As lembranças, iam e vinham, dentro do ser em
que se transformara o senhor Djalma. Agora, ia como se caminhasse por um campo
cultivado, que o vento balançava palha seca. Esplendor de luz, amarelada de
sol. Desses que já estão caminhando pro ocaso. Lentamente, sem pressa de
chegar, a lugar algum. Viajante de jornada infinda, sem aparente propósito. Não
havia uma trilha sonora. O assovio do vento entre as pedras, o chilrear dos
pássaros nos arbustos duma tarde juvenil não conseguia ouvir. Radiante espetáculo! Ainda que nada conseguisse ouvir. E se tentasse tocar as hastes das plantas balançando ao vento,
provavelmente não conseguiria, espíritos não tocam as coisas. Eles as sentem, transpassam. A
sinfonia do vento não entrava em seus ouvidos, o cheiro de silagem fermentando,
apenas fruto do pensamento. O gosto amargo na boca, coisa do passado. Entendeu
que o mundo que o cercava, somente pelo sentido da visão era reconhecido.
Viu calendários numa parede velha, açoitados
pelo vento, freneticamente soltavam suas páginas, levadas por um redemoinho em
espiral. E via seu corpo se desintegrando, sendo sugado pra dentro de um túnel,
o qual não conseguia ver o fim. Aos poucos percebia-se noutro lugar. O corpo
reintegrado. Havia uma imensa retangular, e de tão polida, como um lago, refletia o
firmamento. Era dentro de uma caverna, de piso polido, que não dava pra ver o fim. Havia um homem, sentado a cabeça da imensa mesa, estava de capuz, de
modo que não dava pra ver seu rosto. Imaginava porém que ele, devia ser velho,
pois suas mãos assim o denunciava. Seria como um mago, de barba longa, cabelos
longos. O lastro da mesa, como uma tela panorâmica mostrava o mundo. Cenas de
um cotidiano a muito tempo passado, ali se refletiu. O mago com as mãos sobre a
mesa, nada dizia. O lastro da mesa nitidamente mostrou ao senhor Djalma, um
ambiente bastante familiar. Só precisava buscar na memória para reconhecê-lo.
O ambiente era de uma cozinha, várias mulheres
faziam muito barulho enquanto preparavam comidas. E riam de uma história que
uma delas contava, do tempo de namoro com o atual marido. Efusivamente
gesticulava e todas riam, e como riam, do episódio revivido em ternas recordações.
Dizia ela, que ainda jovem, se correspondia por carta na época de namoro com
seu atual marido. Os pais não concordavam que ela namorasse. O pai, era um homem
rude, tinha ele que as mulheres vinham ao mundo com um único propósito, servir
na lida doméstica. E que não deviam aprender a ler, para não perder tempo
escrevendo cartas para os namorados. Se um dia tivesse que casar, era simples
bastava o pretendente procurar os pais da moça, e declarar seu interesse.
Contrariando o pai, a moça se correspondia por carta com o moço. Um belo dia,
seu pai a descobriu escrevendo uma carta, e quis saber o que era. Pra
disfarçar, teve que mentir, dizendo que estava copiando a receita de um bolo, desconfiado
o pai pediu que lesse o que estava escrito ali. O velho pai da moça, era
analfabeto. E as risadas das mulheres na cozinha era justo pelo modo como ela contava sua tentiva de enganar o pai, e ler uma carta com declarações de amor, como se lesse uma receita culinária. No papel, palavras de doçura que não era do
açúcar, palavras de suspiros que não eram o quitute, de sonhos que não eram
guloseimas, de um docinho de coco que não viera do coqueiro, mas que tinha barba e
bigode. Palavras que provocavam um calor, e um fogo que não vinha do
fogão e que queimava não sua panela, de paixão, pelo seu amado.
Havia uma criança, um menino, de apenas dois
anos de idade. Estava de fraldas, os pés descalços, num chão de terra batida. A
pele do bebê era muito alva. Ia caminhando, dando seus primeiros passinhos,
pelo terraço em frente a uma casa velha, uma tapera, em péssimo estado de
conservação. Enquanto uma serpente sinuosa e traiçoeira deslizava entre a relva
do canteiro de plantas. A mãe da criança lavava as louças no oitão do casebre.
Um jovem deitado na relva contemplava o céu, enquanto tomava uma taça de vinho.
O jovem era irmão da criança, e não se dava conta do perigo iminente vivido
pelo seu irmãozinho. As nuvens que cobriam aquele céu formavam figuras grotescas,
ameaçadoras, estufadas de presságios, debaixo de um azul. Nuvens da justiça, a espreitarem o modo como
as pessoas se comportavam, e vivam suas vidas, aqui em baixo. O bebê estava sob
ameaça. Entre a vida e a morte.
Os dias passavam, como as nuvens passavam no
céu. E os acontecimentos iam ocorrendo, como se estivessem sendo pintados,
sobre telas de pano. Enquanto uma palheta de aquarela, provida de pincéis
mágicos iam salpicando as tintas sobre o tecido. A cada vez que uma cor qualquer
pingava, se espalhava como sangue fluindo, incontido. E a cena se
materializava, e de estáticas, as personagens passavam a ter vida, e viviam. Se
fosse uma cena trágica os salpicos eram de cores fortes, cores quentes, roxo,
vermelho, laranja, dependendo da gravidade do evento. Se ao contrário se
tratasse de cena de paz e tranquilidade, vinham em cores frias, tons de
azuis celeste, azul piscina, verde mar, branco e rosáceos. O café era tudo o
que restara pra eles. Um casal de idosos, sentados num sofá, tomavam café. Os filhos,
agora eram só lembranças de um passado, que julgavam nunca mais veriam. Talvez,
estivessem enganados.
Do nada, lembrou de um amigo de infância.
Agora, julgava-o muito parecido com um indiano. Os braços finos, o pescoço
comprido, todo nele era comprido, oblongo. Um buço debaixo do nariz. Considerou-o como um daqueles, das fitas de
cinema, quando dava defeito e os personagens ficavam todos esticados. Guardava
lembrança dele assim, um cara comprido. As pessoas ficam nas lembranças dos
outros pelo que se aparentavam, pelo modo que se comportavam. O conjunto dessa
obra. E os que eram calmos, teriam a tendência de ganharem, no nome, o sufixo
“ão”. Geraldo virara Geraldão. Já, os que eram considerados pavio curto,
brincalhões, e anarquistas ganhavam o sufixo “inho”. O mais clássicos deles, o
Joãozinho.
Estava sentado nos degraus da igreja quando
Geraldão chegou. Tinha exposto várias revistas para vender. Os amigos sabiam
que todo dia de feira havia aquele comércio de impressos na escadaria da matriz.
As revistas, na vida de quem lê, acabavam adquirindo um valor afetivo. Expunha
pra vender, embora achasse melhor que ninguém comprasse. Por outro lado precisava
de dinheiro. Então, uma batalha se travava dentro do ser.
Geraldão, olhando pro nada, lhe disse, ali na
maior, descobrira que era adotado. O menino Djalma quedou perplexo! Mas como? Como ficara sabendo disso? Através de uma velha empregada doméstica, a muito tempo na
família. Viera fazer uma visita, e achou por bem contar-lhe, já que a morte lhe rondava. O amigo disse, que dali
por diante muitas coisas passaram a fazer sentido. Passou a entender, porque a
mulher que achava ser sua mãe, agia de forma tão estranha com relação a ele. Além
do que, nenhuma semelhança física tinha com ela. Além , claro do fato de ser alta, também, até aí tudo bem.
Porém, era branca, dos olhos esverdeados, talvez azulados. Azulados ou
esverdeados? Isso dependia da luz, e do momento do dia.
Descobriu que sua madrasta sentia prazer em
maltratá-lo. Colocava-o de castigo num quarto. Na verdade um cubículo que servia
de dispensa, na cozinha infestado de insetos. Mesmo sabendo que ele tinha medo
de baratas. Como sofria! Ali, passava horas, e até um dia sem comer, sem tomar se quer um
copo de água. Uma palmatória pendurada na parede, a usava em suas mãos mesmo se
nada fizesse. Certa vez, pela fechadura da porta do seu cárcere privado, viu
algo que o deixou chocado. A madrasta sentada no sofá da sala, se masturbando. A
cabeça recostada, os olhos fechados, fazia movimentos com os dedos. Na época o menino nem sabia o que era
masturbação, contou ao amigo Djalma, assim: Ela levantou o vestido até a barriga,
já estava sem calcinha, e punha a mão lá. E perguntou, lá aonde? No sexo.
14 de novembro, de 2020. A ilustração deste capítulo, foto, captada no google.com.br de nossa estimada cantora, a inesquecível Vanusa!
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