VALE DO TEMPO 19/12/2024


 

Derick ficava o tempo inteiro parado, apenas observava. Não emitia opinião, para ele o mundo reverso não interessava. O mundo dos vivos esse, sim, temia. Se alguém se aproximava, punha os óculos da verdade. E conseguia enxergar aquele ser no seu íntimo, e via-lhe a alma. Via também sua aura. Seu Antônio, uma nuvem escura lhe envolvia, fosse onde fosse. Quando adoecia a nuvem tornava-se ainda mais espessa, provavelmente quando morresse seria aquela nuvem quem o levaria para o outro lado. O canoeiro, atravessador do abismo do vale da morte, teria dificuldade de reconhecê-lo. Na certa, perguntaria seu nome.

Derick lembrava do dia em que Isachar partiu de casa, seu pai já havia morrido. Então decidiu partir, afinal já era maior de idade. Completara vinte anos, naquela semana de agosto, em que resolvera partir. Sua mãe chorava, lhe entregou alguns trocados, tirado do pouco que recebia da aposentadoria. Com o dinheiro entregou junto uma oração. Bem dobradinha, escrita à caneta, num pedaço de folha de caderno, com o passar do tempo, dentro da sua carteira ficaria amarelada. A oração, disse-lhe, você reze todos os dias!  “Divino Santo Antônio. Nas horas de agonia socorrei-me. Da fome, da peste, da discórdia, desavenças, e das ciladas do demônio livrai-me! Com a graça de Deus pai! Amém!”

A moça do vale dos dinossauros continuava lá. Seu vestido colorido, e a sobrinha se destacavam debaixo do sol do meio-dia. A luz ofuscava, a garganta seca, o calor intenso. Isachar pensava agora  nos lábios da menina, o batom vermelho. De onde estava não conseguia ver direito o seu rosto. O cabelo negro, queria lembrar como era sua voz. A moça estava a uma braça de distância dele. Precisava ir até aquela casa lá no alto, tinha muita sede. Iria até lá,  pedir água. Tinha certeza que era habitada, pois meia porta estava aberta. Um dinossauro surgiu no alto do lajedo, o que procurava? Uma sombra? Será que caçava? Estaria faminto? Seria carnívoro? A menina o tranquilizou: É herbívoro! Ora, sequer abriu a boca. Mesmo assim Isachar a ouviu perfeitamente, ela lhe falar. Estava paralisado diante do aparecimento do cetáceo jurássico.

Ô de casa! Uma senhora veio até à porta. A senhora poderia me dar um pouco d’água? A senhora a quem se referia veio da cozinha arrastando suas chinelas, no chão de barro batido, e lhe respondeu à saudação com um: Ô de fora! Seguido de: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo?” O moço não sabia o que dizer. A senhora mesmo respondeu: “Para sempre seja louvado!”

Aceitou o convite para entrar. Ao menos beberia água na sombra. Água refrescante, e sua mente voltaria a funcionar. Lavou-lhe a alma. O sinal de alerta, e perigo, a pouco ativado dentro do cérebro, pareceu amenizado com a aprazível sombra, a água, e a companhia da senhora, na velha tapera. Abrandou-se o espírito, e os pensamentos ruins enxotado do seu coração. A menina, sua ilha de ternura e encanto naquele deserto existencial, permanecia lá, impassível. A arca de Noé, entre um gole e outro de água, surgiu-lhe bem ali, num quadro na parede. Os animais, todos aos pares, seguiam para dentro da nau de madeira gigante. Olhou lá para fora, o lajedo, os dinossauros e a menina, poço de ternura, impassível, acompanhava-lhe com os olhos, lia seus pensamentos. Distante assim parecia personagem de um filme, que um dia assistira.

A praça tinha o busto de um padre, era pequena, triangular, ornada de plantas e bancos graciosos com ferro dobrado e lastro de tiras de madeira. Sentou-se num daqueles. A moça atravessou a rua, desarmou a sombrinha, sentou-se ao seu lado. Era um fim de tarde maravilhoso. Um convite a admirar o por do sol. Que instrumento musical gostaria de ouvir agora? Perguntou-lhe. Demorou, três segundos, para responder: saxofone. A menina tirou uma manga de dentro da bolsa. Quer? Ofereceu-lhe e avisou, só tinha aquela. Aceitou assim mesmo. Dividiriam, degustaram juntos. Dali por diante, seus beijos teriam, eternamente, sabor de manga.

 

debaixo da craibeira [IN] Z A[NO]S 15/12/2024


 

DEBAIXO DA CRAIBEIRA             Capítulo 3     IN[Z]NANO[S]

A centenária craibeira da encosta do rio testemunha muda de tantos acontecimentos vis, torpe, insanos. Infância, juventude, idade adulta e velhice o vegetal secular vivera ali. A tudo assistira. Dali mesmo, testemunhou eclipses lunares e solares, guerras entre povos e nações, explosões nucleares, terremotos, erupção vulcânicas, brigas ferozes de animais mitológicos: vampiros, fantasmas, gnomos, dinossauros, linces e serpentes gigantes. Presenciou aterramentos e assoreamento do rio, planeamento de vales e elevações de montanhas. Ao ponto de ser totalmente encoberta por terra numa era, e ser submersa por completo por água noutro período. Na noite em que Seu Antônio embriagado, foi repousar sobre seus galhos, de poucas folhas naquela época do ano. Era janeiro, mês em que se espera as trovoadas. Era o dia do aniversário de sua mãe. A vitrola tocava “Coração apaixonado”, de Julio Iglesias. Bastava a música acabar, e logo alguém ia lá, e colocava para tocá-la novamente. A bebida, fez a sala rodar e rodar, nesse rodopio feito dança, como em câmara lenta, foi ao chão, levando todos que se interpuseram ao caminho do embriagado carrossel. Houve revolta de alguns, reprovação de outros, dele mesmo, teve sentimento de culpa. Teve exílio noturno. 

A rua deserta, calada, assistiu. As folhas negras, a noite negra, o pensamento aturdido, desbotado pelo álcool. O vento morno das noites quentes abraçou feito sentimento triste, que envolvia. Buscaria um lugar que o acolhesse. A encosta do rio, era ideal. Caminhou um caminho torto, torpe. As pessoas que nunca vira, jamais entenderia. Não viram o acontecera. Não o podiam julgar. O rio, o único amigo com quem poderia compartilhar aquela dor, aquela agonia.  Fez da ribanceira sua cama. Ali se deitou, e dormiu, dormiu um sono adornado de choro, de lágrimas, e solidão. O mundo não o entendia. Jamais o entenderia.

E sonhou, no sonho viu uma selva. Selva plástica, artificial, com cheiro e sabor de algo feito por mãos humanas. Selva feita de cartolina e papelão, um céu de papel machê, árvores de galhos de papel quarenta e folhas de papel A4, pintadas com tinta guache. Onças-pintadas, pintadas à mão, tigres de cola, zebras feitas de riscos e rabiscos de lápis de cera, macacos feitos de estopa, casca de coco, vidro e rolos de arame. Somente o gato era de pelúcia, e o menino que era Seu Antônio era de vento, e diziam que jamais merecera viver tão infame situação.

Para sobreviver, Derick teria que lutar. Uma luta contra outro gato selvagem que tinha a capacidade de se transformar no elemento que lhe desse vontade: água, ar, metal, pedra, fogo. Seria, no mínimo, um embate desigual, De sobrenatural Derick possuía a capacidade de raciocínio. Sendo que, o que pensasse, dependendo da força positiva, podia concretizar-se no mesmo instante. Podia também contar com a sorte.

A luta teve começo, a um movimento de uma pata e o gato selvagem fez com que os planetas todos se alinhassem e viessem turbinados, na velocidade da luz para cima de Derick. Com a força do pensamento, o gato abriu uma cratera no vale que engoliu todos os planetas, feitos projéteis, que se precipitaram no abismo sem fim.  

 

ISACHAR Continuação de IN[Z] [A]NOS 08/12/2024


 

Olhando as águas do rio que lentamente seguia seu caminho, Isachar viajava no tempo. Tempo em que tinha tantos amigos. E se inventaram de formar uma banda de rock, tinha a aprovação dos pais. Na garagem de casa aconteciam os ensaios, quase sempre a noite. A mãe dizia, se não atrapalhar os estudos, nada tinha contra. Uma megera vizinha, não gostava do barulho. Certa vez, ligou pra polícia, queria garantida a lei do silêncio. Mas ainda nem passara das dez da noite. Mesmo assim o ensaio foi cancelado. A viatura parada no meio da rua, as luzes vermelha, curiosos querendo saber o que havia. O policial irritado por ter que vir fazer tal abordagem, fez ameaças. Os meninos revoltados com a denúncia da velha. Uma hora daquela ainda iriam tomar satisfação com ela.  

Isachar, num quarto de pensão. Uma cama velha de forros encardidos, por não ter a onde ir, aquela noite passaria ali. Os amigos se foram. Depois de um dia inteiro perambulando pela grande cidade litorânea, cidade das águas. E foram a tantos bares, e casas de amigos. Tanto se divertiram, riram bastante, ora de táxi, ora a pé. As ruas, ora cheia de gente, ora vazia. E a noite veio. Solidão, na rua das árvores, só o gari e o vento frio. A última dose, foi daquele uísque que jamais esqueceria. Gosto de fruta rara, tâmara, ou damasco? Lembrou do vinho tinto tomado de baixo do sol quente, em cima  do caminhão com a carga de tijolos, encomendada pelo tio, para a reforma da casa de varanda do alto da Boa Vista. E veio a noite, com ela a melancolia, já era tarde, todos se foram. Preferiu ficar sentado no chão do quarto de pensão, as costas encostadas na parede, a cama causava-lhe asco. Pensou, nos tantos que dormiriam ali, e fizeram sexo, sem que aqueles lençóis tivessem sido trocados Havia barulho de festa, vindo dos corredores. Percebeu o clima, não demoraria pra que uma contenda se iniciasse. Era sempre assim, nesses inferninhos. Tiros, gritos, pessoas correndo. Uma pausa, finalmente o silêncio.

De repente seu pai entrou no quarto, Olhando assim de onde estava, no chão, o pai parecia um gigante. A péssima luminosidade vinha do bulbo de lâmpada pendido do teto. O pai permanecia de pé, sem nada dizer, apenas fitava-o, calado, sereno. Isachar percebeu que aquele homem de pé ali na sua frente, não era seu pai. Era ele mesmo! Só que bem mais velho. Como podia, ele próprio lhe aparecer, assim de frente. E mais, estando numa idade avançada.

As lembranças ficaram ainda mais vivas, do tempo da banda de rock. Num dia que foram convidados a animarem a festa de conclusão de curso, da turma da escola. Gioconda se envolveu numa briga, ela e alguns amigos. Briga feia, de se engalfinharem e mais gente se envolvendo. A polícia teve que intervir, e quase acabar com a festinha. Estavam todos bêbados, rolou um baseado no banheiro. A confusão começou no palco, Aldo, o baterista e Reno o baixista, discutiram feio. Gioconda era o pivô da discussão. Isachar jamais esqueceria aquela cena. Seus pais chegando apreensivos. Gioconda rolando no chão agarrada nos cabelos da namorada do baixista. Enquanto a amiga do baterista lhe segurava pela cintura. Isachar nesse dia, apanhou duas vezes. Levou uns sopapos ao se envolver na briga da irmã. E levou umas tapas do pai, por deixar a irmã ficar bêbada daquele jeito.

[IN]Z.A[NO] Conto Capítulo 3 Tábata 02/12/2024



 


Tábata nunca conseguiu entender o que se passava com seu pai. Tinha dias que ficava amuado num canto, horas sem dizer palavra. Olhando pro nada. Era o que aparentava, de cócoras, como se olhasse pro nada. Os olhos quase cerrados por conta da luz intensa. O cotovelo do braço direito apoiado na coxa da perna direita. Enquanto a mão repuxava os fios do negro bigode. Não havia como dizer, se naquele nada que fitava, se muita coisa havia. Talvez houvesse  recordações que o levavam pra muito distante dali, e daquele momento. Coisas que nos acontecem, e que, jamais conseguiremos entender.

A luz do sol muito forte entrando pela porta assemelhava um foco de projeção de uma sala de cinema. Lá fora, as tendas permaneciam armadas, debaixo do sol abrasador. A lona de tão quente causaria queimaduras na pele, de quem se encostasse ali. Tábata estava à mesa. O caderno clareava seu rosto de pele amorenada. Os olhos, duas jabuticabas molhadas, vitrificadas. A menina, olhava pras mãos, pros dedos, olhava pro pai. Ruía as unhas, olhava pra lá fora. Vieram-lhe lembranças de um tempo passado, de quando sua mãe precisou viajar pra casa de sua vó materna. E seu pai teve que ficar cuidando da casa, também por conta das ovelhas, dos cabritos, da parelha de bois, das novilhas, das vacas e dos cachorros, que tinha que alimentar. O cachorro Negão e a cadela Amora. Negão, por conta de seu pelo escuro. A cadela Amora, era a mãe de Negão. Do jeito como estavam agora, Tábata à mesa, o pai agachado, na soleira da porta. Amora surgiu das moitas num grunhido que estava mais pra choro.

Seu Antônio perguntou-lhe: “O que foi minha filha?" A cadela respondeu-lhe grunhindo mais forte, e olhando em direção de onde surgira. E partiu pra lá. Seu Antonio a seguiu. Pressentiu algo estranho. e que se confirmaria. Encontrou Negão morto. O cachorro estava na ribanceira do rio, seu corpo estava intacto, não sofrera ferimento. Não fosse o fio de sangue saindo de sua boca, e ausência de respiração, pareceria estar dormindo. Seu Antônio teve um ataque de fúria, gritando e chorando desfechou vários golpes de facão num pé de craibeira próximo.

Não era a primeira vez que Tábata via seu pai tendo ataque de fúria. Por várias vezes o presenciou naquele estado de nervo. Quando adestrava uma parelha de bois pro arado, por vezes se machucou, na doma dos bichos brutos. E isso o deixava completamente louco. Também nas brigas que tinha com os vizinhos, por conta de fios de arames arrebentados por animais alheios. Caso tivesse ovelhas roubadas nas vésperas de festas natalinas, ou quando desapareciam galinhas, levadas por amigos que faziam aquilo, somente pelo prazer de vê-lo enfurecido. Tudo isso deixava-o enfurecido.Naquela ocasião, porém, era diferente. Era um ódio regado a outro sentimento ainda mais forte, o de vingança. Tábata jamais esqueceria aquela cena, seu pai urrando feito um lobisomem. Desfigurado, fora de si, prometia beber o sangue do maldito que fizera aquilo com Negão, seu cachorro, seu melhor amigo, seu irmão. Precisava ir ao barracão, tomar umas cachaças.