a nenhum daqueles. E o dia seguiu seu caminho. A tarde outro carro, guiado por um motorista bêbado, invadiu uma praça e quase o atingiu. Desta vez, estava numa bicicleta, alugada. Naquele tempo tinha os irmãos Cosme e Damião, que alugavam bicicletas. Para livrar-se do carro, jogou a bicicleta de encontro ao parapeito da praça. Acabou que o pneu dianteiro da magrela ficou destruído. Outro livramento. A noite, um carro desgovernado, subiu a calçada, chocou-se numa placa de trânsito, que se partiu e pedaços voaram sobre sua cabeça. Passou raspando! Disseram os colegas. Naquela mesma noite, um rapaz loiro de cabelo encaracolado, aproximando-se, sentou-se ao seu lado na calçada da igreja. Ele disse, embora o menino nunca entendeu. -Hoje eu tive um trabalhão!

Era um belo dia de domingo, foi pra casa de um primo. Ele era pintor, o quadro que estava pintando tinha muitas cores, e indefinições. Começaram a conversar. O primo estava tomando vinho. Na vitrola tocava um disco, de um desses cantores que cantam músicas de quem está perdidamente apaixonado, ao mesmo tempo desiludido com a amada. O primo pintor disse, vamos olhar o rio. E foram. Que visão teriam, de lá de cima da ponte? Decidiram ir olhar o rio, de cima da ponte. Pra chegar lá, tinham que escalar um belo dum abismo. Bem devagar, sem pressa, subiram. O sol refletia no chão, suas sombras cruzadas. Lá embaixo havia muita pedra. Era um precipício. Dava medo, só de olhar. Uma queda dali, seria fatal. Olhou, sentiu vertigem. Os pés vacilaram. Sem querer, mergulhou. Não tinha como escapar. O vinho, embotara sua alma, seu senso de perigo. Não tinha a menor noção do que lhe ocorria. Estava sem camisa, por conta do calor a havia tirado. De repente sentiu um puxão pelo braço. Foi arremessado, para o lado contrário ao abismo. Caiu sobre um pé de rasga-beiço. Foram vários ferimentos, rasgões no peito, um corte profundo, bem debaixo da axila, do braço direito. Foi muito sangue. Colocou um pouco de aguardente. Soltou um monte de palavrões, pela dor que sentiu. Aos poucos, o sangue estancou. Foram alguns meses, para sarar. E muitos anos, mais de trinta, para entender o que realmente lhe ocorrera. Naquele domingo.

Fabio Campos, 29 de novembro de 2020.

Ilustra este capítulo, uma foto [2020] da cidade de Porto de Pedras- AL.


OUTRO DIA, DAQUELES... Cap.27



De volta ao vale, da menina dos dinossauros. Inacreditável vale, de duvidar sobre o que seus olhos contemplavam. Continuava perplexo. Como podia, aquela menina, ali? E se vestia tão diferente das demais, da época. E pensar, quão inóspito lugar! Como sobrevivera a tantos intempéries. Só havia uma explicação, tudo fruto do sobrenatural. Lembrava nitidamente como estava. Foi pelos trejeitos, a rara beleza, o corpo de menina, que se apaixonou. Era um vestido vaporoso, cheio de anáguas e babados. Um chapéu de pano, engomado, cujo tecido imitava no padrão, a estampa do vestido. O cabelo longo ia pelas espáduas e costas. Enchida ainda mais de encantamento. Trazia na mão uma pequena valise. Com uma sombrinha, Se protegia do sol, cujas cores semelhava as peças citadas anteriormente. Os sapatos tinham fivelas, e um salto mediano. Tudo nela era graça e beleza. Uma candura, um caminhar que arremetia aos áureos tempos do velho oeste. Mas, o que uma menina, do velho oeste americano estaria fazendo naquelas paragens?

O menino Djalma, continuava sentado nos degraus lateral da escola. Era um prédio antigo que remetia, nas pobres linhas arquitetônicas, ao Ateneu de Raul Pompéia. Mas, apenas pretendia imitar. Os meninos, de alguma forma tinham lá, algumas semelhanças. Um que era estrábico, outro, cujo cérebro, por falta de uso, tinha por jazigo o quengo craniano. Outro, que só tinha tamanho. Servia para tirar os amigos de enrascadas. E tinha Geraldão, do qual o menino Djalma era amigo inseparável. De idas pro rio, quando dava uma cheia. De incontáveis pescarias, que muitas vezes nada pescavam. De algumas poucas caçadas, idem. E de excursões pelas cercanias.

A primeira paixão do menino Djalma, foi por dona Carmem, professora de geografia, do segundo ano primário. Ah! Dona Carmem! Tinha os olhos mais bonitos que um ser humano, em toda a face da terra poderia ter. E os dentes de dona Carmem! Tão branquinhos, que perfeição! Teve sonhos magníficos com dona Carmem. Em um deles, estavam os dois num bar, o clima era de muita tensão. O menino Djalma, um gangster da máfia italiana. Portava uma potente Thompson Submachine Gun, metralhadora de tambor redondo. Enquanto homens, em pontos estratégicos faziam sua segurança. Trajava um paletó de linho. Um chapéu de massa. Um cigarro apagado, pendurado nos lábios. Dona Carmem olhava-o com a meiguice de sempre. Não tirava, um só segundo, seus lindos olhos do menino. O mais valente, o mais perigoso daquelas paragens. Seu herói!

Geraldão, era um menino negro, que sabia de muita coisa sobre as mulheres. O menino Djalma, muito tinha ainda a aprender com ele. Os colegas falavam em “quebrar o cabresto”. Dizia que todo menino, na primeira vez que tivesse uma relação sexual, ia sangrar pelo couro da cabeça da “pica”, era assim que chamavam o pênis. Aquilo o assustava! Geraldão o tranquilizava, dizendo: “Quando chegar a sua vez, saberá como, e o que fazer!” Sobre as meninas, Geraldão dizia que as meninas-moças que nunca tiveram relação sexual, tinha que se “tirar o cabaço”. Termo que designava a perda da virgindade. Geraldão sabia demais. De tudo que falou, o que mais o deixou impressionado, foi sobre a gravidez.  Assunto tabu, dentro de casa. Lá, se falava em cegonhas, que vinham pelas telhas trazer os bebês. O menino Djalma, por um tempo chegou a acreditar naquela mentira. Geraldão disse-lhe sorrindo: “O que faz a gente fazer bebês é a “gala”!”  Assim era chamado o líquido que saía de dentro da “pica”. Se a “gala” caísse dentro do priquito -  era assim que se designava a vagina das meninas -  elas engravidariam. Significava que ia ter um bebê. O menino Djalma, juntou coragem e perguntou a Geraldão: “E lá dentro do ralo do banheiro, não estaria cheio de minúsculos bebês?” Por conta da quantidade de “gala” que deixara descer por ali? Geraldão explodiu numa gargalhada. O negro riu, riu à balde cheio, do pobre menino. Tanta foi a vergonha, que saiu correndo dali. Ficou por uns dias, sem se falar com o amigo.

O Grand Canyon, talvez, nada tivesse daquele lugar. Os enfeites eram muito diferentes: mandacarus, xique-xiques, catingueira, rabo-de-raposa, coroas de frade. Se alguém se detivesse a comparar, alguns detalhes veria que tinha a ver. Um cenário quase sem nuvem, um azul plasmado que parecia petrificar o céu. O ar atmosférico se deslocava em blocos. E pregava algumas peças nos viventes, às vezes sumindo, e quando voltava, vinha com a força de um redemoinho, levantando bagaceira do chão. O resultado disso era ventas entupidas, olhos lacrimejados, poros suados, e um enlameado de poeira e suor no lombo. Os bichos todos, se dividiam em duas categorias, predadores e predados. O homem o mais astuto deles, predava, répteis, téius, calangos sardão, cobras. Mamíferos marsupiais e roedores, cassácos, preás, mocós. Anfíbios, cágado d’água, tatu-peba, jibóia. E aves, sariema, codorniz, rolinha, nambu. Aves canoras eram apreendidas para comércio. Escapavam as de rapina, pelo mau agouro. O sertanejo só não contava nunca na vida, era, nas suas empreitadas de caça, se deparar com um dinossauro. Ainda mais assustador, apavorante e fantasmagórico vê-lo ao lado de uma menina, bem vestida, elegante e linda de fazer gosto!

Ah! Dona Carmem! O menino Djalma, perdera a conta das vezes que molhou os lençóis, depois de um dos sonhos que tivera com a professora querida. Tantas vezes amanhecera com o pênis ereto, o pensamento na professora, que dali a pouco veria, na escola. Será que um dia teria coragem de contar pra ela, um dos seus sonhos? Jamais! Afinal dona Carmem era casada, muito bem casada, por sinal! Nunca que iria se interessar pelas fantasias sexuais de um menino, que mal entrara na puberdade.

21 de novembro, de 2020. 

Nossa homenagem, pelo Dia da Consciência Negra. Ilustramos este capítulo, com Foto da Atriz, e Cantora, Zezé Motta.


 

A Madrasta Cap 26


 

As lembranças, iam e vinham, dentro do ser em que se transformara o senhor Djalma. Agora, ia como se caminhasse por um campo cultivado, que o vento balançava palha seca. Esplendor de luz, amarelada de sol. Desses que já estão caminhando pro ocaso. Lentamente, sem pressa de chegar, a lugar algum. Viajante de jornada infinda, sem aparente propósito. Não havia uma trilha sonora. O assovio do vento entre as pedras, o chilrear dos pássaros nos arbustos duma tarde juvenil não conseguia ouvir. Radiante espetáculo! Ainda que nada conseguisse ouvir. E se tentasse tocar as hastes das plantas balançando ao vento, provavelmente não conseguiria, espíritos não tocam as coisas. Eles as sentem, transpassam. A sinfonia do vento não entrava em seus ouvidos, o cheiro de silagem fermentando, apenas fruto do pensamento. O gosto amargo na boca, coisa do passado. Entendeu que o mundo que o cercava, somente pelo sentido da visão era reconhecido.

Viu calendários numa parede velha, açoitados pelo vento, freneticamente soltavam suas páginas, levadas por um redemoinho em espiral. E via seu corpo se desintegrando, sendo sugado pra dentro de um túnel, o qual não conseguia ver o fim. Aos poucos percebia-se noutro lugar. O corpo reintegrado. Havia uma imensa retangular, e de tão polida, como um lago, refletia o firmamento. Era dentro de uma caverna, de piso polido, que não dava pra ver o fim. Havia um homem, sentado a cabeça da imensa mesa, estava de capuz, de modo que não dava pra ver seu rosto. Imaginava porém que ele, devia ser velho, pois suas mãos assim o denunciava. Seria como um mago, de barba longa, cabelos longos. O lastro da mesa, como uma tela panorâmica mostrava o mundo. Cenas de um cotidiano a muito tempo passado, ali se refletiu. O mago com as mãos sobre a mesa, nada dizia. O lastro da mesa nitidamente mostrou ao senhor Djalma, um ambiente bastante familiar. Só precisava buscar na memória para reconhecê-lo.

O ambiente era de uma cozinha, várias mulheres faziam muito barulho enquanto preparavam comidas. E riam de uma história que uma delas contava, do tempo de namoro com o atual marido. Efusivamente gesticulava e todas riam, e como riam, do episódio revivido em ternas recordações. Dizia ela, que ainda jovem, se correspondia por carta na época de namoro com seu atual marido. Os pais não concordavam que ela namorasse. O pai, era um homem rude, tinha ele que as mulheres vinham ao mundo com um único propósito, servir na lida doméstica. E que não deviam aprender a ler, para não perder tempo escrevendo cartas para os namorados. Se um dia tivesse que casar, era simples bastava o pretendente procurar os pais da moça, e declarar seu interesse. Contrariando o pai, a moça se correspondia por carta com o moço. Um belo dia, seu pai a descobriu escrevendo uma carta, e quis saber o que era. Pra disfarçar, teve que mentir, dizendo que estava copiando a receita de um bolo, desconfiado o pai pediu que lesse o que estava escrito ali. O velho pai da moça, era analfabeto. E as risadas das mulheres na cozinha era justo pelo modo como ela contava sua tentiva de enganar o pai, e ler uma carta com declarações de amor, como se lesse uma receita culinária. No papel, palavras de doçura que não era do açúcar, palavras de suspiros que não eram o quitute, de sonhos que não eram guloseimas, de um docinho de coco que não viera do coqueiro, mas que tinha barba e bigode. Palavras que provocavam um calor, e um fogo que não vinha do fogão e que queimava não sua panela, de paixão, pelo seu amado.  

Havia uma criança, um menino, de apenas dois anos de idade. Estava de fraldas, os pés descalços, num chão de terra batida. A pele do bebê era muito alva. Ia caminhando, dando seus primeiros passinhos, pelo terraço em frente a uma casa velha, uma tapera, em péssimo estado de conservação. Enquanto uma serpente sinuosa e traiçoeira deslizava entre a relva do canteiro de plantas. A mãe da criança lavava as louças no oitão do casebre. Um jovem deitado na relva contemplava o céu, enquanto tomava uma taça de vinho. O jovem era irmão da criança, e não se dava conta do perigo iminente vivido pelo seu irmãozinho. As nuvens que cobriam aquele céu formavam figuras grotescas, ameaçadoras, estufadas de presságios, debaixo de um azul.  Nuvens da justiça, a espreitarem o modo como as pessoas se comportavam, e vivam suas vidas, aqui em baixo. O bebê estava sob ameaça. Entre a vida e a morte.

Os dias passavam, como as nuvens passavam no céu. E os acontecimentos iam ocorrendo, como se estivessem sendo pintados, sobre telas de pano. Enquanto uma palheta de aquarela, provida de pincéis mágicos iam salpicando as tintas sobre o tecido. A cada vez que uma cor qualquer pingava, se espalhava como sangue fluindo, incontido. E a cena se materializava, e de estáticas, as personagens passavam a ter vida, e viviam. Se fosse uma cena trágica os salpicos eram de cores fortes, cores quentes, roxo, vermelho, laranja, dependendo da gravidade do evento. Se ao contrário se tratasse de cena de paz e tranquilidade, vinham em cores frias, tons de azuis celeste, azul piscina, verde mar, branco e rosáceos. O café era tudo o que restara pra eles. Um casal de idosos, sentados num sofá, tomavam café. Os filhos, agora eram só lembranças de um passado, que julgavam nunca mais veriam. Talvez, estivessem enganados.

Do nada, lembrou de um amigo de infância. Agora, julgava-o muito parecido com um indiano. Os braços finos, o pescoço comprido, todo nele era comprido, oblongo. Um buço debaixo do nariz.  Considerou-o como um daqueles, das fitas de cinema, quando dava defeito e os personagens ficavam todos esticados. Guardava lembrança dele assim, um cara comprido. As pessoas ficam nas lembranças dos outros pelo que se aparentavam, pelo modo que se comportavam. O conjunto dessa obra. E os que eram calmos, teriam a tendência de ganharem, no nome, o sufixo “ão”. Geraldo virara Geraldão. Já, os que eram considerados pavio curto, brincalhões, e anarquistas ganhavam o sufixo “inho”. O mais clássicos deles, o Joãozinho.

Estava sentado nos degraus da igreja quando Geraldão chegou. Tinha exposto várias revistas para vender. Os amigos sabiam que todo dia de feira havia aquele comércio de impressos na escadaria da matriz. As revistas, na vida de quem lê, acabavam adquirindo um valor afetivo. Expunha pra vender, embora achasse melhor que ninguém comprasse. Por outro lado precisava de dinheiro. Então, uma batalha se travava dentro do ser.

Geraldão, olhando pro nada, lhe disse, ali na maior, descobrira que era adotado. O menino Djalma quedou perplexo! Mas como? Como ficara sabendo disso? Através de uma velha empregada doméstica, a muito tempo na família. Viera fazer uma visita, e achou por bem contar-lhe, já que a morte lhe rondava. O amigo disse, que dali por diante muitas coisas passaram a fazer sentido. Passou a entender, porque a mulher que achava ser sua mãe, agia de forma tão estranha com relação a ele. Além do que, nenhuma semelhança física tinha com ela. Além , claro do fato de ser alta, também, até aí tudo bem. Porém, era branca, dos olhos esverdeados, talvez azulados. Azulados ou esverdeados? Isso dependia da luz, e do momento do dia.

Descobriu que sua madrasta sentia prazer em maltratá-lo. Colocava-o de castigo num quarto. Na verdade um cubículo que servia de dispensa, na cozinha infestado de insetos. Mesmo sabendo que ele tinha medo de baratas. Como sofria! Ali, passava horas, e até um dia sem comer, sem tomar se quer um copo de água. Uma palmatória pendurada na parede, a usava em suas mãos mesmo se nada fizesse. Certa vez, pela fechadura da porta do seu cárcere privado, viu algo que o deixou chocado. A madrasta sentada no sofá da sala, se masturbando. A cabeça recostada, os olhos fechados, fazia movimentos com os dedos.  Na época o menino nem sabia o que era masturbação, contou ao amigo Djalma, assim: Ela levantou o vestido até a barriga, já estava sem calcinha, e punha a mão lá. E perguntou, lá aonde? No sexo.

14 de novembro, de 2020. A ilustração deste capítulo, foto, captada no google.com.br de nossa estimada cantora, a inesquecível Vanusa!


Guarda a Luz... Cap 25



Havia uma serra, muito alta, lá no fundo do vale. Naquela magnífica paisagem, a elevação rochosa era segundo plano. Porém não menos importante que todos os outros planos, ao redor. Tão longe, estava que chegava a ficar azulada. O céu, no entanto, com ela não queria conversa. Empavonado com seu azul muito mais celestial! Ainda mais esplêndido! Desses que os simples mortais contemplavam com êxtase! Admirando muitíssimo! E depois de se enamorar, espreitava. De outro jeito, olhava. Arriscava encontrar uma brechinha, por onde pudesse ver Deus. Quem sabe, no jardim, conversando com o filho. Ou sentado à pérgola da piscina, conversando coisas sérias, com a mãe dele. Pena, que não dava! Não havia como. A cortina era bem feita, inteira, sem nenhum defeito.

Cá embaixo, pra onde se olhasse, era terra seca. Uma forragem de mato seco, aqui acolá, algumas arbustivas. E muita desolação. Verde mesmo, daqueles bem verdinho, que dava gosto de se vê, quase não havia. Se amostrava uma catingueira por aqui, um pé de mandacaru pra acolá. Um calango espichado no lajedo quente. Na hora da misericórdia, o ar atmosférico se mudava, dum jeito que nem toda criatura percebia. Também graça nenhuma teria se todos conseguissem alcançar a mudança. O outono, o outubro. Se entranhando feito labirinto. O pé de pau, de flores amarelas se desdobrava em bela roupagem. Se vestia, com sua saia longa, deitada no chão preparando o dance pro bailado das garças. O vento assobiava, no oco da ingazeira, como um lamento, uma cantiga antiga, que dava vontade de chorar. E a brisa mestra, secaria as lágrimas vertida no rosto, envernizando o entardecer com sal, tristeza, solidão.   

Maria Guadalupe do Amaral Ferreira. A velha senhora que dera água, a senhor Djalma. Através dela, ficou sabendo o nome da menina. Nome de santa, devido a data de nascimento, doze de dezembro. O sobrenome, era comum a todos habitantes daquela seara. Uma só estirpe estendida por um vale inteiro. Pai, mãe, irmãos, tios, sobrinhos avós, todos carregavam o mesmo sobrenome. E mesmo pra morte os levavam. As casas atrepadas nas encostas, até o sopé da grande serra, escondiam segredos de família.

A menina-moça, Guadalupe, dentro de casa, se olhava no espelho. De lá fora, dava pra vê-la. Olhava pra imagem, dela mesma refletida, quase não se reconhecendo. Pra ter certeza que era ela mesma que via, perguntava qualquer coisa a mãe, lá na cozinha. Involuntariamente fazia aquilo, pra se perceber realmente ela, ali no espelho. Ouvir a própria voz, talvez a fizesse se sentir viva, presente ali. Pois haviam momentos que pensava não mais existir, pra esse mundo.  Pegava o longo cabelo, trazia todo pra o colo. E com as mãos alisava, alisava.

O menino, tinha um açude, achava que era só dele. Pegou a bicicleta e foi pra lá. Tinha na ideia que se não desaparecesse, com certeza logo apareceria o que fazer, na roça. Mesmo que não fosse muita à vontade, tinha que ir. Senhor Djalma o imaginou entrando num bosque de árvores, totalmente diferentes das que tinha visto em toda vida, até então. Árvores que produziam luzes fluorescentes, emitiam raios fosforescentes que produziam sons. Zumbidos que eram como músicas que continha um código de comunicação, não explicitamente revelado.

Maria Guadalupe temia, estar grávida. Contou a sua mãe dos seus medos, das suas angústias. A mãe, estava curvada cuidando de uma coivara. E como se tivesse levado uma lapada de urtiga, se aprumou. A encarou, retesando os músculos faciais. A respiração ofegante. E desatou um impropério tão cabeludo que feriu a paisagem. O grito ecoou, e foi morrer lá nos confins do Judas. Três vezes se benzeu, e disparou pra cuidar de outra coisa, que fosse bem longe dali. O segredo de família, guardado a sete chaves! Caso a gravidez se confirmasse, poderia vir a ser revelado. Só tinha um jeito, Guadalupe tinha que ir pra bem longe, ter esse filho. Caso estivesse, estaria grávida do próprio pai. A menina Guadalupe era, desde os seis anos de idade, violentada pelo pai.

O menino estava nu, aprumado em cima do paredão do açude. Parecia um peixe molhado, uma enguia. O sol dando-lhe plasticidade. Fazia dele, um menino de luz. O cabelo molhado colado a cabeça, na testa. O corpo magro, dando a contar as costelas. As perninhas finas, como uma rã, sem pele. O sexo, parecia uma chupeta de bebê. Circundado dos primeiros finos pêlos pubianos. Preparava-se pra dar mais um pulo dentro do açude. A água espirrou foi bater nos sapatos de Guadalupe, que estava sentada numa pedra, ali próximo. A menina, olhava pro céu, como quem contemplava o rosto de Deus. E todas as coisas se rendiam àquele momento. Dava pra sentir a presença, a beleza do criador. Ela nada tinha pra perguntar a ele. Como também ele, nada tivesse pra dizer a ela. Queriam só entender, por que tinha que ser assim?

No décimo ano que se passou depois daquele, Maria Guadalupe se encontrava à  porta da pensão das Meninas Melindrosas. Final da rua do sol, cidade grande, muito distante do velho sertão onde nascera, e se criara. Mulher feita, bonita, desejada, uma ninfa! Agora, vendia o corpo pra sobreviver. Nunca, porém esquecera a vida no sertão. O amanhecer, tão belo. A alvorada, o canto dos pássaros, as árvores, as nuvens de algodão. A chuva batendo no telhado. Bom tempo, de sua inocência, roubada, perdida, dentro de casa. Queria muito entender os homens. A maldade que havia dentro dos seus olhos, ainda menina conheceu. A mulher, na vida mundana que levava, resolveu que queria ser artista. Levou adiante seu projeto. Tornou-se uma atriz pornô. Foi protagonista de um filme pornográfico de sucesso. E eis que esse filme, um dia, chegaria lá no interior, no singelo vilarejo onde Maria Guadalupe viveu sua infância, estudou, foi a igreja. O prefeito, as ex-professoras, todos queriam assistir o filme. Os ex-coleguinhas de escolas, eram todos homens feitos agora. Com ansiedade aguardaram o dia da grande bilheteria! Grande era a expectativa, todos queriam ver, o tão desejado corpo de mulher. Àquela que um dia, menina inocente vivera entre eles. Agora, despudoradamente, se entregaria a volúpia, ao prazer carnal, para todos verem! E a vila quedou incrédula! Um disparo de arma de fogo se ouviu! Acenderam-se as luzes! O velho pai, de Guadalupe, em plena sala de projeção, cometera o suicídio.  

07 de novembro de 2020.

Ilustração, by google.com.br capa do LP de Zé Ramalho "A Terceira Lâmina - 1981"