Derick ficava o tempo inteiro parado, apenas observava. Não emitia opinião, para ele o mundo reverso não interessava. O mundo dos vivos esse, sim, temia. Se alguém se aproximava, punha os óculos da verdade. E conseguia enxergar aquele ser no seu íntimo, e via-lhe a alma. Via também sua aura. Seu Antônio, uma nuvem escura lhe envolvia, fosse onde fosse. Quando adoecia a nuvem tornava-se ainda mais espessa, provavelmente quando morresse seria aquela nuvem quem o levaria para o outro lado. O canoeiro, atravessador do abismo do vale da morte, teria dificuldade de reconhecê-lo. Na certa, perguntaria seu nome.
Derick lembrava do dia
em que Isachar partiu de casa, seu pai já havia morrido. Então decidiu partir,
afinal já era maior de idade. Completara vinte anos, naquela semana de agosto, em que resolvera partir. Sua mãe chorava, lhe entregou alguns trocados,
tirado do pouco que recebia da aposentadoria. Com o dinheiro entregou junto uma oração. Bem dobradinha, escrita à caneta, num pedaço de folha de caderno, com o passar do tempo, dentro da sua carteira ficaria amarelada. A oração,
disse-lhe, você reze todos os dias! “Divino
Santo Antônio. Nas horas de agonia socorrei-me. Da fome, da peste, da discórdia, desavenças, e das ciladas do demônio livrai-me! Com a graça de Deus pai! Amém!”
A moça do vale dos
dinossauros continuava lá. Seu vestido colorido, e a sobrinha se destacavam debaixo
do sol do meio-dia. A luz ofuscava, a garganta seca, o calor intenso. Isachar pensava agora nos lábios da menina, o batom vermelho. De onde estava não conseguia
ver direito o seu rosto. O cabelo negro, queria lembrar como era sua voz. A
moça estava a uma braça de distância dele. Precisava ir até aquela casa lá no alto, tinha
muita sede. Iria até lá, pedir água. Tinha certeza que era habitada, pois meia
porta estava aberta. Um dinossauro surgiu no alto do lajedo, o que procurava?
Uma sombra? Será que caçava? Estaria faminto? Seria carnívoro? A menina o tranquilizou:
É herbívoro! Ora, sequer abriu a boca. Mesmo assim Isachar a ouviu
perfeitamente, ela lhe falar. Estava paralisado diante do aparecimento
do cetáceo jurássico.
Ô de casa! Uma senhora
veio até à porta. A senhora poderia me dar um pouco d’água? A senhora a
quem se referia veio da cozinha arrastando suas chinelas, no chão de barro
batido, e lhe respondeu à saudação com um: Ô de fora! Seguido de: “Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo?” O moço não sabia o que dizer. A senhora mesmo
respondeu: “Para sempre seja louvado!”
Aceitou o
convite para entrar. Ao menos beberia água na sombra. Água refrescante, e sua mente voltaria a funcionar. Lavou-lhe a alma. O sinal de alerta, e perigo, a pouco ativado dentro do
cérebro, pareceu amenizado com a aprazível sombra, a água, e a companhia da
senhora, na velha tapera. Abrandou-se o espírito, e os pensamentos ruins enxotado do seu coração. A menina, sua ilha de ternura
e encanto naquele deserto existencial, permanecia lá, impassível. A arca de Noé, entre um gole e
outro de água, surgiu-lhe bem ali, num quadro na parede. Os animais, todos aos pares,
seguiam para dentro da nau de madeira gigante. Olhou lá para fora, o lajedo, os
dinossauros e a menina, poço de ternura, impassível, acompanhava-lhe com os olhos, lia seus pensamentos. Distante assim parecia personagem de
um filme, que um dia assistira.
A praça tinha o busto
de um padre, era pequena, triangular, ornada de plantas e bancos graciosos com
ferro dobrado e lastro de tiras de madeira. Sentou-se num daqueles. A moça
atravessou a rua, desarmou a sombrinha, sentou-se ao seu lado. Era um fim de
tarde maravilhoso. Um convite a admirar o por do sol. Que instrumento musical
gostaria de ouvir agora? Perguntou-lhe. Demorou, três segundos, para
responder: saxofone. A menina tirou uma manga de dentro da bolsa. Quer? Ofereceu-lhe e avisou, só tinha aquela. Aceitou assim mesmo. Dividiriam,
degustaram juntos. Dali por diante, seus beijos teriam, eternamente, sabor de
manga.
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